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Eleições 2018
Coluna
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É hora de se debruçar sobre a propaganda em rede de Bolsonaro

Muitos de nós estão em busca de explicações para o tsunami de votos em candidaturas antissistema e antipetistas no 1º turno das eleições brasileiras de 2018

Um usuário utiliza o WhatsApp.
Um usuário utiliza o WhatsApp. Marcelo Sayão EFE
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Muitos de nós estão em busca de explicações para o tsunami de votos em candidaturas antissistema e antipetistas no 1º turno das eleições brasileiras de 2018. Como essas candidaturas com pouco tempo de televisão e menos receitas declaradas à Justiça Eleitoral puderam passar por cima de lideranças consolidadas e com amplo acesso a recursos?

Grande parte das tentativas de explicação passa pela internet e pela campanha nas redes sociais. Algumas delas vêm tentando associar ao fenômeno brasileiro acontecimentos de outros processos eleitorais, ocorridos em especial nos EUA e na União Europeia. Revelações publicadas na Folha de S.Paulo, de outro lado, apontaram a participação ilegal de empresários brasileiros no envio de spam pró-Bolsonaro “em massa”, com vistas a impactar eleitores.

Dois personagens simbolizam tipos de explicações sobre o que ocorreu. O primeiro é Steve Bannon, o estrategista político da campanha de Donald Trump, chefe de redação do site de extrema direita Breitbart News e colaborador da Cambridge Analytica, polêmica empresa de marketing político. O segundo é Luciano Hang, empresário brasileiro, dono da empresa Havan, e apoiador de Jair Bolsonaro. Como se relacionam essas explicações, ou, ainda, o que está acontecendo na internet brasileira?

Tentativas de explicação, e uma ponta de iceberg

A explicação que passa por Bannon corre há mais tempo no período eleitoral. Um retrato de um sorridente Eduardo Bolsonaro ao lado de Bannon em Manhattan, em agosto deste ano, alimentou a ideia de que a ascensão do ex-capitão brasileiro derivaria do uso das táticas utilizadas por Trump na Cambridge Analytica, empresa que foi pivô de um escândalo em abril deste ano, por ter utilizado dados não autorizados de milhões de usuários do Facebook para campanhas eleitorais.

Essas táticas foram reveladas por um ex-funcionário da Cambridge Analytica à imprensa. A empresa usou um “quiz de personalidade” no Facebook para coletar dados pessoais de usuários e de seus amigos e, assim, construir perfis psicométricos minuciosos sobre eles. Em seguida, o banco de perfis foi utilizado para informar as campanhas dos clientes da Cambridge Analytica, servindo para customizar a cada um dos eleitores anúncios hiperpersonalizados. Trata-se do chamado“microdirecionamento”: usar ferramentas de propaganda paga na rede torna possível catapultar aquele anúncio para o feed daquela pessoa, o que amplia muito as possibilidades de convencimento. Agregando uma imensa quantidade de informações pessoais dos eleitores, a estratégia de Steve Bannon teria inflado o campo conservador enviando a mensagem exata que o eleitor precisava ouvir e assim se comportar como queria a campanha de Donald Trump, ajudando sua eleição. A manipulação de sentimentos em favor de estratégias eleitorais e a falta de transparência do uso desses dados pessoais acabou submetendo Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, a uma longa audiência pública no Congresso Americano e levando ao fechamento da Cambridge Analytica.

O encontro de Bannon com Eduardo Bolsonaro foi catalisador de uma narrativa de que os resultados eleitorais no Brasil seriam explicáveis por aquela técnica de envio de anúncios “microdirecionados”. A ideia é a de que seria possível apontar um motor centralizado de manipulação dos brasileiros, com grandes interesses estrangeiros por trás. Um texto viralizou nas redes, afirmando que o esquema explicaria o comportamento dos brasileiros neste processo eleitoral, tese que vem sendo repetida frequentemente por outras matérias, textos opinativos e vídeos compartilhados nas redes anti-Bolsonaro.

Com a descoberta pela Folha de S. Paulo de que empresas apoiadoras da campanha de Bolsonaro pagaram valores de até R$ 12 milhões em contratos que visavam o disparo de mensagens de WhatsApp “em massa”, o cenário parece começar a se apresentar em sua real complexidade. Os valores não foram declarados à Justiça Eleitoral e as bases de dados telefônicos teriam sido obtidas lícita e ilicitamente. Um dos personagens que figura nesta explicação é Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan e indicado pelo jornal como um dos participantes do esquema. Mas a injeção de recursos ilícitos e trabalho de comunicação profissionalizado é a ponta de um iceberg que ainda tem muito para ser explorado.

A infraestrutura de propaganda em rede

Se Steve Bannon ofereceu mesmo alguma forma de suporte à campanha de Bolsonaro e de outros aliados não sabemos ainda. É muito possível também que, nos próximos dias, venham à tona mais descobertas sobre poder econômico e ilicitudes por trás da produção e disseminação de conteúdos pelas redes.

Nas tentativas de explicação, faltam ainda boas hipóteses e formulações conceituais para compreensão da estruturação da campanha de Bolsonaro nas redes, que articulem todos os indícios disponíveis. Observando o desenvolvimento da campanha e o conjunto de evidências, parece ser possível afirmar que a campanha acontece a partir de uma infraestrutura de propaganda em rede. O conceito aproveita o diagnóstico dos pesquisadores estadunidenses Yochai Benkler, Robert Faris e Hal Roberts, da Universidade de Harvard, no recém-lançado livro “Network Propaganda”, de que campanhas políticas no ambiente digital vêm se aproveitando de dinâmicas de rede para se fortalecer. É claro, essas dinâmicas são localizadas e apoiam-se em fatores conjunturais.

Não parece que tenha sido utilizada, no Brasil, uma tática de propaganda no estilo “escândalo Cambridge Analytica”, ou seja, centrada na compra de anúncios em redes sociais para envio de propaganda “microdirecionada”. Não há, pelo menos ainda, indícios de nenhuma grande campanha de anúncios pagos na internet pelos candidatos da família Bolsonaro, nem nas prestações de contas perante a Justiça Eleitoral, nem na ferramenta do Facebook que dá transparência aos anúncios pagos que tratam de política (conforme descrevemos aqui). Ainda, os candidatos do PSL, grande surpresa nas eleições legislativas, não tiveram gastos significativos com propaganda paga (segundo as mesmas fontes consultadas acima), e, quando gastaram, não demonstraram nenhuma sofisticação na compra de públicos segmentados à la Cambridge Analytica. Foram feitos anúncios pagos, porém direcionados a grandes públicos, com segmentações amplas (como por Estados) e conteúdos simples (espécies de “santinhos virtuais”). As páginas apoiadoras de Jair Bolsonaro e companhia (já mapeadas aqui), que poderiam estar impulsionando os conteúdos para públicos hipersegmentados em seu lugar, tampouco estão tendo gastos significativos no Facebook.

Ao mesmo tempo, o candidato a presidente do PSL manteve-se como o mais procurado no Google e foi sobre quem mais se tuitou no período eleitoral. Candidatos ao Congresso vinculados a ele são influenciadores com números altíssimos de seguidores e compartilhamentos no Twitter e no YouTube. Enormes fanpages apoiadoras no Facebook propagam suas ideias, visibilizam suas figuras e viralizam conteúdos de campanha.

A ausência de investimento em anúncios em qualquer uma das redes sociais corrobora a hipótese de que a força política dessa onda capitaneada pela candidatura de Bolsonaro nas redes sociais resulta de um esforço distribuído e capilarizado, contando com um misto coordenado de esforço contratado com outro voluntário e espontâneo, visivelmente maior do que o de seus adversários. Nessa hipótese, as comunicações de campanha não chegam nos usuários a partir de hipersegmentação por interesses e dados de personalidade, mas a partir de uma infraestrutura que mistura elementos novos da comunicação digital com velhos conhecidos da propaganda política, como as listas de números de telefone.

Símbolo desse tipo de esforço distribuído e uma das formas de comunicação mais utilizadas entre os brasileiros, o WhatsApp ocupa um papel importante no cenário. Sendo um aplicativo de mensagens criptografadas, o “zap” não oferece espaço para publicidade nem para direcionamento das mensagens a grupos de pessoas específicos - a mensagem realmente só se dissemina se alguém passar para frente ou se alguém furar o bloqueio de spams da empresa e disparar mensagens em massa (aí parecendo figurar o esforço de empresários como Luciano Hang). Ainda, a viralização dessas mensagens e sua conversão em voto deve depender de muitos “carteiros voluntários” em todo país, uma massa de repassadores de conteúdo que faz com que a mensagem chegue até “a última milha” (ou seja, até os grupos de família, amigos e no fluxo de mensagens entre indivíduos) e ali seja defendida.

Articulada em rede, essa infraestrutura de propaganda ganha eficiência quando os administradores de grupos se coordenam, atuando como “nós” importantes da rede por concentrar muitas conexões e melhorar o fluxo. Ganha eficiência também quando militantes plugam nela não só seu tempo e rede pessoal, mas grandes recursos financeiros e ferramentas mais sofisticadas, como parece ser o caso de Hang.

Assim, no WhatsApp (e possivelmente nas outras plataformas de comunicação), a gestão de tal infraestrutura parece contar com um misto de trabalho pago e voluntário, com estrutura descentralizada.

Do lado pago, há os gastos declarados à Justiça Eleitoral, direcionados a esse tipo de comunicação: como foi divulgado recentemente, Jair Bolsonaro pagou R$ 115 mil a uma empresa do Rio de Janeiro para administrar e alimentar com conteúdos pelo menos 1500 grupos de WhatsApp em seu apoio. Neste lado também estão os investimentos ilícitos, muito mais difíceis de se mensurar, em ilegalidade dupla: são recursos não declarados, e oriundos de empresas, que, de acordo com decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4650, em 2015, não podem financiar campanhas. O esquema revelado aponta para pagamentos para que empresas de comunicação prestem serviços de alimentação de grupos, mas também para uma espécie de “spam” - a versão online dos antigos SMS e ligações para listas de telefones.

Resta muita dúvida ainda sobre a sofisticação da administração de grupos provida por empresas, pois, conforme revelou a Folha, não há clareza se elas atuam apenas em grupos públicos (acessíveis por links) ou também nos privados, mais difíceis de se investigar, e sobre como funcionam ferramentas de automatização ou mesmo de segmentação de mensagens para diferentes tipos de grupos. Entretanto, está claro que o arranjo é tanto mais eficiente quanto que consiga entregar mensagens de propaganda ao maior número de pessoas na ponta da linha do que os concorrentes. A eficiência também parece estar ligada à aderência das mensagens à conjuntura política e aos sentimentos das pessoas, ganhando assim mais chance de serem passadas adiante.

Ainda, ao se constituir em rede (como a própria Web), a produção das imagens, vídeos, links e áudios que ali trafegam também não precisa ser centralizada: ela fica aberta a um outro possível exército de voluntários e militantes, que pode também se plugar àquela infraestrutura para a propaganda ser distribuída no WhatsApp e nos outros meios.

Uma infraestrutura construída no tempo e à brasileira

Já em maio de 2017, a BBC Brasil reportava a existência de rede de militância pró-Bolsonaro, fomentada por ele próprio, que fazia parte de centenas de grupos apoiadores no WhatsApp e se engajou pessoalmente na comunicação com seus “fãs”. Esse e outros relatos documentam a construção dessa infraestrutura de propaganda em rede desde no mínimo 2013. Na época, tais grupos passaram a fomentar o comportamento de “soldados do mito” que transborda para outras redes como o YouTube e o Facebook, e recebe ordens, como postar as palavras “Bolsonaro 2018” ou avaliar negativamente o vídeo de alguém que o critica.

A rede de propaganda política foi sendo construída ocupando cada uma das plataformas utilizadas pelos brasileiros, respeitando suas peculiaridades. Cada uma delas é uma camada a ser ocupada e que retroalimenta as demais. Se a organização da militância e a distribuição de mensagens rapidamente pode ser feita de WhatsApp, a formação política pode ser via YouTube. Ainda, a disputa por narrativas pode ocupar o Twitter e o aumento da rede visando amigos e conhecidos pode ser feito no Facebook. Tudo isso com o ritmo próprio de cada uma das plataformas e tendo como momentos destacados as performances das lideranças perante a mídia tradicional, apenas mais um de seus palcos. Essa infraestrutura em rede e em várias plataformas permite fazer campanha política sem um único centro irradiador de conteúdos. Conforme apontado por analistas, a função primordial da coordenação da campanha passa a ser a de “validação” das mensagens que lhe convém, não de sua exclusiva criação.

Quando, durante a campanha, trabalho profissionalizado é contratado de forma lícita ou não para alimentar essas redes, ele se acopla a uma infraestrutura que já vinha sendo erigida, e com isso tem um ganho de escala e eficiência, na medida que os conteúdos são repassados, transformados para outras plataformas e blindados de versões alternativas. Como descrevemos, essa é a peculiaridade da infraestrutura de propaganda em rede: a facilidade de atores, maliciosos ou não, acoplarem-se a qualquer ponta da infraestrutura e fomentar seu funcionamento. De fato, as recentes revelações apontam que cada em uma dessas camadas podem ter incidido práticas ilícitas; além disso, sabemos hoje com mais clareza, todas elas se apoiam na disseminação de informações falsas e divisivas, capazes de gerar comoção e ser compartilhadas adiante. O punitivismo, a cruzada moral e anticorrupção, o discurso de ódio e o antipetismo funcionaram bem para isso.

Por fim, é clara a existência de um grande experimentalismo - o investimento na tentativa e erro, no “se colar colou, se não colar na próxima cola” - uma espécie de empreendedorismo político-tecnológico brasileiro.

A capacidade dessa rede de mudar interpretações, manipular acontecimentos e alcançar um número imenso de pessoas ficou clara para o Brasil neste momento, mas ela vem sendo construída há anos. Sua centralidade foi até mesmo admitida por Jair Bolsonaro, que recentemente criticou a medida do WhatsApp de restringir de mais de 200 para 20 o número de contatos para quem se pode encaminhar um conteúdo de uma vez só (que respondia à episódios de violência resultantes da disseminação de rumores pelo app, em especial na Índia). Isso mostrou que a decisão da empresa deixou mais estreito o gargalo, limitando o fluxo das comunicações na rede descentralizada de propaganda de sua campanha. Um recente artigo de uma jornalista e dois pesquisadores brasileiros no The New York Times sugeriu, inclusive, que o número de compartilhamentos fosse reduzido a 5, a exemplo do que o WhatsApp fez na Índia para combater o repasse de rumores - proposta que imediatamente levantou a ira de um segmento do Twitter, com a hashtag “#CensuraPetista” ganhando o primeiro lugar nos trending topics horas depois da publicação do texto.

A fotografia de Steve Bannon com Eduardo Bolsonaro talvez esconda um quadro mais complexo do que mero um tentáculo brasileiro da Cambridge Analytica, ou a existência de um ator todo-poderoso a manipular as pessoas para o fortalecimento do campo político de Jair Bolsonaro. É possível que dinheiro e poder estrangeiro estejam atuando nos nós da infraestrutura de propaganda em rede em questão. Ainda, é tão possível que toda esta infraestrutura tenha sido fruto de um planejamento genial e maquiavélico, com tons de estratégia militar, quanto é também que ela seja apenas uma soma de fatores desconexos.

De toda forma, é preciso reconhecer que desbaratinar o abuso de poder econômico e a utilização de recursos e técnicas para manipular a opinião pública vai ter de passar pelo reconhecimento e investigação da operação dessa infraestrutura; pelo desenvolvimento de teses jurídicas renovadas sobre a responsabilização da campanha por esses atos, e de conhecimento sobre as tecnologias e técnicas utilizadas, por parte da Justiça e das campanhas, que fazem as denúncias; e também por soluções de design tecnológico por parte das empresas, que precisam ser pensadas com cuidado para o tiro não sair pela culatra. No fim de tudo, vai ficar ainda a importante pergunta sobre por que muita gente que você conhece virou um nó nessa rede e por que a estratégia colou. Daí, talvez olhares a partir da sociologia, antropologia, ciência política, economia e psicologia possam nos ajudar mais.

Francisco Brito Cruz é diretor do InternetLab e doutorando em sociologia jurídica pela Faculdade de Direito da USP.

Mariana Giorgetti Valente é diretora do InternetLab, doutora em sociologia jurídica pela Faculdade de Direito da USP e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia - CEBRAP.

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