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Eleições 2018
Análise
Exposição educativa de ideias, suposições ou hipóteses, baseada em fatos comprovados (que não precisam ser estritamente atualidades) referidos no texto. Se excluem os juízos de valor e o texto se aproxima a um artigo de opinião, sem julgar ou fazer previsões, simplesmente formulando hipóteses, dando explicações justificadas e reunindo vários dados

Transferência de votos no Brasil de Vargas e Brizola a Lula

Transferência de votos não é um fenômeno simples. Ocorreu algumas vezes na história do Brasil e a maneira como se deu pode ser instrutiva em relação ao que pode ocorrer em 2018

Fernando Haddad em atividade de campanha no Rio no último dia 28.
Fernando Haddad em atividade de campanha no Rio no último dia 28.Silvia Izquierdo (AP)

Transferência de votos não é um fenômeno simples. Ocorreu algumas vezes na história do Brasil e a maneira como se deu pode ser instrutiva em relação ao que pode vir a ocorrer nas eleições de 2018. São duas as transferências de voto mais conhecidas da história do Brasil: o apoio de Vargas a Dutra, que definiu o resultado da eleição de 1945, e o apoio de Brizola a Lula, que definiu a transferência de votos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul durante o segundo turno das eleições de 1989. Vale a pena sistematizarmos o que sabemos das duas eleições para avaliarmos quais são as possibilidades de transferência de votos entre Lula e Fernando Haddad e onde e como ela poderá se dar.

A eleição de 1945 é um caso paradigmático da capacidade de grandes detentores de votos determinarem comportamentos eleitorais. Vargas, assim como Lula, detinha apoio suficiente para se colocar nesta posição ao fim do seu primeiro ciclo na presidência. Assim, ele deixa o poder mantendo um capital político que levou consigo para o seu isolamento em São Borja, onde se instalou em 1º de novembro de 1945. Enquanto a campanha eleitoral se desdobrava com os dois principais candidatos, Getúlio Vargas se mantinha calado e mantinha certo suspense até mesmo sobre a sua candidatura que, tal como ele sabia, era completamente inviável e geraria um veto militar.

Os dois candidatos naquela eleição eram Eurico Gaspar Dutra e o brigadeiro Eduardo Gomes. Como se sabe, o brigadeiro Eduardo Gomes era popularíssimo na capital da República devido a sua participação na Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. A popularidade o colocava como forte candidato em um momento no qual a UDN, partido pelo qual ele concorreu, agregava até mesmo intelectuais de esquerda como Otávio Mangabeira. Já Eurico Gaspar Dutra era visto como um homem sem atrativos eleitorais e enfrentava dificuldades nas eleições. A estratégia de Vargas foi entrar na eleição no último momento pedindo votos para Dutra. Apenas no dia 27 de novembro de 1945, cinco dias antes das eleições, Getúlio veio a público pronunciar o seu apoio a Dutra em uma nota na qual dizia: "a abstenção é um erro. Não se vence sem luta, nem se participa da vitória ficando neutro." A nota, que foi afixada em postes no Rio de Janeiro, teve forte impacto eleitoral. Dutra venceu a eleição com 3,2 milhões de votos enquanto o brigadeiro obteve apenas 2 milhões (reproduzo aqui a descrição do processo feita por Lira Neto). Evidentemente, a única estratégia a ser apreendida aqui é a de postergar a decisão de transferência de votos. No mais, tínhamos em 1945 um eleitorado pequeno e altamente informado centrado nas cidades do Rio e de São Paulo que absorveu rapidamente a informação sobre o apoio de Vargas a Dutra. Para além disso, não podemos transformar a eleição de 1945 em exemplo de transferência de votos.

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A eleição presidencial de 1989 nos oferece indicadores muito mais precisos e mostra tanto as possibilidades quanto os limites da transferência de votos. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o contexto no qual Brizola transferiu para Lula os votos obtidos no primeiro turno da eleição presidencial foi ainda mais complicado do que aquele envolvido no apoio de Vargas a Dutra. O motivo da dificuldade reside no fato que Brizola e Lula, ou PDT e PT, disputaram os mesmos espaços durante toda a primeira fase da democratização. Especialmente no Rio Grande do Sul, onde o PDT teve uma tradição de organização popular tanto em Porto Alegre quanto no interior do Estado, essa disputa foi forte e envolveu questões políticas de fundo, tal como a organização dos setores não organizados, assim como, disputas por espaço político entre os setores organizados da população. Ainda assim, a transferência de votos ocorreu tanto no Rio Grande do Sul quanto no Rio de Janeiro.

Vale a pena apontar algumas características da transferência de votos no Rio Grande do Sul em 1989 para pensar o fenômeno. Em primeiro lugar, é possível perceber no gráfico abaixo que entre o eleitorado das cidades com mais de 200.000 habitantes houve transferência praticamente total entre Brizola e Lula. Os votos de Brizola nas cidades com mais de 200.000 habitantes no RS se transferiram de modo quase integral para Lula durante o segundo turno das eleições de 1989. No primeiro turno, Brizola teve 69,44% dos votos para presidente no Rio Grande do Sul enquanto Lula teve 6,52%. No segundo turno Lula teve 75,66% dos votos para presidente, porcentagem superior à soma dos votos dele e de Brizola, sugerindo alguma transferência também de votos de Mario Covas ou Ulisses Guimarães.

A transferência de votos em cidades menores, especialmente nas de porte médio, foi menor. Em primeiro lugar, a votação de Leonel Brizola nessas cidades foi quase 10 pontos percentuais menor do que sua votação em cidades com mais de 200.000 habitantes. Nas cidades menores, então, Brizola teve 60,47% dos votos e Lula teve 6,46%. No segundo turno, a porcentagem de Lula foi ligeiramente inferior à soma das porcentagens dos votos atribuídos aos dois candidatos no primeiro turno. Assim, temos uma primeira aproximação ao fenômeno baseado no caso de um Estado onde de fato de seu deu a transferência de votos entre candidatos na eleição de 1989. Analisemos um segundo caso, o do Rio de Janeiro na mesma eleição.

Brizola conseguiu, no Estado do Rio de Janeiro, a maioria dos votos ainda no primeiro turno da eleição de 1989, mas em porcentagens inferiores às obtidas por ele no Rio Grande do Sul. A ele foram direcionados 55,09% dos votos nas cidades fluminenses com mais de 200.000 habitantes e Lula obteve 6,46%. No segundo turno, nas cidades com mais de 200.000 habitantes daquele Estado, Lula obteve 75,66% dos votos, superando a soma dos votos obtidos por ele e por Leonel Brizola em 1989 e sugerindo transferência dos votos de outros candidatos como Mário Covas.

Mais uma vez, o fenômeno foi diferente em cidades de médio porte. Nas cidades entre 50.000 e 100.000 habitantes, em primeiro lugar, Leonel Brizola teve menos votos (47,88%), repetindo o padrão encontrado no Rio Grande do Sul de um diferencial nos votos entre cidades de mais de 200.000 habitantes e cidades até 100.000 habitantes. Porém, no Rio de Janeiro, nas eleições de 1989, Lula obteve um patamar de votos mais alto nas cidades com população entre 50.000 e 100.000 habitantes do que o obtido nas cidades com mais de 200.000 habitantes. Quando analisamos a transferência de votos, ela também ficou um pouco abaixo da soma das duas candidaturas, sugerindo alguma dificuldade no processo.

Uma vez analisados os dados podemos inferir algumas questões sobre a transferência de votos no Brasil. Em primeiro lugar, a transferência ocorre entre líderes com carisma e eleitorado cativo. Esse parece ser o caso tanto de Vargas em 1945 quanto de Brizola em 1989 e parece ser o caso agora com Lula. Em segundo lugar, a transferência de votos ocorre até mesmo em situações desfavoráveis para aqueles que estão transferindo votos. Vargas tinha mágoas com Dutra ligadas à sua saída do Palácio da Guanabara em outubro de 1945. Brizola tinha mágoas com Lula relacionadas à construção do PT. A frase dele "vamos ter que engolir o sapo barbudo" foi dita no contexto da transferência de votos em 1989 (agradeço ao Octávio Costa pela dica). Ou seja, a transferência vai depender mais do ex-presidente Lula do que de Fernando Haddad, se for repetido o padrão anterior.

*Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, coordenador do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação. Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2018, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.org

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