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Alinhado a Bolsonaro, Witzel quer transformar o Rio em vitrine dos planos de segurança mais radicais

Novato na política, ex-magistrado rompeu com 20 anos de continuísmo político no Estado "O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo!", disse em entrevista

Felipe Betim

O povo fluminense rompeu com 20 anos de continuísmo político ao eleger, no último domingo, o ex-juiz federal Wilson Witzel (PSC) para o governo do Estado do Rio de Janeiro. Witzel deixou o alto salário e os privilégios da magistratura, em março deste ano, para se candidatar a um dos empregos mais difíceis do país: o de chefe de um Estado, espécie de vitrine internacional das bonanças e desgraças do Brasil, com as contas públicas em frangalhos e sob intervenção federal na área de segurança pública desde fevereiro. Desconhecido até o início da campanha, angariou o apoio do senador eleito Flavio Bolsonaro e conseguiu 60% dos votos no segundo turno, deixando para trás o veterano ex-prefeito da capital Eduardo Paes (DEM), que conseguiu pouco mais de 40%. Seu discurso linha-dura alinhado ao do presidente eleito, Jair Bolsonaro, indica que estenderá o tapete vermelho para as teses mais radicais —e rejeitadas por especialistas— na área de segurança pública.

Wilson Witzel, governador eleito do Rio de Janeiro.
Wilson Witzel, governador eleito do Rio de Janeiro.Cesar Sales (Folhapress)
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Durante toda a campanha, Witzel repetiu inúmeras vezes que “bandidos com fuzil devem ser abatidos”, mesmo que não estejam atirando contra a polícia. Ele se baseia no artigo 25 do Código Penal, que prevê legítima defesa em caso de uma injusta ou iminente agressão. "Bandido de fuzil, só outro fuzil para paralisá-lo. Não adianta falar para colocar o fuzil no chão, que ele vai atirar. Recado dado: bandido de fuzil será abatido. O policial que for questionado, será defendido pela Defensoria Pública", disse na semana passada em encontro com integrantes das forças de segurança, na sede da Associação de Oficiais Militares Estaduais do Rio de Janeiro (AME-Rio). Ele reafirmou sua intenção na terça-feira em entrevista na Globo News e nesta quinta ao Estadão: "O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro". Contudo, reconheceu a possibilidade de o policial acabar sendo condenado e expulso da corporação, apesar de estar cumprindo uma diretriz de sua gestão. Ao Estadão ainda disse: "Não vai cair no meu colo nada. Vai cair no colo do Estado. O Estado tem de entender que tipo de segurança pública quer".

Sua fala também causa apreensão em um Rio já acostumado com a barbárie: em setembro deste ano, no morro Chapéu Mangueira, a Polícia Militar confundiu um guarda-chuva com um fuzil e matou com três tiros o garçom Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, segundo testemunhas. Questionado sobre casos do tipo, o governador eleito falou sobre a falta de preparo da polícia e contou ter pedido para a Core (Polícia Civil) e o Bope (Polícia Militar) um levantamento a agentes a serem "treinados e preparados" para matar bandido a longa distância, inclusive de helicópteros. "Quem atirou é um incompetente, não devia ter atirado. Não estava preparado. Se fizer um curso de sniper, vai estar preparado para identificar quem está de guarda-chuva", afirmou ao Estadão.

Esse entendimento do código penal já foi rebatido por especialistas em Direito, que afirmam que o fato de um bandido estar armado não configura uma hipótese de agressão nem justifica a legítima defesa. O atual ministro da Segurança, Raul Jungmann, disse que o ato é ilegal. Também vai na contramão de protocolos internos das próprias polícias sobre em que circunstâncias agir ou atirar. "Policial em tese não mata, se defende. É isso o que está previsto na lei. Abater é um ataque, é um homicídio. Em termos civis, num contexto democrático e num discurso de polícia, a corporação não mata. E se mata, ela vai ter que responder. Isso está dentro da lei", explica o coronel da reserva da PM-RJ Robson Silva, ex-chefe do Estado Maior da corporação. "Se você estimula os esforços policiais para a execução, em outras palavras você está abrindo mão da investigação [de eventuais crimes que o suspeito tenha cometido], que é a principal função da polícia. E isso é uma coisa que faz muita falta".

O discurso de Witzel vai ao encontro do de Bolsonaro, que promete alterar o código penal para aumentar a retaguarda jurídica —o chamado excludente de ilicitude, que já existe— daqueles policiais que matam em serviço. Propõe, inclusive, condecorar os que mais matam. Em entrevista coletiva nesta quinta, ele ainda disse que a condenação de policiais que matam acaba estimulando o comportamento violento de criminosos. Mas, conforme lembra o coronel Robson Silva e o pesquisador Daniel Cerqueira, economista do IPEA e conselheiro do Fórum de Segurança Pública, esse plano já foi aplicado no Estado do Rio em meados dos anos 90, durante a gestão de Marcelo Allencar (PSDB) no Governo e do general Nilton Cerqueira na Secretaria de Segurança Pública. "As polícias foram deformadas e perdemos capacidade tecnológica e de investigação", lembra o coronel. "Deu errado e já sabemos que vai dar errado. No caso do Witzel, o que chama atenção é a total ignorância. Como pode falar total barbaridade tendo sido um juiz?", questiona Daniel Cerqueira. "Quando você fala para a polícia matar sem controle, você está falando para ele não seguir o Estado Democrático de Direito. O que eles estão pregando é uma ação criminosa", acrescenta.

Witzel também defendeu mais uma vez a extinção da Secretaria de Segurança e a elevação das Polícias Civil e Militar ao status de secretaria, com acesso direto ao seu gabinete de Governo. Para especialistas, isso resultaria em um menor controle civil das policias e menos integração entre elas. "O maior problema é que o trabalho de inteligência vem sendo separado do trabalho policial. E dar uma secretaria para cada corporação acentua o maior problema do Rio, que é muita operação, muito tiroteio e pouca inteligência. A orientação de inteligência tem que sair da secretaria", explica  socióloga Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção Federal do Rio e especialista em segurança pública do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC), da Universidade Cândido Mendes. "Ao invés de apaziguar as disputas entre as corporações, vai aumentar", acrescenta.

Pouco se sabe sobre o futuro da intervenção federal, comandada pelo general Walter Braga Netto. Em princípio, uma transição gradual está prevista a partir do dia 1 de janeiro. Witzel já disse que não pretende pedir a prorrogação da intervenção, mas que gostaria de continuar tendo o apoio das Forças Armadas no Estado e aproveitar seu legado. Por sua vez, o futuro ministro da Defesa, o general da reserva Augusto Heleno, afirmou que ainda não há nenhuma definição sobre a manutenção ou não da intervenção federal no Rio de Janeiro. “Teremos um novo presidente e um novo governador. Tudo tem de ser conversado, ainda. Eu, particularmente, não quero dar minha opinião sobre isso neste momento”, disse ao repórter do EL PAÍS Afonso Benites.

A socióloga Ramos vislumbra, contudo, momentos difíceis durante a transição de Governo: "Toda vez que ocorre uma mudança de Governo, as facções do crime fazem uma demonstração de força, invadem territórios e testam a autoridade dos novos governadores. Aconteceu em todos os governos. E provavelmente vamos assistir isso".

No que depender do governador eleito, a guerra ao crime organizado será declarada, segundo afirmou no evento da AME-Rio. "Mas guerra feita por quem entende. Tem prazo para acabar essa bandidagem do nosso Estado. E não vai faltar lugar para colocar bandido. Cova a gente cava, e presídio, se precisar, a gente bota navio em alto mar". Contudo, o ex-juiz contraditoriamente também já defendeu, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo no início da campanha, uma política de segurança pública com menos confronto. “Essa política de confronto é a pior possível. É a que leva terror às comunidades, que ficam reféns de bala perdida, e colocamos os policiais em risco”, explicou. “O crime está muito mais organizado do que a polícia. Um confronto sem que ele [crime] esteja desmobilizado é uma guerra sem controle. Operações pontuais são bem-vindas, mas com um planejamento prévio”, completou.

Rio rompe continuísmo político

A eleição de Witzel significou também uma guinada política que não acontecia há 20 anos. A última vez que o Rio não elegeu alguém apoiado pelo governador vigente foi quando escolheu Anthony Garotinho, então no PDT, em 1998. Em 2002, já no PSB, ele passou o bastão para sua esposa, Rosinha Matheus. O casal mudou então para o PMDB e, em 2006, ajudou a eleger Sérgio Cabral. Seu vice, Luiz Fernando Pezão, venceu a eleição em 2014. Agora, apoiado pelo MDB —apesar de ter deixado o partido neste ano, optando pelo DEM—, Paes almejava o posto, mas não foi páreo para o outsider Witzel, que começou a corrida eleitoral com apenas um dígito de intenção de voto e ganhou o primeiro turno com 41%, elegendo-se no segundo com quase 60%.

Como ninguém apostava em sucesso eleitoral, o ex-juiz federal praticamente não foi questionado no primeiro turno. Vem prometendo que, uma vez governador, continuará morando em sua casa, na zona norte do Rio, irá cancelar o plano de saúde e que os três dos quatro filhos estudarão em escolas públicas do Estado. Porém, a Folha revelou que o governador eleito recebia auxílio moradia mesmo tendo imóvel próprio, uma prática comum —e moralmente questionável— entre magistrados. Já o jornal O Globo divulgou um vídeo em que ele ensinava uma “engenharia” para garantir outros 4.000 reais de outro penduricalho salarial. Witzel também foi questionado sobre os negócios de escritórios de advocacia do qual se tornou sócio durante a campanha, além de uma aparente relação estreita com um advogado condenado por auxiliar na fuga do traficante Nem da Rocinha.

Mas nada disso foi o suficiente para barrar a rápida ascensão do juiz. Além de recuperar a segurança pública, deverá lidar, a partir do dia 1 de janeiro, com um Estado com as finanças em frangalhos ao mesmo tempo que promete renegociar os termos do acordo de recuperação fiscal, assinado com o Governo Federal, no qual a Cedae foi dada como garantia à União para o pagamento de 3,5 bilhões da dívida —ele promete que não irá privatizar a empresa de saneamento básico.

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