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Médica cubana: “Vai ficar saudade. Não somos máquinas nem escravos. Somos humanos”

Médica cubana conta as dificuldades para deixar abruptamente o Brasil e lamenta interromper a missão após a quebra do acordo entre os dois países para o Mais Médicos

B. Jucá
Médicos cubanos começaram a deixar o Brasil nesta quinta-feira
Médicos cubanos começaram a deixar o Brasil nesta quinta-feira Valter Campanato (Agência Brasil)
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Faz apenas um ano que a médica cubana Maylobis Torres Ferreira, de 31 anos, deixou o seu país para cumprir uma missão humanitária de três anos na cidade de Avaré, a 263 quilômetros de São Paulo. "Tinha muita vontade de conhecer o Brasil, e a missão foi a minha oportunidade", conta. Com a quebra do acordo pelo qual Cuba exportava médicos especialistas em saúde da família para integrar o programa Mais Médicos, Maylobis lamenta ter que deixar os amigos brasileiros e a comunidade que a acolheu na cidade paulista, mas celebra o fato de que, em breve, reencontrará a família que ficou na ilha.

Na última quinta-feira, parte dos 8.331 médicos cubanos do programa começaram a deixar o país. Maylobis não recebeu o bilhete para nenhum dos voos programados para partir. Ela ainda espera um e-mail de Cuba com a informação de sua data de retorno, mas o prazo máximo é o dia 12 de dezembro, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), intermediária na cooperação entre os dois países. O que Maylobis sabe é que não haverá muito tempo para encerrar os contratos firmados de aluguel e demais pendências de sua estadia. Por isso, já acertou a devolução do apartamento onde morava com a imobiliária, encerrou as contas de água e luz que tinha no seu nome e agora espera as orientações do governo cubano na casa de uma amiga brasileira que a acolheu.

"A minha casa tinha problemas, então tive a sorte de ser liberada da multa por quebrar o contrato, mas uma amiga vai ter que pagar o equivalente a três meses de aluguel. É caro e complicado", diz. Para minimizar os custos financeiros aos cooperados, a OPAS antecipou o pagamento do salário aos profissionais que seria feito entre os dias 1 a 5 de dezembro para o dia 20 de novembro. Um comunicado do Governo cubano também determinou que os profissionais só poderão levar 40 quilos de bagagem na aeronave em que retornarão, mas ofereceu como alternativa uma transportadora para levar outros pertences e orientou a venda de alguns bens materiais para evitar perdas financeiras.

Hospedada na casa de uma amiga, Maylobis tenta vender a mobília que havia comprado para o seu apartamento. "Estamos vendendo coisas que tínhamos para o conforto. É dura a realidade", diz. Entre a bagagem com a qual os primeiros médicos cubanos que já retornaram à ilha circulavam pelo aeroporto de Brasília na última quinta-feira, havia muitas caixas de televisores e outros eletrodomésticos menores. "O Brasil ofereceu mais conforto porque as coisas materiais são mais acessíveis, mas na minha casa em Cuba é tudo normal. Lá tem tudo: ducha elétrica, móveis e panelas da cozinha", esclarece Maylobis.

Médicos cubanos, momentos antes de deixar o Brasil
Médicos cubanos, momentos antes de deixar o BrasilAgência Brasil (Valter Campanato)

Diferentemente dos médicos da ilha que buscam soluções jurídicas para permanecer no Brasil, ela prefere retornar a Cuba. "A vida no Brasil é difícil no pessoal e no profissional. Não estamos acostumados a ter tanta gente morando na rua, a atender tanto usuário de droga. Muita gente aqui fica na rede de saúde esperando muito por uma consulta. A gente fica com dó. O meu país é pobre, mas não acontece isso", justifica. Parte dos profissionais cubanos reclama da falta de isonomia salarial em relação aos demais médicos do programa, já que Cuba fica com 70% do salário de cada um deles  para investir em saúde e educação na ilha, de acordo com o Governo. "Não somos obrigamos a vir. Sabemos dos termos de cooperação e temos a livre escolha de vir ou ficar no nosso país", defende.

Maylobys conta que estava feliz trabalhando em Avaré, onde desde o início foi muito bem acolhida tanto pelos outros profissionais do posto de saúde quanto pela comunidade. Mas o expediente na última segunda-feira foi diferente de todos os outros dias. Era o seu último dia, e ela narra que sentiu a tristeza pela despedida e a preocupação dos pacientes sobre quando teriam o médico do posto reposto. "A gente vem para trabalhar, mas a gente faz amizade e gosta do povo. Vai ficar muita saudade porque não somos máquinas nem escravos, somos humanos", diz.

Os médicos cubanos já se desligaram de alguns municípios. Sem detalhar como ficarão esses postos de saúde durante esta transição, o Ministério de Saúde afirma que está selecionando os profissionais brasileiros para suprir as vagas ainda neste ano. "Eu não queria sair desse jeito, sem terminar a missão, mas já estava esperando para voltar", afirma Maylobis. As críticas do presidente eleito Jair Bolsonaro, ao programa já lhe davam alguns sinais de que a missão poderia ser interrompida, mas a decisão antecipada do Governo cubano a surpreendeu. "Foi um choque", define.

Ainda que goste do Brasil, ela teme que os discursos de Bolsonaro tenham um impacto social de violência, algo semelhante à experiência que viveu durante sua missão na Venezuela depois que o então presidente Hugo Chávez morreu, em 2013. "As coisas lá ficaram muito desconfortáveis pra gente. Havia assalto, atentado, morte. Vivi de perto essa experiência e não quero repetir. A vitória de Bolsonaro me deixou esse temor. Não sabemos os pensamentos das outras pessoas, como elas vão reagir", compara. Agora, ela espera que o Governo cubano a realoque no sistema de saúde do seu país.

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