_
_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O Incêndio da Razão Comum

O Brasil é um prisioneiro feliz da modernidade. Deseja o novo, a utopia, a revolução e ignora o que as gerações anteriores lhe concederam como patrimônio

Polícia Federal investiga causas do incêndio no Museu Nacional.
Polícia Federal investiga causas do incêndio no Museu Nacional. Silvia Izquierdo (AP)
Mais informações
O Brasil queimou – e não tinha água para apagar o fogo', por ELIANE BRUM
Mais que um incêndio, um triste símbolo de um país que abandona a si mesmo, por JUAN ARIAS
Orçamento para lavar carros de deputados é quase três vezes maior que o do Museu Nacional

O Brasil ignora investimentos na proteção e promoção da sua memória há muito tempo. Tanto que até já esqueceu que precisa fazer isso. São necessárias catástrofes para lembrar. Ocorre que infelizmente se transformam em espetáculos midiáticos e raramente trazem mudanças.

O colapso do edifício Wilton Paes de Almeida no Centro de São Paulo trouxe à tona a situação de propriedade públicas e privadas ociosas nos centros urbanos, a luta pela moradia e o direito à urbanidade. Já esquecemos. Há um mês foi anunciada aumento do teto de uso do FGTS, passando para 1,5 milhão, para aquisição de imóveis novos. Este valor passa muito longe das necessidades da moradia social. Comemorou o setor imobiliário pela possibilidade de aquecimento do mercado. Mais prédios serão construídos em bairro novos e ermos nas cidades brasileiras. Nenhum prédio será reabilitado. Tão pouco seu reuso será para dar prioridade a quem precisa. O recurso público capitalizando poucos.

O Brasil é um prisioneiro feliz da modernidade. Deseja o novo, a utopia, a revolução e ignora o que as gerações anteriores lhe concederam como patrimônio, provavelmente porque estas eram imperfeitas aos olhos da elite intelectual, sedenta de novos lugares e territórios para aplicar suas ideologias.

Um dos cincos maiores museus de história natural do mundo, o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro pegou fogo no dia 2 de Setembro. Vinculado à UFRJ, o museu é um centro de pesquisas de arqueologia, antropologia, paleontologia, botânica e inúmeras outras áreas. É um centro de formação de conhecimento e de ampliação. Os prenúncios de uma catástrofe datam desde muito. Anos 80, anos 2000, 2015. São inúmeros os relatos. O incêndio é um evento cronologicamente arquitetado por décadas de confusão e ineficiência.

Infelizmente a UFRJ demonstra profunda incapacidade de gerir seu patrimônio imobiliário cuja grande parte é também de alto valor cultural. Já foi perdida a Capela de São Pedro de Alcantara em 2011, no campus da Praia Vermelha. Há décadas a antiga Escola de Eletrotécnica esfarela em praça pública. Literalmente. É vizinha da Praça da República no Centro do Rio. O prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, também conhecido como Reitoria, sofreu incêndio nos andares superiores em 2016. A biblioteca da FAU passaria por reforma. Ambos estão fechados até hoje. O prédio funciona precariamente. Do mesmo modo, vergonhosamente, segue fechado o Canecão. O Colégio de Altos Estudos funciona com maior parte ociosa e obras não concluídas, na Avenida Rui Barbosa. O IFCS funciona precariamente. Após décadas de abandono está em recuperação finalmente o Hospital São Francisco de Assis na Av. Presidente Vargas.

Não se trata de golpe, de estatismo, ou avanço sobre as conquistas progressistas. É somente a velha e conhecida incompetência.

As brasas do Museu Nacional aguardam o sopro da disputa eleitoral, mas o que evidenciam na verdade é o conturbado encerramento de um ciclo histórico e político onde falhamos todos e todas as matizes. Estamos incapazes de conjurar o século XXI para o Brasil. O pragmatismo político não conseguiu edificar um arranjo social capaz de avançar autonomamente. Do mesmo modo, a sociedade carrega ainda dentro si os embriões da ignorância que alimenta morais vacilantes. Exatamente onde poderia a memória, os centros históricos, os museus, a cultura promover a transfiguração, pela educação aplicada, pelo conhecimento ampliado, pelo respeito ao diferente, dando camada amorosa à cidadania utilitária, falhamos.

Cidades sem densidades, condomínios, favelas, grades, ilhas e isolamentos impedindo acesso à urbanidade, o fenômeno maior e gerador do bem público. O Rio sofre mais pois ele congrega os acervos da nação, os experimentos estéticos, as invenções sociais. A cidade descapitalizada é ainda fantasma de um sonho de nação aberta ao mundo. Isola-se o Brasil com a perda do Museu Nacional. Estamos desmemoriados na face da Terra.

O serviço público serve a si mesmo. O espaço público é loteado por empresas e ambulantes. Políticos não precisam entregar suas promessas. Teocracias governam, milícias fazem loteamento e ignorantes orgulhosos berram como candidatos à Presidência da República. Líderes populares presos por corrupção são beatificados. Privilégios são exibidos com toga. Leis não precisam cumpridas. Acervos não precisam ser apreciados.

Historiadores do futuro chamarão o incêndio do Museu Nacional como o fim da Nova Democracia Brasileira. Conseguiremos progredir?

Poderemos se a ideia de bem público para todos for destituída de signo ideológico, sendo o que simplesmente é: algo que pertence a todos, feita por todos e mantida por todos. Comunitariamente concebida e preservada. Como um acervo de identidade coletiva. Enquanto o bem comum for propriedade de um partido, de uma tônica, de um líder, ou uma fé, arderá a fagulha de novos incêndios absolutos sobre a razão.

Washington Fajardo é arquiteto e urbanista. Foi responsável pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e presidente do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro durante a gestão do prefeito Eduardo Paes

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_