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Coluna
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Por que Bolsonaro não inventou a pólvora no Brasil

Candidato parece mais o anti-Moisés da Bíblia, que em vez de receitas de libertação se oferece a devolver aos brasileiros suas velhas saudades dos tempos em que eram escravos sem sabê-lo

Mulher olha camiseta com a imagem do candidato Jair Bolsonaro em shopping popular no centro de São Paulo.
Mulher olha camiseta com a imagem do candidato Jair Bolsonaro em shopping popular no centro de São Paulo.NELSON ALMEIDA (AFP)
Juan Arias
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A possibilidade de uma vitória de Bolsonaro espanta um Brasil e inflama outro. Aparentemente, agrada ao Brasil majoritário. Dele se diz que mete medo nos democratas e alegra os ultraconservadores. Que é um perigo para a democracia e para as liberdades e uma esperança para quem sonha com um país da ordem e da mão dura. Do dente por dente e olho por olho.

E se Bolsonaro não existisse? Se não fosse senão uma miragem de quem estava à procura de alguém que, de fuzil na mão, oferecesse segurança e moralidade e dissipasse medos, frustrações e complexos? Alguém que, apesar de nunca ter sido nada, brinca hoje de herói e quase de Deus? Há quem o compare a um extraterrestre que tenha desembarcado oferecendo uma nova receita mágica capaz de resolver todos os males e acabar com todos os corruptos e violentos da Terra. Com todos os inimigos e diferentes. Ninguém o interrogaria para saber quem é; se entregariam cegamente aos seus delírios.

A verdade é que Bolsonaro não inventou de repente a pólvora no Brasil. Não inventou uma sociedade sedenta por autoritarismo, insatisfeita com quem a governa, desconfiada da modernidade, atemorizada pela liberdade e continuamente em busca de alguém que resolva os problemas num passe de mágica – essa sociedade que existia silenciosa e agora reaparece com força para seguir em rebanho o novo redentor.

Os 23 milhões que votaram no domingo e que não concluíram o ensino primário, por isso mal sabem ler e escrever, não foram inventados pelo capitão superman. Tampouco ele inventou os outros quase 30 milhões de eleitores que não acabaram o ensino médio e mal conseguem ler um livro por ano, e se assustam diante da mais ínfima novidade cultural. Nem inventou os milionários que pagam menos impostos que os pobres, que dormem felizes em seu mundo de privilégios intocáveis e que veem como demônios aqueles que ousam recordá-los que não é justo que eles monopolizem quase a totalidade da riqueza dos outros milhões de pessoas que mal conseguem subsistir. Eles também votam no marciano Bolsonaro.

Os que, por exemplo, foram às urnas no domingo e deixaram sem assento no Senado Cristovam Buarque, uma das figuras mais expressivas do mundo da educação, reconhecido internacionalmente, que sempre quis, e a esquerda não lhe deixou, colocar em ação suas ideias de um novo modo de ensinar, não são uma invenção de Bolsonaro. Como não inventou essa infinidade de igrejas evangélicas que não se distinguem por suas ideias de abertura ao que nasce de novo na sociedade, vivendo, ao invés disso, apegadas aos tempos mais obscurantistas da história do Cristianismo. Serviu-se delas.

Bolsonaro, na verdade, já ganhou. Conseguiu levar ao Congresso, que é o coração da democracia, onde se legisla para o bem ou para o mal e que tem poderes para mudar a Constituição e modelar a sociedade, o segundo maior grupo de deputados (51), que não acredito que representem uma primavera de modernidade e de defesa dos direitos humanos. Eles se unirão agora à dita bancada BBB, ou seja, do boi – os pecuaristas e latifundiários que acham um desperdício a terra reservada aos indígenas que eram os donos deste país –, da bíblia – os evangélicos que pretendem governar com a Bíblia e não com a Constituição – e da bala – os nostálgicos do velho oeste que pretendem armar até as crianças.

O ex-paraquedista não ganhou pelo que vale, pelo que criou no passado, pelo que representou na sociedade, onde foi pouco mais que uma sombra. Ganhou porque soube melhor que outros descobrir que o Brasil que tínhamos cantado como uma sociedade que estava chegando à terra prometida dos países liberados pela cultura do peso do obscurantismo é ainda uma sociedade do atraso, com saudade do passado. Uma sociedade que lembra aqueles judeus errantes no deserto, a quem Deus tinha dado o maná, símbolo da liberdade, enquanto eles continuavam nostálgicos dos panelões de carneiro e cebola dos tempos da escravidão no Egito.

Bolsonaro parece mais o anti-Moisés da Bíblia, que em vez de receitas de libertação se oferece a devolver aos brasileiros suas velhas saudades dos tempos em que eram escravos sem sabê-lo. Os tempos em que se sentiam felizes alimentando-se das ideias escravistas com as quais seus velhos capatazes os haviam domesticado.

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