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Mutação genética elimina uma população de mosquitos transmissores da malária

Edição artificial que causa infertilidade nas fêmeas leva à extinção de insetos cativos

Um dos mosquitos 'Anopheles gambiae' modificados geneticamente.
Um dos mosquitos 'Anopheles gambiae' modificados geneticamente.Andrew Hammond

Cientistas do Imperial College London (Reino Unido) erradicaram uma população cativa de mosquitos transmissores de malária por meio da introdução de uma mutação genética que torna as fêmeas estéreis. A técnica usada, denominada genética dirigida ou impulso genético (gene drive), consiste em editar o DNA de alguns indivíduos e esperar que a mutação se espalhe por sucessivas gerações. A conquista se aproxima dos planos de liberar mosquitos modificados para erradicar populações selvagens de insetos transmissores de doenças como malária, dengue, febre amarela ou zika.

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Esta é a primeira vez que uma experiência consegue anular a capacidade de reprodução de uma população inteira de animais em laboratório usando a edição genética para modificar o gene que determina o desenvolvimento sexual de uma espécie. Em experimentos anteriores, de outros pesquisadores, os mosquitos desenvolveram em poucas gerações novas mutações que conferiram resistência à modificação genética induzida. "A coisa surpreendente aqui é que também houve mutações, mas essas novas variantes genéticas fazem com que o gene [que determina o desenvolvimento sexual] pare de funcionar. Eles não foram capazes de desenvolver resistência ", diz Andrea Cristiani, o principal autor do estudo publicado nesta segunda-feira na Nature Biotechnology.

Pedro Alonso, diretor do Programa Mundial contra a Malária da Organização Mundial da Saúde (OMS), diz que a genética dirigida "é vista como uma das formas mais promissoras para avançar na luta contra a malária e é, de fato, a mais promissora para contemplar "sua eventual erradicação".

Cristiani e seus colegas aplicaram a técnica de edição de genes CRISPR para modificar um gene que determina o desenvolvimento sexual em mosquitos da espécie Anopheles gambiae. Eles introduziram a mutação em 12% de uma população de 600 insetos. Ao longo de um ano, os cientistas cuidaram dos mosquitos, alimentando as larvas com comida de gato, os machos adultos com água açucarada e as fêmeas –as únicas que picam– com sangue descartado de bancos de doadores. A mutação se espalhou gradualmente, de modo que em um período entre 7 e 11 gerações não restava mais nenhum inseto, em vez dos 20 milhões que se esperaria de uma população saudável.

Segundo Cristiani, "as pessoas achavam que nunca poderia funcionar", porque parece contraditório que uma mutação que causa esterilidade possa ser cada vez mais abundante em gerações sucessivas. O ponto-chave é que a mutação é recessiva, isto é, afeta apenas as fêmeas que possuem duas cópias do gene modificado, uma do pai e outra da mãe. Estas se desenvolvem com características anatômicas de ambos os sexos e são incapazes de picar ou colocar ovos. Todos os machos e fêmeas com uma única cópia da mutação puderam se reproduzir normalmente e, assim, garantir a modificação genética induzida na geração seguinte. Com o tempo, não havia fêmeas férteis suficientes para garantir a continuidade da população.

Os cientistas optaram pela mutação desse gene específico porque é uma região de DNA "muito conservada" na evolução. Isto significa que requer uma estrutura muito precisa para funcionar. Qualquer alteração do seu código genético, por menor que seja, resulta na morte ou infertilidade do animal e, por isso, não persistiu nenhuma das mutações aleatórias que poderiam ter dado resistência à população.

Técnica é “muito emocionante” porque os mosquitos “não são capazes de se esquivar dela evolutivamente”, segundo um entomologista

"Um gene como esse está presente em todas as espécies de insetos", explica Cristiani: "A descoberta abre a possibilidade de atacar outros transmissores de doenças, como os mosquitos aedes [portadores dos vírus da dengue, febre amarela e zika] ou pragas de insetos." Zachary Adelman, entomologista da Universidade A & M, do Texas (EUA), que não está envolvido neste estudo e desenvolveu experimentos genéticos direcionados para mudar o sexo para mosquitos aedes, considera esta técnica "muito interessante" porque os mosquitos” não são capazes de se esquivar dela evolutivamente".

"Muitas vezes os pesquisadores tentam exagerar seus resultados. Esses cientistas fizeram um bom trabalho ao serem cautelosos com suas interpretações ", acrescenta Adelman. "É um avanço tecnológico incrível, mas ainda há muito a ser comprovado", observa. Os autores do estudo explicam que será necessário fazer novos experimentos em condições de laboratório que reflitam o ambiente tropical natural dos mosquitos.

O consenso é que os primeiros testes de campo ainda vão demorar pelo menos cinco anos. "Acredito que poderemos obter resultados convincentes na próxima fase de semicativeiro. Daí para as populações silvestres entramos em território completamente desconhecido, em que as decisões políticas provavelmente serão mais relevantes do que nossa capacidade técnica ", conclui Cristiani. Alonso ressalva que a implementação envolverá novos desafios, que "não serão menores". "O risco é sempre o desconhecido", diz ele: "[Na OMS] nós o vemos não necessariamente com otimismo, mas com esperança".

A MALÁRIA EM CIFRAS

A malária é uma doença causada por parasitas do gênero Plasmodium, que afeta principalmente os países africanos. Das cerca de 3.500 espécies de mosquito existentes, apenas cerca de 40 transmitem os parasitas, por picadas das fêmeas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que em 2016 houve 216 milhões de casos em 91 países, um aumento de 5 milhões em relação ao ano anterior. Segundo os pesquisadores do estudo, este foi o primeiro ano em que os casos aumentaram em mais de duas décadas.

A doença produz febre, geralmente entre 10 e 15 dias após a picada, o que dificulta sua detecção. A OMS alerta que, se não for tratada no primeiro dia, pode provocar complicações e levar à morte. Em 2016, estima-se que o investimento total em controle e eliminação da malária foi de 27 bilhões de dólares (110 bilhões de reais). Desse valor, 31% foi gasto pelos governos dos países onde a doença é endêmica.

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