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Igreja chilena proíbe os padres de tocar genitais das crianças e beijá-las na boca

Arcebispo de Santiago publica (e retira) uma polêmica orientação para evitar abusos do clero

Rocío Montes
O arcebispo de Santiago, Ricardo Ezzati, celebra uma missa na catedral de Santiago, em maio de 2018.
O arcebispo de Santiago, Ricardo Ezzati, celebra uma missa na catedral de Santiago, em maio de 2018.CLAUDIO REYES (AFP)

Justamente quando o Vaticano promove uma limpeza histórica na Igreja chilena e o Ministério Público mantém 126 casos abertos de abuso sexual de menores cometidos por religiosos, a hierarquia católica do país sul-americano dá mostras de uma profunda crise ao publicar uma orientação voltada aos sacerdotes, na qual os proíbe de dar "abraços muito apertados" e "palmadas nas nádegas, tocar a área dos genitais ou o peito", "fazer massagens", "beijar na boca" ou "deitar ou dormir com meninas, meninos ou adolescentes". Assinado pelo arcebispo de Santiago, Ricardo Ezzati, acusado de encobrir os abusos, o manual não fala em nenhuma parte diretamente de abuso sexual, mas de "sinais errados" ou "fatos dolorosos". A Defensora Pública da Infância no Chile, Patricia Muñoz, confessou estar em "estado de choque" depois de ler o documento de nove páginas que a Igreja retirou de seu site poucas horas depois de divulgá-lo, por causa da controvérsia. "Há uma falta de compreensão brutal."

O documento tinha como titulo Orientações que Fomentam o Bom Tratamento e a Convivência Pastoral Saudável e, segundo explicava Ezzati na introdução, era um texto preliminar de trabalho que deveria resultar em uma versão definitiva em abril de 2019. No capítulo que se refere às "demonstrações de afeto”, proíbe sacerdotes de “abraçarem por trás” “lutar ou fazer brincadeiras que impliquem tocar de maneira inapropriada” e “qualquer expressão de afeto que o menino, a menina, adolescente e pessoas vulneráveis não aceitem e rejeitem”, e recomenda “utilizar o tato somente conforme for adequado e permitido pela cultura local”. Em outra seção do manual é feita referência a "comportamentos que podem ser mal interpretados e que, portanto, devem ser evitados". Nessa linha, afirma que os padres não devem "violar a privacidade, olhando ou tirando fotos quando meninos, meninas, ou pessoas vulneráveis estiverem nus, se vestindo ou tomando banho” ou "usar linguagem imprópria e vulgar". "Qualquer material sexualmente explícito ou pornográfico é absolutamente inadmissível", diz o documento.

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Ao retirar o texto de circulação neste fim de semana, o arcebispado indicou que se tratava de uma ferramenta de trabalho feita de acordo com padrões internacionais e que "serão corrigidos certos conteúdos que foram traduzidos literalmente e que não são adequados ou que se prestam a interpretações incorretas”. “Apresentamos desculpas pelo caso e publicaremos uma nova versão no menor prazo possível", acrescenta o comunicado. As vítimas acharam o texto "vergonhoso". "Isso mostra claramente que a Igreja não entende nada sobre essa tragédia. É escandaloso", diz Jaime Concha, médico chileno de 55 anos, que entre os 10 e os 17 anos sofreu abusos de religiosos num colégio da congregação marista. "Não são mostras de carinho, mas crimes contra meninos, meninas e adolescentes. É o que fizeram conosco quando nos atacaram sexualmente."

A crise da Igreja foi revelada com a visita do Papa ao Chile em janeiro, quando questionou a veracidade das acusações das vítimas. Francisco, no entanto, percebeu seu erro e encomendou uma investigação, considerada histórica. Ele convidou alguns dos que sofreram abusos para visitarem sua residência e assim ouviu seus testemunhos e convocou a Conferência Episcopal Chilena ao Vaticano, onde os 34 bispos tiveram que apresentar sua renúncia. Até agora, o Papa confirmou sete renúncias e decidiu pessoalmente expulsar do sacerdócio por crimes sexuais dois religiosos reconhecidos. O padre Cristián Precht, um ícone da luta contra a ditadura, e Fernando Karadima, símbolo do conservadorismo, do apego de uma parte da Igreja ao poder econômico e social, da direita doutrinária que defendeu o regime militar de Pinochet. A limpeza que Francisco está levando adiante e a investida do Ministério Público atingiram diferentes facções religiosas da Igreja chilena, que, ao contrário do que ocorre em outros países, está fortemente ligada ao processo político nacional nas últimas décadas.

"Eu achava que não pertencia a meus pais, mas aos meus abusadores"

O Ministério Público chileno está levando adiante uma histórica causa penal por abusos contra menores cometidos por membros da Igreja. Há 126 investigações abertas, embora o número aumente com o passar das horas em razão das revistas em instituições católicas em diferentes lugares do país. A investigação abrange 221 padres e oito bispos. Os promotores não apenas buscam determinar a responsabilidade dos perpetradores de crimes sexuais, mas também apontam para a hierarquia do clero chileno, por encobri-los. O mais velho padre investigado tem 90 anos. A maioria dos abusadores é homem, 210. Até agora, foram contabilizadas 245 vítimas, na maioria homens entre 11 e 15 anos de idade. Entre os religiosos estrangeiros investigados por abuso sexual estão oito espanhóis, três italianos, três colombianos, dois irlandeses, um boliviano, um peruano, um filipino e um coreano. Abel Pérez, um irmão marista de 71 anos, espanhol, tem o maior número de vítimas: pelo menos 16.

"Desde que cheguei à escola, na quinta série do ensino básico, um grupo de religiosos começou a me marcar. Como criança, cheguei a acreditar que tinha sido escolhido e que não pertencia a meus pais, mas aos meus abusadores. Não sei como fiz para sobreviver", disse o médico Jaime Concha sobre o que viveu enquanto estudava no Instituto Alonso de Ercilla, na capital chilena: tentativas de masturbação, carícias, beijos forçado e violações. "Abel Pérez foi meu principal agressor, o mais sistemático. Como todos os criminosos sexuais, em público era reservado, inteligente, disciplinado, mas em privado se transformava, atacava e transferia a culpa. "Olha o que você me fez fazer", ele me dizia. O irmão marista, que começou a dar aulas de matemática em 1974, foi transferido 15 vezes de lugar em lugar e até 2010 esteve em contato com crianças e adolescentes. Quando confessou os crimes que cometeu durante décadas, foi expulso da congregação em junho passado e imputado na Justiça.

Segundo o procurador regional Raul Guzmán, que investiga os abusos cometidos pelos maristas, a causa é a de maior extensão das conhecidas até agora no país: "Tem cerca de 25 imputados e perto de cinquenta vítimas, dos nove anos de idade em diante. Temos denúncias desde 1967 até 2017". Segundo o procurador, "o fato de algumas vítimas exporem esses fatos motivou outras a denunciar e pedir que sejam investigados. O direito de conhecer a verdade não está sujeito às regras de prescrição".

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