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Festivais de música
Crônica
Texto informativo com interpretação

Celulares proibidos e programação surpresa: assim funciona o antifestival secreto de Berlim

Estivemos à segunda edição do escondido PEOPLE, um festival sem promoção alguma e que informa sobre suas atrações por e-mail

Show no Festival People.
Show no Festival People.David Martin Page

Há dois anos Justin Vernon, do Bon Iver; Aaron Dessner, do The National, e o magnata da hotelaria alemão Tom Michelberger decidiram fazer um festival de música completamente diferente, uma experiência distinta da habitual que permanecesse na retina e no coração de qualquer amante da expressão musical em todas as suas formas. A cidade escolhida foi Berlim, capital da contracultura europeia, onde o hippie, o punk, o reciclado, o moderno e o hipster coexistem de maneira surpreendentemente harmoniosa.

Um festival sem promoção alguma, que informa sobre as atrações e as últimas novidades por e-mail, mantendo assim seu caráter reservado e minoritário. Quem ficasse sabendo ficava e, felizmente, graças a uma amiga esperta que descobriu e me convidou, tive a imensa sorte de poder assistir à primeira edição do PEOPLE em 2016.

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A ideia não podia ser mais excitante: em vez de uma programação com grupos conhecidos, mais de 80 músicos de diferentes bandas: Alt-J, The Staves, Bon Iver, The National, Polica, Kings of Convenience e figuras de primeira mão como Lisa Hannigan, Damien Rice, Woodkid e Sam Amidon, que durante uma semana e colaborariam e conviveriam em harmonia artística para nos mostrar depois suas criações em dois dias com horários os quais não teríamos a menor ideia até estarmos ali presentes.

De barco e sem filas

A coisa parecia que seria muito boa e acabou sendo. Foram dois dias difíceis de esquecer, que com todos os acertos e (pequenos) erros, foi uma experiência inédita e transcendente. O PEOPLE se tornou o festival de culto imprescindível, com o qual você excita seus amigos e amigas ao voltar da viagem. Felizmente este ano foi anunciada a segunda edição. Desta vez seria em agosto, para desfrutar do calor berlinense e voltar como acontece nas segundas edições: com mais músicos (cerca de 150 desta vez), mais palcos, mais surpresas, mais de tudo. E com novas e empolgantes atrações como Feist, Jenny Lewis, Kurt Wagner, músicos do Sigur Ros, Parcels, Arcade Fire, Liima e muitos outros.

Então fomos para lá novamente, usando outra vez o minicruzeiro, pois já vamos aos outros festivais de metrô e de ônibus e isso é muito mais legal, na verdade. Na fila para entrar no barco a organização te dá um jornal que resume sua filosofia, como foram os ensaios, etc., e este ano inclusive te incentivam a enviar desenhos, fotos e textos para colaborar no resumo geral do festival que será feito posteriormente. Até que de repente aparece Erlendyek Øye, do Kings of Convenience, com o ukulele na mão e ensolaradas melodias em sua voz nórdica para nos entreter enquanto entramos no barco. Igualzinho ao Primavera Sound ou o Madcool.

Ao chegar, as filas para pegar a pulseira são moderadas e fluem rapidamente. Assim, ao entrar no Funkhaus a primeira surpresa é a total ausência de patrocinadores, o que faz com que sua mente fique relaxada ao não receber o habitual bombardeio comercial. É uma sensação maravilhosa e muito recomendável que deveria ser quase obrigatória.

Sem celulares

A dinâmica durante o dia é a seguinte: o público é dividido em seis grupos (cada um com sua pulseira numerada) e nos dão um folheto com quatro shows surpresa programados a cada dia nos diferentes estúdios. Neste ano também foi acrescentado um pequeno palco no bosque e alguns showcases surpresa que você descobrirá ao longo dos dois dias em diferentes salas do lugar, enquanto o palco no salão principal também está preparado para receber o público dos shows noturnos.

Quando você vai aos estúdios para ver o que foi programado, uma garota com um megafone e grandes cartazes com diferentes números espera por você na entrada e te convida a entrar. A expectativa é notável, enquanto por todos os lados te lembram de que não pode usar o celular e que você deve estar “mentalmente presente” para aproveitar plenamente a experiência. E todos nós nos sentamos organizadamente no chão para assistir às apresentações em absoluto silêncio. Idílico, não é?

Em todos os shows a boa energia entre os artistas é muito palpável, estão fazendo algo diferente de sua rotina habitual e isso pode ser notado, a cumplicidade e os sorrisos os entregam. Nem mesmo a equipe técnica faz cara feia diante da bagunça que têm de fazer entre uma apresentação e outra e alguns deles até sorrirem. Um mistério exemplar.

E de fato é difícil você não ficar com o coração apertado quando pode desfrutar de tão de perto as maravilhosas vozes aveludadas de artistas femininas como Feist, Jenny Lewis e Lisa Hannigan, ou ver Justin Vernon com os gêmeos Dessner do The National totalmente entusiasmados apresentarem seu novo projeto Big Red Machine se empolgarem com Damien Rice tocando no pequeno palco do bosque enquanto o público canta junto as canções com satisfação orgástica. É por isso que pagamos e por coisas como essas amamos a música tão profundamente. E você não pode deixar de pensar em como seria legal que Dylan, Neil Young ou Patti Smith participassem dessa experiência algum dia.

Enquanto isso, a confusão de músicos indo e vindo é notável; em um momento você vê membros do Sigur Ros fazendo um envolvente noise islandês em uma pequena sala cheia de amplificadores e em outro você se deita no chão de uma sala com os olhos fechados enquanto curte uma experiência sonora de 360 graus e muitas vezes não sabe exatamente ao que está assistindo, às vezes você olha e pensa, “ah, o cara do contrabaixo é do Arcade Fire, o do trompete é de Beirute e esse guitarrista africano é Sinkane!”, acrescentando à experiência um jogo extra de reconhecimento facial e instrumental.

Durante dois dias o festival se torna uma maravilhosa miscelânea multidisciplinar de música clássica, rap, dança contemporânea, folk, country, eletrônica, etc., em que você se deixa levar pelas propostas sonoras que te oferecem, não pode escolher na maioria das vezes, o que faz de tudo um exercício zen de aceitação instantânea muito saudável para o seu espírito. E você não pode evitar sair dali completamente exausto, mas com uma enorme satisfação e com vontade de voltar.

Não se sabe quando será a próxima edição, mas o que o PEOPLE deixa claro é que outro modelo de festival é possível e, principalmente, necessário. Uma experiência, com todos os seus acertos e erros se torna algo mais real e autêntico, mais personalizado e menos um evento para rebanhos, mais interativo e com menos preocupação com as aparências. Essa proposta artística e cultural criada para que as pessoas e os músicos experimentem a música de outra maneira é um caminho (difícil) a ser seguido, pois exige muito esforço e pessoas muito comprometidas para realizá-lo. Mas é possível.

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