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EUA ameaçam juízes do Tribunal de Haia para evitar investigação sobre crimes de guerra

Proibição da entrada dos magistrados no país foi uma das duras medidas anunciadas pelo conselheiro de Segurança Nacional caso o TPI apure crimes norte-americanos no Afeganistão

Pablo Guimón
John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca
John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional da Casa BrancaAndrew Harnik (AP)

Os Estados Unidos atacaram com inusitada agressividade o Tribunal Penal Internacional (TPI), antigo inimigo da ala mais à direita do Partido Republicano, e ameaçaram impor sanções aos juízes da corte localizada em Haia se levarem adiante uma investigação sobre crimes de guerra supostamente cometidos por norte-americanos no Afeganistão. "Os Estados Unidos usarão todos os meios necessários para proteger seus cidadãos e os dos nossos aliados contra as acusações injustas desse tribunal ilegítimo", advertiu John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump, em um discurso na Sociedade Federalista, uma entidade conservadora em Washington. "Nós não cooperamos com o TPI, não vamos ajudar, não vamos participar, vamos deixar que morra por conta própria, afinal, para nós o TPI já está morto", acrescentou o falcão ultraconservador, em seu primeiro discurso importante desde que se juntou à Casa Branca em abril.

Se o TPI continuar com a investigação contra soldados e pessoal da inteligência dos EUA durante a guerra no Afeganistão – ameaçou Bolton –, o governo Trump estudará proibir a entrada de juízes e promotores nos Estados Unidos. Processá-los no sistema judiciário dos EUA ou impor sanções a recursos que possam ter em seu sistema financeiro são outras possíveis punições que Bolton mencionou. As sanções seriam estendidas, afirmou, a qualquer empresa ou Estado que colabore com uma investigação do TPI contra cidadãos dos EUA. Washington, acrescentou o ex-diplomata republicano, também considerará negociar mais acordos bilaterais que proíbam terceiros países de entregar cidadãos americanos ao tribunal de Haia.

"Em novembro de 2017, a Procuradoria do TPI solicitou autorização para investigar supostos crimes de guerra cometidos por oficiais militares e de inteligência dos EUA durante a guerra no Afeganistão, uma investigação que nem o Afeganistão nem nenhum outro Estado pediu. Agora, a qualquer hora o TPI anunciará uma investigação formal contra esses patriotas americanos", afirmou Bolton, na véspera do aniversário dos ataques de 11 de setembro de 2001, que estão na origem da guerra no Afeganistão. Desde então, os Estados Unidos continuam enredados nesse conflito, para o qual Barack Obama propôs um cronograma de retirada de tropas, que não conseguiu cumprir. A administração Trump, até o momento, não fixou datas.

No mesmo discurso, Bolton anunciou que os EUA vão fechar o escritório de representação da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em Washington, dando como motivo as medidas tomadas pelos palestinos para que o TPI investigue Israel por crimes de guerra. "Os Estados Unidos sempre estarão com nosso amigo e aliado Israel", garantiu. "Os Estados Unidos apoiam um processo de paz robusto e direto e não permitirão que o TPI, ou qualquer outra organização, restrinja o direito de autodefesa de Israel."

"Vamos valorizar medidas no Conselho de Segurança da ONU para restringir os extensos poderes do TPI, incluindo a garantia de que não exerça a sua jurisdição sobre os americanos e cidadãos de nossos aliados que não ratificaram o Estatuto de Roma", disse Bolton, que já se mostrou extremamente crítico do tribunal durante os anos em que era alto funcionário do Departamento de Estado na administração de George W. Bush e, posteriormente, embaixador do país na ONU.

Durante o primeiro mandato do presidente George W. Bush, os Estados Unidos não ratificaram o Estatuto de Roma, que criou o TPI em 2002, tribunal que tem agora 123 Estados signatários e cuja missão é trazer à Justiça os autores de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio. Nem Israel assinou. Após a chegada de Obama à Casa Branca em 2009, Washington foi menos agressivo com o trabalho do TPI e até colaborou com investigações judiciais, como os crimes em Darfur. A vitória de Donald Trump ressuscitou argumentos de 2002, como as acusações, expressas nesta segunda-feira por Bolton, de que o tribunal é "supérfluo" e "viola a soberania nacional" dos EUA. Para Bolton, a indefinição dos crimes visados pelos "burocratas de Haia" pode constituir "um pretexto para investigações com motivações políticas". "Você iria entregar o destino de cidadãos americanos a um comitê de outras nações, incluindo Venezuela e a República Democrática do Congo, ou entidades que nem sequer são Estados, como a Autoridade Palestina?”, perguntou Bolton para o público. "Não fariam isso. Eu não faria. E esta Administração não fará isso ".

TPI: "Não comentamos declarações políticas"

ISABEL FERRER (La Haya)

Os Estados Unidos não são membros do Tribunal Penal Internacional (TPI) e, portanto, escapam a sua jurisdição. O Afeganistão é, e por isso a promotoria pediu permissão em 2017 para abrir uma investigação formal sobre supostos crimes de guerra e crimes contra a humanidade, cometidos entre 2002 e 2003. Os supostos autores são soldados dos EUA e, se for o caso, poderiam ser perseguidos pela Justiça internacional: atuaram em um Estado que faz parte do Estatuto de Roma, texto fundacional do tribunal.

"Não comentamos declarações políticas, seja qual for sua procedência. O Tribunal Penal é um órgão imparcial que se rege por seu Estatuto e não toma partido em nenhum de seus casos", disse na segunda-feira Fadi Abdallah, seu porta-voz. A Câmara Preliminar está com a documentação do caso afegão, e Fatou Bensouda, o procurador-chefe, aguarda sua decisão para dar prosseguimento. Ele também quer descobrir se "crimes semelhantes aos apontados no Afeganistão, e relacionados a esse conflito armado, foram perpetrados em outros países membros do TPI". No relatório enviado aos juízes em 2017, Bensouda aponta "para os talibãs, outros grupos armados e autoridades como supostos autores de crimes iguais". Neste caso, trata-se de tortura supostamente aplicada "pelo governo afegão e seus serviços secretos e policiais".

A lista dos crimes apresentada pela Procuradoria do Tribunal para a investigação inclui "crimes de guerra, entre os quais tortura, tratamento cruel e contra a dignidade, estupro e outras formas de violência sexual perpetrados por soldados do Exército dos Estados Unidos e por membros da CIA nos territórios do Afeganistão, Polônia, Romênia e Lituânia". No caso dos serviços de inteligência, o relatório preliminar indica o possível uso de prisões secretas nos três países europeus mencionados.

As forças de segurança afegãs também são acusadas de crimes de guerra. E o Taliban e outros grupos armados, de "crimes de guerra e crimes contra a humanidade, como assassinato, prisão, perseguição por motivos políticos e de gênero, atentados intencionais contra civis e pessoal humanitário, alistamento de menores de 15 anos e morte e ferimentos pelas costas”.

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