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Roraima à flor da pele

Em Boa Vista e Pacaraima, EL PAÍS conta as contradições da crise de imigração de venezuelanos, inflamada por políticos que exploram retórica xenófoba para fins eleitorais

Brasileiro distribui pães a refugiados venezuelanos.
Brasileiro distribui pães a refugiados venezuelanos.Douglas Magno
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Em poucos minutos, uma fila de dezenas de venezuelanos se formou na manhã desta quinta-feira em uma das ruas paralelas à rodoviária de Boa Vista, em Roraima. No Estado brasileiro que mais recebe quem foge do flagelo no país vizinho, todos aguardavam a sua vez para retirar uma bolsa de pães que um senhor de boina verde, que preferiu não se identificar, distribuía com agilidade. "Não participo de nada de política, faço de coração, para ajudar essas pessoas que estão passando fome".

Enquanto retirava as sacolas da caçamba da camionete, o senhor, no entanto, reclamava das consequências do grande fluxo migratório dos venezuelanos. "Eu sou contra essa abertura da fronteira, porque veio de tudo. O [Nicolás] Maduro abriu as portas das penitenciárias e veio tudo pra cá. Desde a chegada dos venezuelanos, a criminalidade aumentou muito. Boa Vista não está aguentando mais", diz. Ainda segundo o doador de pães, ele não quer saber "se está ajudando pessoas do bem ou se são bandidos", apenas faz a sua parte.

As declarações são reveladoras de uma crise complexa, que se arrasta desde o ano passado. Boa parte da população se mostra ressentida pela precarização de serviços públicos, que estão sendo pressionados pela demanda dos imigrantes, e pelo aumento da violência no Estado menos povoado do Brasil. A tensão tem escalado, com episódios de xenofobia inflamados por políticos que exploram o tema em campanha eleitoral e por boatos contra os venezuelanos espalhados nas redes sociais. No último fim de semana, brasileiros atacaram acampamentos de venezuelanos em Paracaima, a cidade a 215 km de Boa Vista que é a principal porta de entrada dos imigrantes no Brasil. Tudo aconteceu depois que se espalhou a história de que um comerciante local havia sido espancado pelos estrangeiros. Estima-se que 1.200 pessoas fugiram de volta para a Venezuela por medo.

Para o doador de pães, o que aconteceu em Pacaraima, onde 25% dos habitantes são agora imigrantes, mostra o cansaço da população com a situação que o Estado enfrenta. "Se a Força Nacional começar a bater nos brasileiros para defender os venezuelanos, vai dar guerra aqui dentro. Vão começar a dar tiros nos acampamentos deles", afirma.  Em questão de 10 minutos as 250 bolsas acabaram e a fila dispersou.

Os pés inchados de José

Não longe dali, os pés inchados do venezuelano José Comanader revelam que os últimos dias não foram fáceis. Natural de Valência, no Norte da Venezuela, ele decidiu migrar para o Brasil para buscar alguma oportunidade de trabalho para melhor sua vida e a dos familiares. Faltou, no entanto, dinheiro para completar sua empreitada. Ao chegar de ônibus à Pacaraima, ele não tinha mais um centavo para seguir viagem para a capital Boa Vista. "O jeito foi caminhar. Foram seis dias para chegar até aqui", diz o venezuelano deitado em uma barraca improvisada em um terreno vazio da capital onde outras dezenas de imigrantes venezuelanos estão acampados. Ali tudo é improvisado, a maioria conta com a doação de comida de moradores da cidade e com o auxílio dos poucos conterrâneos que tem conseguido algum bico na cidade. Alguns venezuelanos desse grupo catam latinhas de alumínio por Boa Vista, capinam terrenos e outros limpam os vidros dos carros nos faróis de trânsito. Outra parcela sai com cartazes pedindo emprego.

Local em Boa Vista oferece ligações à Venezuela.
Local em Boa Vista oferece ligações à Venezuela.Douglas Magno

A apenas um quarteirão do assentamento precário de José e de dezenas de outros venezuelanos está o abrigo Jardim Floresta, gerido pela Agência das Organizações das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), com apoio do Exército Brasileiro e da Prefeitura de Boa Vista. Um dos moradores do local, o venezuelano Miguel Serpa, de 29 anos, conta que chegou ao Brasil em fevereiro trazendo a mulher grávida e os sogros. "Cheguei a ter que dormir na praça quando cheguei à capital, mas graças a Deus conseguimos uma vaga no abrigo. Não é todo mundo que está conseguindo, é gente demais, não há vagas, e eles acabam dando preferência para pessoas com crianças ou pessoas idosas", explica Serpa que trabalha como ajudante no acampamento.

Mariana Garcia, de 35 anos, não teve a mesma sorte. Há meses mora no acampamento improvisado na rua e reclama nunca ter recebido das autoridades algum prazo para que ela consiga uma vaga no abrigo. "Eles fazem um censo, anotam o perfil das pessoas que estão aqui, mas até agora nada", diz. A rotina no local é complicado e precisam caminhar bastante para conseguir encher o galão de água. "Mesmo assim estou mais feliz, olha a situação ruim que estamos, mas ainda é muito melhor que a Venezuela. Aqui pelo menos temos comida, posso ir a um posto de saúde pedir medicamento. Muitos brasileiros são solidários", diz.

Ela explica, entretanto, que casos de hostilidade e xenofobia que ocorreram em Pacaraima também são comuns em Boa Vista. "Não são poucos os moradores que passam aqui nos insultando, gritando de moto coisas do tipo: 'Voltem ao seu país! Ladrões! Filhos da puta!", conta. "Os policiais também exageram. Todo dia revistam os homens aqui do acampamento, de uma maneira intimidadora, as vezes olham também as barracas, bagunçam tudo", diz.

Garcia prefere se ater ao comportamento acolhedor de grande parte da população, como o da brasileira Isabel Cristina. A vizinha de frente ao lote do acampamento que abriu a varanda da casa para fazer um refeitório improvisado para os venezuelanos com os alimentos que são doados para a Igreja Católica. "Não posso negar que desde que eles chegaram a cidade está muito caótica. Todo mundo está reclamando que a violência aumentou muito, que o sistema de saúde está ainda mais confuso, mas tem muito venezuelano bons. Temos que ajudar. Fico ainda com mais pena das crianças", diz Isabel Cristina.

Passeata e visita de Jungmann

A violência no fim de semana em Paracaima e a exploração da problemática na campanha contribuíram para que a crise em Roraima tenha ganhado mais holofotes nacionais. O Governo Temer enviou uma missão ao Estado há alguns dias e, nesta quinta-feira, está previsto que o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, visite Paracaima.

O enviado de Temer vai encontrar um clima de medo entre os venezuelanos e revolta dos locais. "Você que nos julga venha para Pacaraima", dizia o cartaz na "carreata da paz" feita por moradores da cidade na noite de quarta-feira. Cerca de 30 carros circularam pelas principais ruas da cidade buzinando e sacudindo bexigas brancas, pedindo "tranquilidade" no município. Quase todos os carros tinham cartazes pregados questionando o fluxo migratório na região. "Não somos xenófobos. E se fosse sua família espancada?", estava escrito em um dos carros.

“Autoridades de diferentes níveis da Federação e dos três Poderes que disseminam a discriminação e pleiteiam medidas populistas e inconstitucionais como o fechamento de fronteira ou cota de entrada de migrantes vêm agindo de forma irresponsável. Episódios deploráveis como o deste final de semana encontram inspiração em discursos e medidas xenofóbicas por parte do poder público”, escreveu, em carta, o Comitê para Migrações de Roraima, um conjunto de 40 organizações ligadas aos direitos humanos. Os destinatários das críticas são evidentes: tanto a governadora Suely Campos (PP), candidata à reeleição, como seu rival e aliado de Temer, Romero Jucá (MDB), que busca reeleição para o Senado, têm prometido à população lutar por medidas restritivas.

Cartaz em carreata de Paracaima nesta quarta-feira.
Cartaz em carreata de Paracaima nesta quarta-feira.

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