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Califórnia, uma fornalha pronta para queimar novamente

Seca, ventos, medo e má sorte fizeram do incêndio de Paradise uma armadilha mortal

Bombeiros lutando contra o fogo em Paradise, Califórnia, em 9 de novembro.
Bombeiros lutando contra o fogo em Paradise, Califórnia, em 9 de novembro.Noah Berger (AP)
Pablo Ximénez de Sandoval
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Os bombeiros que já viram de tudo dizem que nunca tinham visto algo assim. Sabiam que estava chegando, estavam preparados para o pior. Mas isso não era o pior, era outra coisa. O incêndio que devastou Paradise, na Califórnia, continua produzindo números aterrorizantes dez dias depois. Não há razão concreta para explicar pelo menos 76 mortos, mais de 1.200 desaparecidos e 12.000 edificações destruídas. Há uma casualidade após a outra, um capricho terrível. Mas essas casualidades se deram sobre uma realidade que se tornou perturbadoramente presente: a Califórnia é uma fornalha pronta para queimar a qualquer momento.

Na quinta-feira, 8 de novembro, por volta das 6h30 da manhã (0h30 em Brasília), John Messina recebeu o telefonema comunicando que um incêndio havia começado em um dos barrancos que cercam Paradise, perto de um lugarejo chamado Pulga. Messina é um dos chefes do Departamento de Florestas e Proteção contra Incêndios da Califórnia (Cal Fire) no condado de Butte, ao norte de Sacramento. Ele foi o primeiro homem encarregado do combate ao fogo. “Naquele momento tomava entre 6 e 8 hectares. Estava em um lugar de difícil acesso”, conta ao EL PAÍS. No que demoraram em solicitar recursos e chegar ao local, pouco antes das 7 da manhã, havia crescido para 80 hectares. “Cheguei às 7h30 e assumi o comando. Então me disseram que o fogo tinha viajado 14 quilômetros e estava dentro de Paradise”.

Não era a progressão normal de um incêndio. Isto é o que os bombeiros da Califórnia estão vendo há alguns anos. “A Califórnia está em situação de seca há cinco anos”, explica Steve Kaufmann, porta-voz do Cal Fire no condado de Ventura, onde aconteceu o maior incêndio da história do estado, em dezembro de 2017, que seria superado somente oito meses depois. “Para dar uma explicação simples: nesta área da Califórnia não chove há 214 dias.” A terra na região de Paradise está extraordinariamente seca.

“Existe combustível [madeira que pega fogo] de 1 hora e de 10 horas. É o tempo que a umidade contida na madeira leva para evaporar. Agora é combustível de menos de 5 minutos. Em condições normais na Califórnia, quando um incêndio começava, havia combustível úmido e o fogo subia uma colina, por exemplo, secando e queimando as plantas progressivamente. Agora, como o combustível tem literalmente zero de umidade, o fogo consome essa colina de uma só vez, instantaneamente. Ele avança muito, muito rápido. E com o vento, ainda mais rápido. Nessas condições, o fogo é como nunca tínhamos visto em nossa vida.” Kaufman é bombeiro há 22 anos e tem 31 anos de experiência em serviços de emergência.

Um bairro completamente queimado em Paradise, Califórnia.
Um bairro completamente queimado em Paradise, Califórnia.Noah Berger (AP)

Na hora em que o incêndio de Paradise começou, soprava também um forte vento quente do deserto com rajadas de 80 quilômetros por hora. O fenômeno, que ocorre em todos os outonos e é conhecido como vento de Santa Ana, está secando a madeira que já estava seca por si mesma e alimentando qualquer princípio de fogo. O incêndio de Paradise queimou 21.000 hectares nas primeiras 24 horas. “Um incêndio de 800 hectares em 24 horas já seria considerado grande. Estamos vendo incêndios que explodem”, diz Kaufmann.

O acúmulo de combustível na montanha não é acidental. Deve-se aos cinco anos de seca. De acordo com um estudo da Universidade da Califórnia em Berkeley divulgado em de janeiro, a seca deixou 100 milhões de árvores mortas no estado. Além disso, julho foi o mais quente jamais registrado na Califórnia. Os seis verões (de junho a agosto) mais quentes da história foram, nesta ordem: 2017, 2015, 2014, 2006, 2016 e 2013. Para os especialistas não há dúvidas de que estamos vendo os efeitos do aumento das temperaturas devido à mudança climática. No Atlântico, isso se traduz em furacões explosivos. No clima mediterrâneo da Califórnia, em incêndios explosivos.

“Isso é algo que poderia ter acontecido há 20 anos, é claro”, diz o chefe Messina. “Mas na época havia alguns poucos dias por ano em que se davam as condições para que algo assim acontecesse. Agora temos 30 ou 40 dias por ano em que se dão essas condições.” A mudança climática não causa os incêndios, mas aumenta as chances de que aconteçam e que sejam devastadores.

A fumaça do incêndio em Paradise, em 16 de novembro, oito dias depois de seu início.
A fumaça do incêndio em Paradise, em 16 de novembro, oito dias depois de seu início.NASA WORLDVIEW HANDOUT (EFE)

E além do clima, há o horror. “Paradise é uma comunidade de aposentados, uma cidade antiga, com construções de madeira no meio da floresta e com estradas estreitas. Não pode ser pior”, diz ao EL PAÍS Scott McLean, porta-voz estadual do Cal Fire que foi chefe dos bombeiros nesse condado e vive em Chico, a cidade grudada em Paradise. Quando chegou ao incêndio, às 8h30, “tudo já estava queimando e as pessoas estavam presas em seus carros”.

Paradise tinha sofrido um grande incêndio em 2008 que destruiu 87 casas. Na época foram preparados protocolos de evacuação, que inclusive foram ensaiados recentemente. “Sabiam que isso aconteceria”, diz McLean. “Áreas foram limpas, os protocolos de evacuação estavam ativos. Mas isso de nada serviu porque tudo estava queimando ao mesmo tempo. Fizeram todo o possível para se preparar para isso. Não foi culpa deles, eles estavam prontos.”

Os protocolos estabeleciam uma evacuação progressiva da cidade de 26.000 habitantes, que possui apenas quatro estradas de acesso. Mas a cidade inteira queimou ao mesmo tempo. As famílias entraram em seus carros e ficaram presas dentro deles durante horas. Além disso, “as estradas estavam congestionadas pelos escombros que caíram sobre elas em um tempo muito curto”, explica McLean. “Cabos de luz e postes telefônicos caíram, as pessoas ficaram sem gasolina, houve acidentes. O que você imaginar, aconteceu. Simplesmente aconteceu. As pessoas ficaram presas, nós ficamos presos durante horas e começamos a caminhar pela estrada. Um carro dos bombeiros resgatou quatro pessoas e ficou preso entre carros queimando até que um trator chegou para afastar os carros. Eu vi um trailer no meio da estrada que alguém havia abandonado. As ambulâncias queimaram, os carros do xerife... ninguém estava a salvo.”

“Normalmente você vê o fogo chegando, você tem horas para preparar a evacuação”, diz o chefe Messina. “Neste caso, em menos de uma hora o fogo estava no vilarejo. Aqueles que tinham de fazer a evacuação estavam se salvando ou salvando vidas.” Existe um mapa chocante do Cal Fire em que se vê a evolução do incêndio. Toda Paradise e a cidadezinha vizinha de Concow estão dentro da área que queimou antes do meio-dia. “Levou cinco horas evacuar a cidade”, diz o chefe Messina.

Ao clima e às condições da cidade se juntou o fator humano descrito por Messina. “Você não pode treinar para isso. O fogo avançou mais rápido do que o tráfego. Quando o fogo atingiu a estrada, os civis entraram em pânico, saíram correndo e abandonaram os carros lá”, deixando as estradas bloqueadas. “Usamos os caminhões dos bombeiros para remover os carros. Não houve luta contra o fogo. Foi apenas resgate e manter as rotas de evacuação abertas. O medo era terrível.”

“Faço isso há 20 anos e não há palavras para descrever Paradise”, diz Messina. “A fumaça daquelas 10.000 casas queimando era muito escura. Foi uma loucura. Apocalíptico. Eu vi muitas coisas, não falo sobre elas, mas foi... impressionante. Eu não sei como dizer.”

O que aconteceu em Paradise foi uma anormalidade. É a nova expressão usada pelo governador da Califórnia, Jerry Brown. “E nessa nova anormalidade vamos continuar nos próximos 10 ou 20 anos. Infelizmente, a ciência mais confiável nos diz que a seca, o calor e os ventos se intensificarão.” A fornalha da Califórnia está condenada a ficar maior. À espera da próxima faísca.

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