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Cada um na sua ‘bolha’ e Bolsonaro na de todos

Um passeio pelos diálogos de vários brasileiros: a favor ou contra, suas rotinas giram em torno dos ditos e feitos do ultradireitista, favorito para converter-se no próximo presidente da República

Tom C. Avendaño
Apoiador de Bolsonaro usa camiseta com uma imagem de Donald Trump ao lado do ultradireitista
Apoiador de Bolsonaro usa camiseta com uma imagem de Donald Trump ao lado do ultradireitistaNacho Doce (REUTERS)

São quase 17h do que deveria ser uma tarde normal em São Paulo. O sol já vai caindo há algum tempo, e ruas se encheram de carros que circulam aos soluços entre semáforos e transeuntes que não olham ao cruzar a rua Augusta, no centro nevrálgico da cidade. Mas não chega a ser uma tarde normal. Se não, Richard e Otávio, jovens balconistas de lojas de roupas, um negro e outro branco, claramente gays, não teriam inventado o jogo que hoje os distrai durante uma pausa para um cigarro durante o trabalho.

– Olha essa velha aí, com permanente e colar. Essa sem dúvida.

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– Lógico. E esse carro com adesivo de Cristo no para-brisa? Outro.

– Deus acima de todos!

A brincadeira consiste em adivinhar quais pessoas votaram no ultradireitista Jair Bolsonaro no primeiro turno das eleições, e quais traços os denunciam. Uns porque parecem conservadores, outros, os típicos que votariam num candidato acusado de ser “das elites”, outros ostentam sinais evangélicos, machistas, racistas ou homofóbicos. Quando acertam, sempre sai alguma piada (isso de “Deus acima de todos” é a frase com que Bolsonaro encerra seus comícios). E, à sua maneira, é algo que boa parte dos brasileiros está jogando: olhar para o lado e se perguntar: e se...?. E se essa pessoa colaborou para dar 49 milhões de votos a Bolsonaro no primeiro turno, encher o Congresso com seus aliados e alimentar uma onda de agressões a negros, LGBTQs e mulheres em todo o país. Naquele domingo, 7, Bolsonaro conquistou quase metade dos votos válidos. Agora, a possibilidade tangível de que conquiste a presidência no segundo turno, no dia 28, horroriza a outra metade. E nestas ruas, onde tudo parece normal, mas se respira um ambiente de tensão, não se fala de outra coisa. Na corrida para entrar na cabeça das pessoas, ele já ganhou.

“Depois não reclamem do Bolsonaro”; “Bom, melhor Bolsonaro que corrupção”; “Isso com o Bolsonaro vai melhorar”; “Cuidado que o Bolsonaro vem aí!”. No caminho até a rua Augusta, passamos por umas 20 silhuetas do candidato e centenas de conversas. O candidato quase não sai da sua casa, com o pretexto de estar se recuperando da grave facada que levou durante um ato de campanha em setembro. Assim, faz uma candidatura ao estilo 1984, falando em lives do Facebook, comunicando-se pelas redes sociais e permitindo que alguma TV amiga o visite e lhe faça entrevistas hipercontroladas. E há finalmente as silhuetas que se veem por toda a cidade, lambe-lambes colados nas paredes, obra de detratores que querem criticá-lo. Também se fala dele continuamente. De certa maneira, Bolsonaro não está em nenhuma parte e está em todas. Um simples passeio pelo centro de São Paulo prova isso.

Ele está na Linha 4 do metrô quando a apanhamos. Um indivíduo com camisa de algodão listrada e colete cinza examina memes com fake news a favor do ultradireitista em seu celular. Lê atentamente um, depois passa para o seguinte. Parece ter vários. As pessoas ao seu redor também olham o celular e se olham entre si. Será ou não será? Estará lendo para conhecer o inimigo ou será realmente um bolsominion (como são chamados os seguidores que admiram Bolsonaro cegamente)? Ao chegar à avenida Paulista, a artéria central da cidade, o homem levanta a vista do celular e olha ao seu redor, diretamente para as pessoas que estavam lendo a sua tela. “Desculpem”, diz com ar recriminador. Desce.

Menos cortês foi a cena, minutos depois, em um restaurante de comida mineira. Numa mesa, uma mulher e sua filha adolescente estavam discutindo sobre a “esquerdopatia”, como os conservadores se referem ultimamente ao progressismo. A mãe culpa a esquerda por todos os males do Brasil; recorda que o Partido dos Trabalhadores passou 13 anos no poder e que agora estamos numa grave recessão econômica. A filha remexe o arroz de coco e recorda pontualmente que não gosta de Bolsonaro.

A mesa do lado decide interceder. Duas mulheres na faixa de 30 anos, com relógios e brincos caríssimos, dizem à menina que Bolsonaro não está bem, “mas, olhe, pior é a corrupção, que este país não consegue se levantar de tanta corrupção”. Acabam gritando simultaneamente com a mãe. São três mulheres falando ao mesmo tempo sobre as virtudes de Bolsonaro, “porque não é o PT”. A menina, em minoria numérica e moral, remexe um pouco mais o arroz de coco. A garçonete vai recolher a mesa e de passagem dispara um olhar de exasperação. De que “isto está acontecendo demais”. E leva os pratos subitamente. E se...?

De volta à rua, pela Paulista. “Se Bolsonaro ganhar, vamos embora.” “Que depressão isso do Bolsonaro.” “Tomara que chegue logo essa merda de segundo turno e o Bolsonaro vire presidente de uma vez.” Um assunto recorrente é imaginar o que vem por aí. Quem pode ficar sem trabalho, quem terá mais dificuldades quando esse militar retrógrado chegar ao poder. Os ataques às minorias já dispararam desde o primeiro turno. Houve surras, assassinatos e navalhadas, de gente que se sentia validada por ter no poder um homem que se apresentou efetivamente como um machista, racista e homofóbico. Então a imaginação de muitos já está no pior. “Meus vizinhos são dois homens que moram juntos, e se um dia outro vizinho achar que pode dar uma surra neles? O que vamos fazer? Fingir?”, diz uma garota de olhos azuis a um menino de cabelo encaracolado, que assente com cara de “e o que você quer que eu faça?”.

Às 18h30, passa pela Paulista uma manifestação de repúdio a Bolsonaro. Centenas de pessoas gritando contra o ex-militar. A polícia os escolta. Começou a chover. Um transeunte lhes manda uma banana ao passar. Ao final, só resta a chuva nas ruas. Isso e dúzias de lambe-lambes com a silhueta do ex-militar. Alguns com brincadeiras: “Jesus é amor. Ele, não.” (#EleNão é uma palavra de ordem dos críticos contra o político). Mas, ao final, o que há são mais lambe-lambes.

No Instituto Moreira Salles ouve-se a voz de Bolsonaro vinda de um celular, perto da loja do museu. Talvez venha de um dos milhões de memes com notícias falsas que, dizem os especialistas, sequestraram esta eleição. Olhamos o dono do telefone, um homem negro com uma camiseta básica branca e jeans claro. Devolve-nos o olhar. E se...?

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