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Cientistas chineses dizem ter criado os primeiros bebês geneticamente modificados

As gêmeas Nana e Lulu agora têm uma modificação que supostamente as protege contra o vírus da AIDS, segundo o geneticista He Jiankui

He Jiankui
He Jiankui fotografado em seu laboratório em outubro.Mark Schiefelbein
Macarena Vidal Liy
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Um cientista da Universidade de Shenzhen (sul da China), He Jiankui, e sua equipe, afirmam ter criado os primeiros bebês geneticamente modificados. Os bebês, Lulu e Nana, duas meninas nascidas há “várias semanas”, estão em perfeito estado de saúde, diz o geneticista, He Jiankui, que usou a técnica de edição de genes conhecida como CRISPR para modificar um gene e tornar as gêmeas resistentes contra o vírus que causa a AIDS.

A polêmica afirmação de He Jiankui não pôde ser comprovada. A pesquisa não foi publicada em nenhuma revista científica especializada, onde deveria ter sido submetida à análise de outros especialistas.

Em um vídeo postado no YouTube, um sorridente He explica em um laboratório que “duas encantadoras gêmeas chineses, Lulu e Nana, nasceram nas últimas semanas em excelente estado de saúde, para a alegria da mãe, Grace, e do pai, Mark”. O pai, explica He, é portador do vírus da imunodeficiência humana (HIV), causador da AIDS, e nunca pensou que poderia procriar.

Segundo o especialista, que está em Hong Kong nesta semana para participar de um evento sobre ética da manipulação genética, as meninas foram concebidas por inseminação artificial. Depois da fecundação, a equipe científica injetou os reagentes CRISPR no embrião para inibir o gene CCR5. O objetivo era modificar o gene que o vírus usa como porta para entrar no sistema imunológico humano.

“Se for verdade, esta experiência é monstruosa. Os embriões eram saudáveis, sem doenças conhecidas. A edição genética em si é experimental e ainda está associada a mutações indesejadas, capazes de causar problemas genéticos em etapas iniciais e posteriores da vida, inclusive o desenvolvimento de câncer”

Ao longo do desenvolvimento de embriões, primeiro em laboratório e depois implantados no útero da mãe, os especialistas verificaram várias vezes, sequenciando o código genético dos fetos, que tudo estava se desenvolvendo como deveria e as meninas não apresentavam mais mutações além da prevista. “Nenhum outro gene apresentou mudanças”, diz He. A comprovação foi repetida depois do nascimento, anunciado originalmente em uma entrevista exclusiva à agência AP e em um artigo na MIT Technology Review.

De acordo com a AP, os pais de Lulu e Nana não são os únicos que se submeteram aos seus testes. Seis outros casais, nos quais o homem é soropositivo, também aceitaram o programa, o que abre a possibilidade de que as duas meninas não sejam as únicas geneticamente modificadas.

O geneticista, formado nos Estados Unidos e que retornou à China graças a um programa para atrair talentos educados no exterior, diz estar ciente da polêmica que sua iniciativa vai despertar. Mas, diz, não lhe parece que isso apresente problemas éticos. Tudo o que fez, afirma, foi “abrir uma igualdade de oportunidades para ter famílias saudáveis”.

E as críticas já começaram a chover. O teste teria sido impossível sob a lei norte-americana e ilegal sob as normas europeias. Mas na China as regulações não são tão rigorosas. O país foi o primeiro a modificar genes de embriões humanos (não viáveis) e de macacos com a CRISPR.

O professor Julian Savulescu, diretor do Centro Uehiro de Ética Prática da Universidade de Oxford, disse à agência Science Media Centre que “se for verdade, esta experiência é monstruosa”. “Os embriões eram saudáveis, sem doenças conhecidas. A edição genética em si é experimental e ainda está associada a mutações indesejadas, capazes de causar problemas genéticos em etapas iniciais e posteriores da vida, inclusive o desenvolvimento de câncer.” O especialista também lembra que já existem formas muito mais eficazes de prevenir a AIDS, inclusive o sexo protegido, e mesmo que a síndrome seja contraída, hoje existem tratamentos eficazes. “Esta experiência expõe crianças normais e saudáveis aos riscos da edição genética em troca de nenhum benefício necessário real.”

De acordo com Savulescu, a experiência “contradiz décadas de consenso ético e diretrizes sobre a proteção dos participantes humanos em testes de pesquisa”. Os bebês resultantes dos testes de He “estão sendo usados como cobaias genéticas. Isso é uma roleta russa genética”.

Dois pesquisadores do laboratório de He Jiankui, em fotografia tirada no mês de outubro.
Dois pesquisadores do laboratório de He Jiankui, em fotografia tirada no mês de outubro.Mark Schiefelbein (AP)

Por seu lado, He lembra as críticas que choveram em torno do nascimento de Louise Brown, a primeira criança concebida através da fertilização in vitro (FIV). Sua técnica, argumenta, é “outro avanço da FIV” que será aplicada apenas a um pequeno número de famílias afetadas por uma doença.

“Não se trata de criar bebês projetados, apenas uma criança saudável”, afirma. Não procura “melhorar a inteligência, mudar a cor dos olhos, a aparência ou algo similar. Não se trata disso”. Seu método “pode ser a única maneira de curar alguma doença”.

“Entendo que meu trabalho é controvertido, mas acho que as famílias precisam desta tecnologia e estou disposto a aceitar as críticas”, diz He, que destaca que é pai de duas filhas. “Não consigo pensar em um presente mais saudável nem mais bonito para a sociedade do que dar a um casal a oportunidade de começar uma família cheia de amor.”

“Não usamos a edição genética para eliminar doenças em humanos porque ainda não sabemos fazê-lo bem o suficiente”, explicou recentemente em um artigo publicado pelo EL PAÍS a pesquisadora Susana Balcells. “Para fazer essas modificações genéticas, ou seja, que as pessoas possam ir para a sua consulta de reprodução assistida e pedir que lhes façam uma pesquisa genética para ter filhos sem doenças, ainda não temos os conhecimentos que permitam que isso seja feito de forma suficientemente eficaz e segura” acrescentou.

Interesses comerciais

“Devemos manter o ceticismo e assumir que ainda não sabemos se isso que nos dizem aconteceu”, diz, por seu lado, Lluís Montoliu, pesquisador do Centro Nacional de Biotecnologia, que usa a técnica CRISPR para criar camundongos com doenças raras semelhantes às humanas. “Parece mais um anúncio de algumas das empresas desse pesquisador, que tem empresas e, portanto, tem interesses a esse respeito, do que uma comunicação científica”, aponta, segundo informa Manuel Ansede.

Montoliu lembra que a experiência com as meninas chinesas seria absolutamente ilegal na Espanha e em muitos outros países, inclusive naqueles que defendem uma aplicação terapêutica da edição genética, como os EUA e o Reino Unido. “É uma aplicação de melhoramento genético. Não se trata de curar uma doença subjacente ou uma doença que possam desenvolver ao longo da vida, senão que se trata de prevenir. Estamos melhorando essa pessoa”, alerta o especialista.

“Estava claro que, mais cedo ou mais tarde, isso iria acontecer, mas não tão cedo. É cedo demais, arriscado demais”, diz Francis Mojica, microbiologista da Universidade de Alicante e pioneiro no estudo do sistema CRISPR em bactérias. Para Mojica, é um “paradoxo” que “a Europa esteja considerando que é perigoso consumir alimentos modificados com a CRISPR e na China estejam gerando crianças” com essa técnica. “É chocante” e “precipitado”, resume.

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