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A hora do papa Francisco

Transformação empreendida pelo Pontífice, rumo aos seus 82 anos, se encontra em um momento decisivo que determinará o sucesso de seu Papado e a herança que deixa

O papa Francisco na praça de São Pedro, em fevereiro de 2016.
O papa Francisco na praça de São Pedro, em fevereiro de 2016.Stefano Spaziani (Contacto)
Daniel Verdú

Há algumas semanas, o papa Francisco terminou uma de suas missas matinais em Santa Marta e, ao sair, trocou duas palavras com um conselheiro próximo. A pergunta era corriqueira. A resposta foi sincera.

—Tudo bem, Santidade?

—Muita pressão—, respondeu Jorge Mario Bergoglio.

O pontificado do papa Francisco atravessa uma fase decisiva. Após intensos cinco anos e meio, algumas de suas grandes reformas encalharam ou se encontram decolando. A transformação econômica, a estratégia de comunicação do Vaticano, a luta contra os abusos e a transformação da cúria deram resultados díspares. A euforia inicial diminuiu, e também parte do eco midiático. Logo será preciso renovar o impulso reformista com nomeações de cargos relevantes ainda vazios na Secretaria de Estado, no Conselho de Assessores (C9) e em postos estratégicos da área econômica. Em junho teve prosseguimento a acelerada configuração de um colégio cardinalício cada vez mais ao seu gosto, onde os cardeais nomeados por ele já superam o restante. Mas as vozes críticas não param. São setores conservadores. Poucos e muito localizados, principalmente na área norte-americana, dizem fontes de seu entorno. “Lá a direita está organizada e tem dinheiro”, afirma um veterano cardeal. São vozes persistentes, agressivas e, de acordo com algumas das fontes consultadas, já pensam no substituto de Francisco.

Às vezes dá a sensação de que o Papa possui mais apoio fora da Igreja do que dentro

A ala radical chega com força. Considera que Bergoglio, de 81 anos, não agiu até agora como cabe a um Pontífice. O jornal conservador Il Tempo publicou em sua primeira capa na semana passada com grande destaque e entusiasmo tipográfico: “Habemus Papa”. Uma ironia surgida de um discurso em que o atual chefe da Igreja Católica comparou o aborto por razões médicas (malformações, doenças...), com as práticas nazistas para conservação da pureza da raça. No mesmo sermão, frisou também que uma família é formada somente por um homem e uma mulher, algo que tranquilizou o grupo mais exaltado da Igreja. Como se um Papa pudesse dizer o contrário. “É o chefe da Igreja Católica, não de uma organização progressista. É aberto em questões sociais, mas doutrinalmente é tão conservador ou mais do que Bento XVI. Quem pensa que ele pode aprovar o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo está muito enganado. Essa, evidentemente, não será sua herança”, diz um membro da cúria que trabalha com ele.

Francisco absorve a pressão e não costuma transmiti-la. Mas sempre que tem oportunidade de pronunciar um discurso à cúria (e já foram cinco) se queixa dos boatos, da falta de lealdade. Da “desequilibrada e degenerada lógica das intrigas e dos pequenos grupos”, pronunciado nesse Natal no tradicional discurso a seus funcionários. Nos últimos meses foi até mesmo acusado de herege. “Essas críticas mexem com ele. Nunca tivemos na Igreja uma revolta tão forte dos conservadores contra o Papa. Essa frente tradicionalmente é aliada do Pontífice e o que acontece com Francisco é insólito. É difícil entender que passem de adorar Bento XVI a comportar-se assim com Francisco”, diz um conselheiro. A corrente reacionária é liderada pelo cardeal Raymond Burke, e espera que esse pontificado passe à história como algo irrelevante. Mas será nos próximos tempos que ficará clara a dimensão de seu legado, dentro e também fora da Igreja.

Um imigrante agradece o Papa na missa realizada na sexta-feira na basílica de São Pedro.
Um imigrante agradece o Papa na missa realizada na sexta-feira na basílica de São Pedro.VATICAN MEDIA (REUTERS)

A missão política dos últimos Papas variou. O polonês Karol Woytila foi o Pontífice que ajudou a derrubar o muro entre o Leste e o Oeste. E o atual —o primeiro em 13 séculos que não vem da Europa— procura derrubar a barreira invisível entre o Sul e o Norte. Tenta fazer isso com a defesa das migrações —ponderada ultimamente quando afirma que só devem chegar os que podem ser recebidos— em atos como a missa em São Pedro de sexta-feira para comemorar o quinto aniversário da viagem a Lampedusa; a ecologia, a qual dedicou uma encíclica e a pobreza. Pode ser vista em todos os seus gestos e nas nomeações da cúpula eclesial. Um dos últimos cardeais, por exemplo, é Konrad Krajewski, chefe do escritório de esmolas. Um homem afastado da arrogância principesca que costumava outorgar o anel e o chapéu vermelho e que conhece de cor o nome de todas as pessoas sem teto que vivem ao redor do Vaticano e da estação de Termini. Tudo isso será sem dúvida parte da marca de Francisco, importante também no mundo laico, onde o impacto social de sua obra é mais apreciado. Porque às vezes dá a sensação de que possui mais apoio fora da Igreja do que dentro, onde quem espera maiores reformas se impacienta e as lutas de poder enlamearam áreas cruciais como a econômica.

A corrente reacionária é liderada pelo cardeal Raymond Burke, e espera que esse pontificado passe à história como algo irrelevante

As finanças e o céu sempre tiveram problemas. Mas após anos de caos, o Vaticano homologou suas regras e controles às dos outros países. “O Moneyval [o órgão europeu que lida com a lavagem de dinheiro] certifica tal mudança”, dizem fontes da Santa Sé especialistas na área. O Banco do Vaticano (IOR), que gere por volta de 5,7 bilhões de euros (26 bilhões de reais), fechou mais de 5.000 contas suspeitas desde 2013. O déficit foi reduzido e existem novos órgãos de inspeção. Os banqueiros agora expiam seus pecados nos tribunais e não enforcados. Prova disso é o julgamento por lavagem de dinheiro e desvio de verbas do ex-presidente do IOR, Angelo Caloia, realizado nessa semana. Mas auditores gerais foram demitidos em condições estranhas (espionagem, denúncias de coação e insinuações de corrupção), e cada vez que alguém é contratado para colocar ordem, acaba tosquiado. O chefe de tudo isso era o cardeal australiano George Pell. Uma espécie de superministro das finanças que está há um ano em seu país à espera de julgamento por encobrimento de abusos a menores. Ninguém o substituiu.

Francisco decidiu confiar em Pell apesar das suspeitas que o acompanhavam desde Ballarat, sua pequena cidade natal, onde ocorreram centenas de abusos sexuais enquanto ele era padre. Muitos opinam que sua ausência do Vaticano nesse ano foi boa. “Existia uma guerra entre ele e o cardeal Calcagno [ex-presidente do órgão responsável pelo importante patrimônio da Santa Sé: 3.724 unidades imobiliárias no valor de 2,7 bilhões de euros – 12 bilhões de reais –]. Muitos homens lutando por seus territórios, por cada centímetro de poder e influência...”, diz um assessor. O que ninguém compreende é porque um substituto não foi nomeado. “Não é uma boa mensagem”, afirma a pessoa, cética diante da possibilidade de que Pell tenha apresentado sua renúncia ao Papa, apesar de sua negativa a fazê-lo comprometer gravemente a linha de tolerância zero com os abusos, algo crucial ao pontificado.

A viagem ao Chile em janeiro, uma peregrinação supostamente tranquila, se transformou em uma embaraçosa tempestade. Uma jornalista perguntou ao Papa sobre os casos de abusos a menores de um padre chileno e o encobrimento do caso por parte do bispo Juan Barros. “Não deveriam tê-lo exposto a essa situação”, diz um funcionário do Vaticano. Francisco escutou a pergunta e respondeu irritado que eram “calúnias” e que não existiam provas. Ele decidiu. “É seu estilo. Acompanha algumas coisas muito de perto. E se perguntam, responde. Mas tem muita popularidade”, afirma um importante membro da cúria. Pouco depois, assumiu o erro, pediu desculpas, iniciou uma grande investigação e realizou uma enorme mudança de atitude que acabou com um convite às vítimas ofendidas no Chile para ir a Santa Marta, e uma histórica limpeza entre os bispos chilenos, que apresentaram sua renúncia em peso. Aquilo foi um ponto de inflexão.

Em sua chegada, Francisco anunciou que continuaria com a política de tolerância zero com os abusos sexuais iniciada por Bento XVI. Criou uma comissão pontifícia para prevenir esses casos. Mas as duas vítimas incluídas no novo órgão de prevenção abandonaram a comissão intempestivamente e denunciaram o bloqueio sistemático de suas propostas. Especialmente vindo da Congregação para a Doutrina da Fé dirigida à época pela cardeal Gerhard Müller, como afirmou Marie Collins, grande especialista no assunto e ex-membro da comissão do Vaticano. O cardeal alemão não continuou no cargo. “O Papa demonstrou boa disposição em assuntos concretos, mas não ocorreram mudanças estruturais determinantes que possam se manter depois dele. Quando chegar outro Pontífice, com outra atitude, poderá ocorrer um retrocesso. Essas mudanças estruturais seriam a única coisa que garantiria a segurança das crianças no futuro. Ele agiu bem no Chile, mas isso deveria se estender a toda a Igreja e que não fique restrito a casos isolados”, diz Collins pelo telefone.

Após anos de caos financeiro, o Vaticano homologou suas regras e controles às dos outros países

Uma vez perguntaram a João XXIII quantas pessoas trabalhavam no Vaticano. Ao que o Pontífice respondeu ironicamente: “Mais ou menos, a metade...”. A realidade é que são por volta de 4.800. Uma pesada estrutura que precisava de uma transformação. Ocorreram nomeações de mulheres, reduziu-se o número de dicastérios (ministérios do Vaticano), a estrutura é mais horizontal. E além do fato de se esperar uma nova Constituição Apostólica da cúria e a certificação de um histórico desgelo das relações diplomáticas com a China (que, segundo fontes conhecedoras do assunto, pode ocorrer em 2019) há concordância de que Francisco realizou uma reforma das formas. “É 100% jesuíta. Entende o Pontificado como uma missão, como se fosse sua diocese”, dizem fontes do Vaticano. E ocorreram mudanças tangíveis empreendidas por Francisco difíceis de se desfazer, como a mudança da residência do Papa a Santa Marta, um movimento para se afastar da clausura autoreferencial do Palácio Apostólico. Um gesto que tem seu reflexo também no empenho pela abertura ecumênica a outras religiões. Mas o que acontecer no próximo conclave determinará se outras mudanças são definitivas.

Na quinta-feira 28 de junho, Francisco criou 14 novos cardeais: 11 têm menos de 80 anos e terão voz e voto para escolher o próximo Pontífice. Os cardeais eleitores nomeados por ele (59) já são maioria em relação aos que restam de João Paulo II (19) e de Bento XVI (47). Mesmo que o avanço no controle do colégio não garanta nada (Bento XVI era um dos únicos cardeais que não foram criados por João Paulo II quando o substituiu), agora o órgão de decisão —com 125 cardeais, 5 a mais do que o limite de orientação fixado por Paulo V— tem uma composição mais heterogênea e periférica. Existem cardeais de cinco continentes e 83 países e uma grande parte praticamente não se conhece entre si. Alguns, como o japonês Thomas Aquinas Manyo, nem mesmo falam um idioma, além do latim, que lhes permita se relacionar com seus colegas quando chegar o momento de entrar na Capela Sistina, escrever um nome em um pedaço de papel e prendê-lo em uma corda.

As dinâmicas e a influência dentro do conclave estarão mais fragmentadas de agora em diante. Os possíveis lobbies e pressões se diluirão com a multiplicidade de nacionalidades e sensibilidades. Nos corredores do Vaticano sempre existem apostas e muitos se empenham em fazer com o Papa volte a ser italiano. Mas as últimas nomeações não apontam nessa direção. “É possível que o próximo Papa seja novamente americano ou de língua espanhola”, diz um veterano de alto escalão, de modo que representaria 40% dos católicos. É mencionado até mesmo um espanhol: o cardeal Juan José Omella. “Ele trabalhou muito bem é o homem de confiança do Papa na Espanha, uma igreja que aprecia e entende”, afirma a fonte.

A Espanha é o único país que contribuiu com um cardeal em cada um dos cinco Consistórios realizados por Francisco (dois no último: Luis Ladaria, prefeito da importante Congregação para a Doutrina da Fé, e o claretiano Aquilino Bocos). Mas para a realização de um conclave, a sede de Pedro deveria ficar vaga. Francisco deu a entender que seguirá os passos de Bento XVI – que renunciou em 11 de fevereiro de 2013 em meio a uma tempestade de escândalos – e se afastará quando não se sentir com forças. “Os anos não passam em vão. E tem uma saúde que não é de ferro. Mas é firme, metódico, trabalhador, se levanta cedo e muito renovado”, frisou o cardeal Bocos ao EL PAÍS um dia antes de sua nomeação. Uma renúncia a curto prazo não parece provável, dizem os especialistas. Entre outras coisas, porque se criaria a situação mais estranha da história da Igreja: três papas convivendo a poucos metros. E com dois já foi um desafio.

O papa Francisco cumprimenta seu predecessor, Bento XVI, no dia 28 de junho.
O papa Francisco cumprimenta seu predecessor, Bento XVI, no dia 28 de junho.VATICAN MEDIA HANDOUT (EFE)

No dia em que foi realizado o consistório, correu o mundo a foto da visita de Francisco a seu predecessor para que benzesse os novos cardeais. “O Papa falso beija o anel do real”, publicou um site. A realidade é que a convivência entre ambos, um fato insólito que poderia ser incômodo, foi excepcional. Por isso o Papa Francisco, diz um interlocutor, ficou tão irritado em março quando o prefeito da Secretaria de Comunicação, monsenhor Dario Viganò, publicou uma carta privada enviada a Bergoglio por Ratzinger. Na carta defendia Francisco das críticas por uma suposta falta de preparação teológica, mas foi escondido um pequeno puxão de orelhas. O escândalo foi enorme e Viganò acabou retirado do cargo em plena reforma da área de comunicação do Vaticano. A mudança na estratégia de comunicação foi apresentada com pompas com gigantescos painéis publicitários na Pizza Navona com a foto do Papa: a melhor marca da Igreja Católica atualmente.

Francisco foi a reação audaz e fulgurante da Igreja ao descomunal desprestígio que atravessou

Francisco foi a reação audaz e fulgurante da Igreja ao descomunal desprestígio que ela atravessou. Aos ventos de mudança que sopravam no mundo. A Divina Providência entendeu o que estava em jogo. Tudo deveria ser novo. O primeiro Papa jesuíta, o primeiro americano, também o que inaugurou o uso desse nome e o primeiro que conviveu com outro homem que teve o mesmo cargo. A Igreja após Francisco? Um cardeal que participará do próximo conclave explica dessa maneira: “Há mudanças, uma nova atmosfera, a cúria está mais aberta. Mas não está claro o que acontecerá com um novo Papa. A questão está nas pessoas e na mentalidade. Também vimos gritos, discussões, decepções. Devemos esperar, pensar a longo prazo”. Uma medida capaz somente de estabelecer um pontificado.

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