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“Não acredito na Justiça”, diz sobrevivente do Carandiru sobre júri de PMs

Justiça de SP manteve anulação da condenação dos policiais pelo massacre e determinou novo julgamento; sobrevivente, pastor Sidney Sales afirma que resta só ‘1% de esperança’

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Movimentos sociais promovem ato para relembrar, vinte e quatro anos depois, o massacre do Carandiru Sérgio Silva (Ponte Jornalismo)
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“Eu estou 99% desacreditado, mas ainda tem aquele 1% que acredita”, afirmou à reportagem da Ponte o pastor Sidney Sales, sobrevivente do Massacre do Carandiru. Na terça-feira (27/11), a 4ª Câmara Criminal do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) manteve a anulação do julgamento que condenou os policiais militares pela chacina e determinou que os réus terão outro júri, ainda sem data definida. Para ele, a decisão traz um fio, mas muito frágil, de esperança.

Testemunha do episódio que aconteceu em 2 de outubro de 1992 e deixou, de acordo com números oficiais, 111 detentos mortos, Sales viu presos serem mortos e foi obrigado a carregar corpos. Segundo ele, só sobreviveu por um milagre. Questionado sobre o que sente ao lembrar do massacre, o pastor afirma após um momento de silêncio: “Repúdio”.

“Aquilo foi Auschwitz. Ali houve incompetência. Eles poderiam ter cortado alimentação, energia, água… nós não tínhamos estoque de comida. Eu acho que, da justiça humana, não posso esperar nada. Nosso poder judiciário é falido, nosso Código Penal é medieval. O sistema carcerário é falido”, afirma o sobrevivente que constata que os jovens negros de periferia são os mais prejudicados.

Policiais afirmam que agiram em legítima defesa. O sobrevivente, no entanto, nega que os detentos tenham representado alguma ameaça e chama o episódio de “genocídio”. “Eles falam que tinha preso com seringa com sangue de pessoas que tinham HIV para injetar nos policias. Com um pânico daquele você acha que alguém teria aparelhos de medicina e ia esperar com uma seringa com sangue para contaminar o policial enquanto eles tinham arma de matar elefante? É passar atestado para burro”, diz.

Entre 2013 e 2014, em 5 julgamentos, os 74 PMs foram considerados culpados pelo massacre e tiveram determinadas penas que variavam entre 48 e 624 anos. A defesa entrou com recurso e a primeira anulação aconteceu em 2016. Em abril do ano passado, a 4ª Câmara do Tribunal de Justiça de SP havia decidido que os policiais teriam novo júri. Porém, o MP (Ministério Público) entrou com um outro recurso no STJ (Superior Tribunal de Justiça) argumentando que o TJ-SP tinha deixado de se pronunciar sobre aspectos apresentados no recurso. O STJ determinou então o julgamento de novo recurso, que foi negado pela mesma 4ª Câmara Criminal.

De acordo com o sobrevivente, a dificuldade para se ressocializar na sociedade depois que saiu do presídio foi imensa, o que abriu espaço para que ele voltasse para a criminalidade. “Imagina o egresso que sai dizendo que é negro, semi-analfabeto, de periferia e que não tem qualificação? Foi o meu caso. Quando saí, eles pediam Word, Excel, Power Point… eu nem sabia o que era isso. Quando eu saio e vou procurar emprego ele quer meu antecedente criminal. Você acha que a porta do mercado de trabalho vai me pegar? Como a sociedade não me quis, eu também não quis a sociedade”, relembra.

Em um confronto, Sales foi baleado e ficou em uma cadeira de rodas. Com escaras pelo corpo por conta da nova condição, ele se tornou dependente químico. Dentro do presídio, ele conheceu uma missionária que, segundo ele, mudou sua vida. Depois disso, ele teve uma oportunidade para ajudar outras pessoas com vício em entorpecentes na Ctec (Comunidade Terapêutica Educacional Cristã).

“Doze mil pessoas já passaram pela minha instituição. Eu faço muito mais do que o Estado. Meu passado pode me condenar, mas meu presente me absolve”, orgulha-se o pastor. Segundo ele, sua esperança é que receba uma indenização do Estado. “Ele me trouxe um trauma. Me deixou em uma cadeira de rodas. Eu tive que me ocultar. Você sabe o que é esconder o seu passado para você poder sobreviver? Eu estou lutando até hoje para que eu possa ser indenizado”, diz.

Por meio de nota, o MP afirmou que “continuará buscando a condenação dos responsáveis pela execução dos presos, no episódio conhecido com massacre do Carandiru, em todas as instâncias do Poder Judiciário, posto que a materialidade do crime e a participação de agentes do Estado na consecução dos delitos estão mais do que comprovadas”.

Em abril deste ano, o subprocurador-geral Mário Sarrubbo afirmou em entrevista à Ponte que é difícil prever quando o julgamento chegará ao final e que os crimes podem prescrever. “A acusação imputava aos réus apenas uma participação nos homicídios praticamos no caso Carandiru e o Tribunal lastreou, fundamentou sua decisão em uma hipótese de autoria por parte desses réus. Essa contradição, na nossa visão, merecia um esclarecimento por parte do TJ e o STJ deu razão às nossas alegações”, explicou.

Em seu voto na 4ª Câmara Criminal do TJ, o relator Luis Soares de Mello Neto disse que, mesmo que quisesse manter a condenação, seria impossível. “A mim me cumpre, nesse momento e como relator desses embargos, tomar apenas um rumo: escolher o caminho trilhado pela douta maioria, ou pela minoria. Nada além disso pode ser feito”, escreveu o desembargador.

Neto finalizou dizendo que “a anulação de um julgamento pelo Tribunal do Júri determina, necessariamente, a realização de novo julgamento perante o Tribunal Popular, como forma de se preservar o princípio constitucional da soberania de veredictos”. Os desembargadores Euvaldo Chaib Filho, Camilo Léllis dos Santos Almeida e Edison Aparecido Brandão votaram com o relator.

O único voto contrário foi o do desembargador Ivan Ricardo Garisio Sartori, que quer simplesmente que os policiais não sejam mais julgados e, portanto, fiquem liberados de qualquer condenação. Em sua decisão, ele diz “não é mais possível a submissão de todos os pronunciados a novo júri, para uma decisão uniforme (condenação ou absolvição)”. Em sua decisão, Sartori diz que o episódio do Carandiru é “deplorável” e uma “triste página da história brasileira”.

“Sabe-se que o critério adotado pelo Ministério Público, ao formular a denúncia, foi imputar as mortes àqueles policiais que admitiram ter atirado, o que também ocorreu com os acusados absolvidos. Então, nada há nos autos a justificar o pleito absolutório de tais increpados”, afirmou Sartori.

Texto originalmente publicado no site da Ponte Jornalismo

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