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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

E nós, para quem não há Deus acima de tudo? A liberdade religiosa nas eleições

Este pleito surpreende mesmo alguém acostumado com as atrocidades verbais dos pastores de votos

Bolsonaro é batizado no rio Jordão, em Israel, em maio de 2016
Bolsonaro é batizado no rio Jordão, em Israel, em maio de 2016Reprodução/Youtube
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Aqueles que abandonaram ou não seguem crenças e tradições religiosas sabem que o período eleitoral é usualmente um tempo de desânimo e desconfiança com instituições e figuras públicas. Abundam citações pouco republicanas a ‘deus’, e a quase totalidade dos candidatos afirma representar e aderir a ‘valores cristãos’, deixando claro que aqueles que não seguem essa cartilha pouco ou nada importam. Ainda assim, as eleições atuais conseguem surpreender mesmo alguém já acostumado com as atrocidades verbais de nossos pastores de votos. Há elementos suficientes para suspeitar que estamos vivenciando uma escalada de intolerância religiosa que ameaça não apenas nossas vidas, mas também o tecido social e o princípio de pluralismo religioso que conquistamos nas últimas décadas.

Não é novidade ou surpresa que líderes e instituições religiosas influenciem eleições e decisões na esfera governamental. Diferentes estudos provam que a religiosidade afeta o voto mesmo em democracias mais consolidadas, como na Europa e nos Estados Unidos. Seria ingênuo esperar que, no Brasil, país com a maior população católica do mundo, os candidatos não apelassem à religião para atrair eleitores. Fernando Henrique Cardoso cometeu esse erro em 1985, quando se recusou a responder se acreditava em deus, e perdeu a eleição para Jânio Quadros. A inauguração do Templo de Salomão em 2014 foi um espetáculo que reuniu a cúpula do PT e do PSDB, incluindo a ex-presidente Dilma Rousseff, que passou boa parte de sua vida “meio descrente, muito descrente”. Para se ter uma ideia da baixa pluralidade religiosa na política brasileira, nota-se que cerca de 70% dos deputados federais eleitos em 2014 declaravam-se católicos, e mais de 90% diziam-se cristãos. A famosa ‘bancada da bíblia’ atualmente conta com ao menos 84 deputados, número que deve crescer na próxima legislatura.

Mas mesmo considerando esse panorama pouco animador, as eleições deste ano constituem uma guinada desastrosa na relação entre religião e política. O slogan do candidato favorito nas pesquisas - “Deus acima de tudo” - não deixa dúvidas: seu governo e suas propostas são direcionadas para os eleitores que professam o cristianismo. E antes que se diga que se trata apenas de manifestação legítima de sua fé, cabe lembrar que, no ano passado, o candidato declarou em alto e bom som que “não tem essa historinha de estado laico não, é estado cristão. E quem não concorda que se mude”. Se isso não constitui um claro chamado à perseguição religiosa, não sei mais o que poderia ser. Tendo recebido formação religiosa na infância, não passa pela minha cabeça como é possível compatibilizar esse discurso com os tais ‘valores cristãos’ que a população brasileira tanto estima.

Em boa medida, esse discurso constitui uma retórica raivosa e vazia típica de líderes autoritários, que tenciona fortalecer a fidelidade de seus seguidores ao inflamá-los contra um suposto ‘inimigo’. Mas, ao mesmo tempo, essa fala forma o caldo político e cultural que legitima propostas que minam nossa frágil e restrita liberdade religiosa e laicidade do estado, como a referência do assessor Aléssio Souto ao criacionismo e a proposta de ensino religioso em creches.

A fim de compreender a seriedade da situação, a ascensão desse projeto político precisa ser contextualizada em um quadro social mais amplo. Estamos vivendo um momento de crescimento da violência e ataques a minorias religiosas no país e no mundo. O ‘Índice de Hostilidade Social’ do Brasil (que mede o grau de violência e intimidações na sociedade motivadas por religião, em uma escala de 0 a 10) vem aumentando sistematicamente, passando de 0,8 em 2007 para 3,5 em 2016. O canal de denúncias de direitos humanos do governo federal (Disque 100) registrou cerca de 750 denúncias de violações à liberdade religiosa em 2016, um crescimento de cerca de 37% em relação ao ano anterior.

De acordo com o IBGE, havia no Brasil em 2010 cerca de 740 mil pessoas que se declaravam ateus ou agnósticos. A baixa visibilidade e o medo da exposição muitas vezes nos protegem de agressões, mas a discriminação e preconceito que sofremos são dos mais fortes e arraigados em nossa sociedade. Os dados mais recentes (que datam de 10 anos atrás) indicam que 42% dos brasileiros sentem aversão aos ateus, índice superior ao observado para usuários de drogas, profissionais do sexo, homossexuais e transgêneros, e ex-presidiários; e que apenas 13% votariam em um ateu para presidente. À luz desses números, parece óbvio que ainda somos uma sociedade presa a preconceitos e que não enxerga a diversidade e a diferença como riquezas, buscando sempre no espelho as soluções para os problemas que nos afligem e as respostas para aquilo que não entendemos ou aceitamos.

É importante que se reconheça que Fernando Haddad e Manuela D’Ávila estão longe de ser exemplos de estadistas com um firme compromisso de manter religião e política em campos separados. A participação de ambos em uma missa no santuário de Aparecida em plena campanha e a ‘carta aos evangélicos’ dão a entender que eles estão dispostos a sacrificar parte desses princípios em troca de alguns votos. Além disso, foge à minha compreensão como D’Ávila consegue compatibilizar seu cristianismo com as ideias marxistas de alienação religiosa. Ainda assim, há um abismo de diferença entre, de um lado, frequentar agremiações religiosas para colher votos e, de outro, defender publicamente um ‘estado cristão’ e propor a expulsão ou exílio daqueles que adotam uma escolha diferente.

É fundamental interrompermos a onda de autoritarismo e fundamentalismo religioso representada por Jair Bolsonaro. Suas declarações e propostas obscurantistas não ferem apenas os 0,4% de ateus e agnósticos de nossa população, mas constituem uma ameaça para todas e todos que possuem apreço pelas instituições e valores básicos de nossa sociedade. A separação entre estado e religião é um dos pilares do iluminismo e das democracias modernas, um princípio inegociável e base do desenvolvimento intelectual, científico e econômico contemporâneo.

O momento que vivemos não trata mais de disputas entre diferentes projetos de governo, políticas econômicas ou ideologias políticas, mas da preservação do mínimo de estado de direito que conquistamos. Quaisquer que sejam as justificativas, apoiar essas ideias ou ‘declarar-se neutro’ neste segundo turno é ser conivente com o recrudescimento da intolerância e da violência. E principalmente os cristãos deveriam saber muito bem o que acontece quando aqueles que possuem o poder para mudar as coisas optam por lavar as mãos.

Daniel Gama e Colombo é Doutor em Economia do Desenvolvimento pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), e Mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da USP. Pertence à carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, e atua na Diretoria de Estudos Educacionais do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3197181545823142; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0203-447X; e-mail: daniel.colombo@inep.gov.br.

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