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Ex-alto funcionário do Vaticano acusa o Papa de encobrir abusos sexuais

Ex-núncio nos EUA diz que Francisco conhecia as acusações de pedofilia contra o cardeal Theodor McCarrick

Ativista mostra um cartaz contra o papa Francisco (c), que percorre as ruas do centro de Dublin a bordo do papamóvel, no sábado. No vídeo, o Papa reza em Dublin pelas vítimas dos abusos.Vídeo: WILL OLIVER (EFE) | ATLAS
Daniel Verdú
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O arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio em Washington entre 2011 e 2016, publicou uma carta de 11 páginas em que acusa o papa Francisco de “acobertar” e silenciar os abusos sexuais do cardeal norte-americano Theodor McCarrick e pede que o Pontífice se “demita” por isso. Viganò afirma na carta, divulgada justo quando o Papa se encontra de viagem pela Irlanda e se reuniu com vítimas de abusos cometidos por sacerdotes, que ele informou pessoalmente Francisco que o cardeal tinha sido acusado de assédio sexual a um adolescente e que Bento XVI já lhe havia imposto uma série de sanções que restringiam seus poderes. Em julho deste ano, o Papa retirou de McCarrick o posto de cardeal por essas mesmas denúncias, um fato insólito na Igreja desde 1928.

A carta, uma acusação sem precedentes a um Pontífice escrita por uma autoridade em uma posição tão alta na hierarquia eclesiástica, foi publicada por diversos órgãos da mídia católica conservadora, como o The National Catholic Register, LifeSiteNews e InfoVaticana, tribunas habituais da guerra que o setor ultraconservador mantém com Francisco desde que iniciou o Pontificado. Nela, Viganò —um influente e polêmico arcebispo que ocupou altos cargos no Vaticano e que já acusou em outras ocasiões vários membros da cúria— afirma que falou pessoalmente com o papa Francisco, logo depois de sua eleição em 2013, sobre a gravidade das sombras que rodeavam McCarrick. O denunciante, que já esteve nos meandros do chamado caso Vatileaks e é um ultraconservador da linha antigay, deu detalhes e expôs longamente uma série de fatos daquele dia.

Ele afirma, porém, que Francisco “continuou encobrindo” e “não levou em consideração as sanções que o papa Bento havia imposto” ao cardeal quando anos atrás tomara conhecimento de uma série de abusos que o norte-americano havia cometido contra jovens seminaristas aos quais, supostamente, convidava a “dormir em sua cama” em uma casa na praia. Não só ignorou, prossegue na acusação, mas o atual papa o tornou um “conselheiro confiável”. Viganò, que foi afastado por Bento XVI e enviado a Washington, decidiu falar porque “a corrupção chegou aos níveis mais altos da Igreja”.

Segundo afirma em sua carta —que o Vaticano ainda não respondeu—, no primeiro encontro que manteve com Francisco este lhe pediu sua impressão sobre McCarrick. “Eu lhe respondi com total franqueza e, se querem saber, com muita ingenuidade: ‘Santo Padre, não sei se o senhor conhece o cardeal McCarrick, mas se perguntar à Congregação para os Bispos, há um expediente deste tamanho sobre ele. Corrompeu gerações de seminaristas e sacerdotes, o papa Bento lhe obrigou a retirar-se para uma vida de oração e penitência’. O Papa não fez o mínimo comentário sobre minhas graves palavras e seu rosto não mostrou nenhuma expressão de surpresa, como se já soubesse da situação há muito tempo, e em seguida mudou de assunto”, diz no texto.

Carlo María Viganò.
Carlo María Viganò.

A acusação, justo no momento em que o Papa se encontra na Irlanda, território dos maiores escândalos de abusos por membros do clero a menores, e quando a Igreja enfrenta um novo escândalo desse tipo na Pensilvânia, se baseia somente no depoimento de Viganò e em uma série de datas citadas para demonstrar a veracidade de seus encontros. Mas é um enorme míssil lançado dos Estados Unidos e que também aponta diretamente contra o cardeal Donald Wuerl, atual arcebispo de Washington, já acusado de encobrir os abusos da Pensilvânia. Segundo o denunciante, ele também conhecia o caso McCarrick. “Eu mesmo falei do assunto com o cardeal Wuerl em várias ocasiões, e não precisei entrar em detalhes porque ficou claro de imediato que estava plenamente ciente disso [...] Suas declarações recentes dizendo que não sabia de nada sobre esse assunto... fazem rir. Mente vergonhosamente.”

A carta de Viganò está cheia de acusações ao círculo do Papa —também em questões pessoais e de orientação sexual—, entre os quais o secretário de Estado, Pietro Parolin, e seu conselheiro, o cardeal Maradiaga. O tom destila certa antipatia pessoal. Algo também leva a pensar que o momento escolhido para a publicação é parte da persistente campanha ultraconservadora vinda dos EUA contra o atual Pontífice, à qual Viganò se uniu recentemente. Ainda mais considerando que hoje é o dia em que o Papa dá sua tradicional coletiva de imprensa no avião durante a viagem de volta a Roma.

Mas o conteúdo das acusações vai muito além do que normalmente esses círculos apontam. "O cardeal Wuerl, ciente dos abusos cometidos pelo cardeal McCarrick e das penalidades impostas a ele por Bento XVI, passou por cima da ordem do Papa e o autorizou a residir em um seminário em Washington [nos Estados Unidos]. Fazendo isso colocou outros seminaristas em risco ", insiste na carta.

McCarrick sempre negou os fatos e recentemente expressou em uma declaração sua “total” colaboração com as autoridades do Vaticano. No entanto, em 20 de junho, uma comissão de investigação em Nova York determinou que as acusações "eram bem fundamentadas e confiáveis". Em resposta, nessa mesma semana, o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, ordenou que o cardeal abandonasse o serviço público, seguindo as instruções do Papa.

Em 20 de julho, um homem quebrou seu silêncio depois de 40 anos e declarou ao The New York Times que o cardeal McCarrick, que se fazia chamar pelos meninos de sua paróquia de Uncle Ted (Tio Ted), abusara dele quando tinha 11 anos. O então sacerdote estava com 39 anos e continuou a cometer abusos por mais duas décadas.

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