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Os filhos herdam o sofrimento dos pais

Descendentes de prisioneiros da Guerra da Secessão viveram menos que os de outros soldados

Miguel Ángel Criado
O cabo Calvin Bates no hospital, após sair de um campo de prisioneiros dos confederados em Andersonville.
O cabo Calvin Bates no hospital, após sair de um campo de prisioneiros dos confederados em Andersonville.Biblioteca del Congreso de EE UU

O cabo Calvin Bates, do 20º Regimento de Infantaria do Maine, parte do Exército da União, foi feito prisioneiro por soldados da Confederação em maio de 1864, durante a Guerra de Secessão dos EUA (1861-1865). Passou apenas quatro meses no campo de prisioneiros de Andersonville (Geórgia), mas saiu de lá emaciado, doente, com os dois pés amputados e um intenso sofrimento em seu olhar (ver foto). Tão duras eram as condições que 40% dos prisioneiros não saíram vivos desse campo de detenção. Agora, um estudo com milhares deles mostra que os filhos dos sobreviventes daquele inferno viveram menos que os de outros veteranos. Inclusive, morreram mais jovens que seus irmãos nascidos antes da guerra. De alguma forma, a dor de seus pais ficou gravada em sua genética.

Há anos, estudos em animais mostram que determinados fatores ambientais provocam mudanças na informação genética transmitida de geração em geração. É como se deixassem marcas que ligassem ou desligassem certos genes, mas sem alterar o DNA. Assim, ficou provado que o açúcar consumido pelos pais pode tornar seus descendentes obesos, e que a má alimentação dos avós prejudicaria a saúde de seus futuros netos. Apesar do potencial impacto para a ciência e a saúde, pouco se sabe desses mecanismos epigenéticos em humanos, e conhecê-los melhor exigiria experiências que a ética impede.

Por isso é tão excepcional a história de Bates e o experimento social que representou a detenção de 200.000 soldados da União nas prisões sulistas durante a guerra que dividiu os EUA. Um grupo de pesquisadoras da Universidade da Califórnia em Los Angeles (EUA) rastreou o que aconteceu com eles após deixarem os campos. Graças aos arquivos militares, sabe-se se casaram depois ou já eram casados, onde viviam, a que se dedicavam e quando e quantos filhos tiveram. Também puderam ver quando morreram os prisioneiros, suas esposas e seus filhos. Assim, segundo publicam na PNAS, os filhos nascidos após a passagem dos seus pais por lugares como Andersonville viveram menos que os filhos de outros veteranos de guerra.

Na mesma idade, os filhos dos prisioneiros concebidos depois da guerra tinham o dobro de chance de morrer

“Duas coisas aconteceram no campo: inanição, com os homens transformados em cadáveres ambulantes que morriam de escorbuto e diarreia, e estresse psicológico”, comenta a economista Dora Costa, da UCLA, principal autora do estudo. Nem ela nem seus colegas são especialistas em genética, nem foi possível estudar o DNA dos 6.5000 veteranos de guerra e seus 20.000 filhos incluídos na pesquisa. Mas chegaram à epigenética por eliminação: descartando diversos fatores, como condição socioeconômica, origem, data de alistamento, estado de saúde prévio... Compararam a longevidade dos filhos dos veteranos que foram prisioneiros e dos que não foram, concluindo que, sob iguais circunstâncias e à mesma idade, os primeiros tinham o dobro de chances de já terem morrido. Há outro dado que reforça a tese da base epigenética: dentro da mesma família, os filhos que o prisioneiro de guerra tiveram depois de sobreviver a um desses campos tinham até 2,2 vezes mais probabilidades de morrer antes que seus irmãos à mesma idade.

“Certamente há transferência intergeracional de características em humanos, algo que pode ocorrer por métodos bem conhecidos, como a herança genética e a herança cultural, como a aprendizagem”, recorda Neil Youngson, professor da Universidade de Nova Gales do Sul (Austrália). “O que é especial aqui é que esta pesquisa mostra um mecanismo de herança diferente, a epigenética, em que uma exposição ambiental (neste caso a fome ou o estresse, as autoras não sabem dizer qual) induz a mudanças moleculares nos gametas, o que, por sua vez, afeta a saúde ou a conduta de seus descendentes”, explica o pesquisador, não relacionado com o estudo.

Um dos soldados da União, depois de ser solto de uma prisão confederada. As imagens frontais recordam as dos sobreviventes do Holocausto.
Um dos soldados da União, depois de ser solto de uma prisão confederada. As imagens frontais recordam as dos sobreviventes do Holocausto.Biblioteca del Congreso de EE UU

Até agora, os escassos experimentos sociais que permitiram estudar a transmissão intergeracional do trauma em humanos tinha como protagonistas crianças ou fetos, mas não adultos. Nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial, no norte dos Países Baixos, ainda sob dominação alemã, houve uma terrível onda de fome. Em cidades como Roterdã e Amsterdã, as rações não alcançavam nem as 1.000 calorias diárias. A fome afetou a fertilidade das mulheres, mas o pior viria depois: os filhos das mulheres que estavam grávidas naqueles meses nasceram em média com 300 gramas a menos. Quando adultos, aquela exposição pré-natal à fome reduziu seu tamanho corporal e aumentou a incidência de diabetes e esquizofrenia.

Esses efeitos se manifestam às vezes na terceira geração. Em 2017, um trabalho com uma enorme amostra de 800.000 crianças suecas comprovou que o trauma de perder pai ou mãe deixa uma marca que os filhos acabam herdando. Seus autores observaram que as crianças que ficam órfãs nos anos anteriores à adolescência tendem a ter, já adultos, mais filhos prematuros e com menor peso do que os que não perderam seus pais. “Logo antes da puberdade, durante o período de crescimento lento, é quando se programa a espermatogênese e quando os testículos começam a amadurecer. Também é um momento psicologicamente formativo, e em nosso estudo vimos que um trauma psicológico grave durante esse período, como a morte de um dos pais, predizia os resultados ao nascer dos filhos dessas crianças”, relata a pesquisadora Kristiina Rajaleid, da Universidade de Estocolmo (Suécia) e coautora do estudo.

As filhas dos prisioneiros de guerra, por outro lado, foram tão longevas como os filhos de outros veteranos

Um dos pais da hipótese epigenética da transmissão do trauma é o pesquisador Lars Olov Bygren, do Instituto Karolinska (Suécia). Junto com o geneticista britânico Marcus Pembrey, Bygren realizou o chamado estudo Överkalix, no qual foi observada uma relação entre a disponibilidade de comida em idades precoces e o estado de saúde dos descendentes entre os habitantes de um pequeno povoado dentro do Círculo Polar Ártico. Especificamente, comprovaram que os netos de crianças que viveram penúrias por causa de colheitas ruins tinham maior incidência de problemas cardiovasculares. “Vimos três períodos sensíveis à resposta transgeracional: os primeiros meses, até os dois anos; durante o período de crescimento lento [em torno dos 10 anos]; e nos 17-18 anos”, conta Bygren por e-mail. Muitos dos que se alistaram para enfrentar os confederados na Guerra da Secessão tinham essa idade.

Mas há um último dado do estudo com os prisioneiros de guerra que intriga os cientistas: o trauma decorrente de tanto sofrimento só foi herdado pelos filhos homens; as filhas foram tão longevas como as dos demais veteranos de guerra. Nem as autoras nem os especialistas consultados sabem com certeza o porquê dessa discriminação por sexos. Talvez a análise dos dados da terceira geração, dos netos e netas de soldados como o cabo Bates, que está em andamento, possa explicar.

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