_
_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Fabiana Cozza: “Eu não sou uma vítima”

Em entrevista exclusiva, a cantora fala pela primeira vez sobre a renúncia ao papel da grande dama do samba, Dona Ivone Lara, devido aos protestos por não ser tão preta quanto a personagem

Eliane Brum
A cantora Fabiana Cozza renunciou ao papel de Dona Ivone Lara por não saber "criar na violência"
A cantora Fabiana Cozza renunciou ao papel de Dona Ivone Lara por não saber "criar na violência"Fernando Cavalcanti

Em 30 de maio, a cantora Fabiana Cozza foi anunciada para aquele que seria o maior papel de sua carreira: interpretar Dona Ivone Lara, conhecida como a “grande dama do samba”, num musical sobre a sua vida. Em seguida, começaram os protestos nas redes sociais: Fabiana, filha de pai negro e de mãe branca, tem a pele mais clara do que a personagem. Para quem criticou a escolha da artista, este seria um caso de “colorismo”: quanto maior a pigmentação da pele, menores as oportunidades. Numa estrutura racista, os negros de pele mais clara têm mais possibilidades e acessos do que os negros de pele mais e escura. Para os críticos, a protagonista deveria ser vivida por uma cantora e atriz mais preta do que Fabiana. Em 4 de junho, um dia antes de ir para Cuba para cantar com a Orquestra Filarmônica Duchesne Guzán, da Escola Superior de Artes de Havana, Fabiana renunciou ao papel em uma carta pública.

Apesar da violência de alguns ataques, marca deste momento em que na internet cabem todos os ódios, o episódio produziu um debate importante, urgente e que jamais aconteceria no Brasil de alguns anos atrás. Esse debate não é simples e, como todas as discussões que valem a pena, não se resume a contra ou a favor. O fato de ele ser possível mostra o quanto os movimentos negros conquistaram espaço na sociedade brasileira, apesar de todas as dificuldades impostas por um país tão racista quanto o Brasil. Iluminar questões sofisticadas como essa no momento em que o extermínio da juventude negra se acentua nas periferias do país e os poucos direitos conquistados estão sendo corroídos mostra que a resistência está sendo travada. O debate tornou-se rico porque intelectuais negros importantes trouxeram ao centro da discussão diferentes pontos de vista.

Fabiana Cozza, 42 anos, não é apenas filha de pai preto e de mãe branca. Ela é uma das maiores intérpretes de sua geração, uma cantora com rigor técnico, recursos de dramaturgia e potência no palco que já encontrou seu lugar na história da música brasileira e nos palcos do mundo. Fabiana se destaca ainda por um trabalho consistente com artistas negros da América Latina. O pai preto é Oswaldo dos Santos, um dos grandes intérpretes de samba-enredo do carnaval de São Paulo, que levou a filha para a Camisa Verde e Branco quando ela ainda era um bebê, para ser batizada pela velha guarda da escola de samba. Toda a trajetória artística de Fabiana tem raízes fincadas no samba e na negritude.

Na sua presença cênica há também a marca do candomblé. Quem já viu Fabiana no palco sentiu o impacto de uma figura impressionante e bastante singular. Se há quem possa dizer que sua pele é muito clara para interpretar a protagonista, não há quem possa dizer que sua voz e sua competência não estão à altura. Fabiana tem também uma história forte com Dona Ivone Lara, com quem já cantou mais de uma vez e homenageou outras tantas. Antes de morrer, aos 97 anos, em abril deste ano, a grande sambista soube que seria tema de um musical e, segundo a família, escolheu Fabiana para interpretá-la. Esses elementos tornam o debate muito mais complexo.

Dividir os negros não seria fazer o jogo da branquitude?

O que é ser negro? A negritude está apenas na cor da pele? A arte não é justamente o espaço onde o artista pode ser tudo e todos, para além de gêneros e cores? Qual peso a voz de Dona Ivone Lara deve ter na escolha final daquela que vai interpretá-la? E o que significa contrariar o seu desejo ao dizer que sua escolha não é a melhor? Dividir os negros num momento histórico em que os poucos direitos conquistados estão ameaçados não é uma estupidez política? Não seria fazer o jogo do poder e da branquitude, como apontaram alguns intelectuais negros?

São perguntas das quais não se deve fugir.

Por outro lado, há razão e razões no questionamento a uma negra de pele mais clara interpretar uma negra de pele mais escura. É um fato que os negros de pele mais escura têm muito mais dificuldade em ocupar qualquer espaço, qualquer posto e qualquer emprego, e não apenas os da arte. Se a arte é o território da alteridade, quando alguém já viu um grande protagonista branco ser interpretado por um preto no Brasil? Se já aconteceu, está na lista das raridades.

O quanto é importante uma negra de pele mais clara perder privilégios para fortalecer a causa política mais ampla?

É evidente que esta é também uma questão política. E se é uma questão política, não seria o caso de compreender que, neste momento, de tanta desigualdade racial, é importante ter uma negra de pele mais escura interpretando uma negra de pele mais escura, como também foi dito por alguns intelectuais negros? Não seria um avanço do debate e da luta uma negra de pele mais clara ser capaz de renunciar em favor de uma bandeira política? Perder privilégios para fortalecer a causa mais ampla?

São perguntas das quais também não se deve fugir.

Conheci primeiro a voz de Fabiana Cozza e fiquei impactada pela sua beleza. Depois, conheci a artista num evento de literatura no Rio Negro, na Amazônia. E fiquei embasbacada pela sua presença no palco. Mulher doce no cotidiano do barco dividido por músicos e escritores, ela parecia alcançar dois metros de altura no palco. Em dezembro, li seu primeiro livro de poesias, Álbum Duplo (editora Pedra Papel Tesoura), e fiquei encantada com a escritora que ela também é.

Mais informações
O suicídio dos que não viram adultos nesse mundo corroído
Caminhoneiro: o novo velho protagonista do Brasil
O mundo precisa de adultos responsáveis, não de otimismo infantilizado

Quando Fabiana decidiu renunciar ao papel de Dona Ivone Lara, propus a ela uma entrevista. Fabiana aceitou e combinamos que ela começaria escrevendo sobre seu sentimento naquele momento de irrupção. Ela o fez, num voo para Cuba, em 5 de junho. Mas não conseguiu continuar. Travou. Me escreveu de Havana dizendo que naquele momento não poderia seguir. Quando retornou, me procurou para dizer que estava pronta.

Nos encontramos durante duas horas em seu apartamento de 90 metros quadrados no bairro de Perdizes, em São Paulo, cidade onde eu estava de passagem. A sala é tomada pelo quadro de uma mulher negra, pintada pelo artista Rodrigo Kiko em carvão e terra sobre tela de algodão cru. A casa é povoada por objetos e fotografias que ecoam povos africanos e indígenas. Entre os móveis de madeira, há muitas cores: azul, branco, laranja, amarelo, verde e vermelho. Fabiana tem uma serenidade soberana quando se senta na poltrona para a entrevista.

O que faz de Fabiana Cozza alguém que eu queira entrevistar não é o fato de ela estar no centro de uma polêmica. Mas o fato de que Fabiana Cozza é capaz de estar no centro de uma polêmica e, apesar das dores, enfrentar as contradições. Fabiana torna-se uma voz essencial do debate que deve continuar, por ser importante demais para se esgotar no episódio, porque ela agarra-se à complexidade. Quem quiser conhecê-la interpretando Dona Ivone Lara, ainda tem uma chance: Fabiana Cozza e o violonista Alessandro Penezzi acertaram dois shows com o repertório da sambista, em 13 de julho, no Tupi or not Tupi, em São Paulo, e em 2 de agosto, no Teatro Rival, no Rio.

Dona Ivone Lara e Fabiana Cozza têm uma história juntas. Na foto, as duas cantoras em show de 2007
Dona Ivone Lara e Fabiana Cozza têm uma história juntas. Na foto, as duas cantoras em show de 2007Leo Gola (Divulgação)

Esta é a primeira entrevista de Fabiana Cozza sobre o tema:

Fabiana Cozza. Eu escrevi um texto para você quando estava indo para Cuba, mas eu parei na primeira lauda. Posso ler se você quiser. Na verdade, eu nem sei por onde começar a conversa. Talvez seja melhor você me ajudar.

Pergunta. Começa lendo.

Resposta. É? No aeroporto, quando ia embarcar para Cuba, aconteceu uma situação curiosa. Estava no auge das manifestações contra mim, dos ataques e tal. Mesmo com a renúncia, os ataques estavam seguindo pela internet... Por esse lugar que virou um lugar bastante misterioso, porque a gente não sabe quem é que está por trás do teclado do computador. Quando você recebe esses tiros, você não sabe de onde vem. Aí eu cheguei no aeroporto e eu já tinha chorado muito naqueles dias. Quando eu entrei para o check-in tinha um grupo de negros, de homens bem mais escuros do que eu. Pareciam amigos festejando porque iam viajar. Me deu uma crise de choro. Eu não conseguia parar de chorar e o meu namorado ficou sem saber o que fazer. As pessoas na fila me olhando. Eu estava muito, muito sentida. E eu não consegui identificar o porquê do choro naquele momento. Então consegui melhorar um pouquinho pra embarcar. Me despedi do meu namorado e entrei atrás deles na fila de passar as bolsas. E aí começa aquela humilhação que eu conheço há bastante tempo. Isso é muito comum pra quem é negro, sua pele já pressupõe coisas a seu respeito. “Tira o cinto.” “Passa.” “Não, não é o cinto.” “Tira não sei o quê.” O cara já não tinha mais nada pra tirar e eu, no afã de ajudar, virei para os caras que são meio Polícia Federal e falei: “Vocês não falam inglês? Vocês têm que saber falar inglês. Vocês não estão percebendo que o cara não fala português? Vocês têm que facilitar...”. Aí eu me dei conta e falei pra mim mesma: “Fabiana, volta. Seu lugar não é o de salvadora da pátria”. Percebi então como eu estava muito alterada por conta de todo o ambiente a que eu tinha sido exposta.

P. O que foi esse teu choro?

R. Eu não sei te dizer exatamente, ainda. Acho que esse choro tem a ver com esse não lugar ou esse lugar para o qual me deslocaram, quando me jogaram pra fora. No auge, nos 100 graus de ebulição, o linchamento partiu para esse lugar. Então vamos desqualificá-la. Pela cor, que é exatamente a mesma arma. Nós somos sempre julgados pela cor. Então vamos desqualificá-la pela cor, branqueando essa mulher, porque aí a gente consegue mostrar que ela não está do nosso lado, que ela anda do outro lado da rua.

P. E então você entrou no avião e começou a escrever um texto. Lê pra mim?

R. Vou ler: “Gritar talvez seja um dos gestos que carrega o mais profundo teor de humanidade. É de uma força irrepreensível. Gritamos quando temos dor, quando há fome, quando somos invisibilizados, quando algo recalcado sobe à superfície. E, de tão orgânico, nos desorganiza para reorganizar. Para tirar e trazer o ar novamente. Para cansar e voltar ao estado de repouso. Ou não.

Ouvir gritos é uma experiência de profunda aflição que exige dois ‘ouvidos’: um periférico e outro profundo.A escuta periférica talvez seja a do ato audiológico de identificar o que está à sua volta, quais são os ruídos, localizá-los no espaço físico, se perto, se longe, se intenso, se fraco. A escuta profunda te exige um despertar verticalizado das memórias que marcaram o corpo, corpo esse não delineado apenas pelo orgânico, mas pelo psíquico, político, filosófico, espiritual.

Esta semana fui convocada a experenciar ambas as escutas, num tom muito distante de minhas palavras neste relato, quiçá pincelado de escrita poética, meu lugar de entendimento e fala enquanto artista. A experiência ainda o é. Nada decantou, mesmoapós renunciar ao papel de Dona Ivone Lara. E digo isso não porque os gritos ainda ecoam, mas porque é impossível criar distância quando quem pede ajuda é a sua tribo.

Ao longo de 20 anos de profissão me aproximei e criei amigos. Muitos negros. Diversos negros diversos. Mestres, inspiração, irmãos que já gritavam antes que eu pudesse me pensar artista. Não poucas vezes ouvi seus relatos atentamente. Todos carregavam gritos. Muitos estiveram à beira do ‘suicídio artístico’, que é para nós acreditar que a Arte não nos cabe, que ‘não gosta de nós’ e o ‘melhor’ ou o que nos resta a fazer é mudar de profissão. Arte esta que perde diariamente oxigênio desde que o Brasil foi tomado pelo atual governo e sua corja de golpistas, aplaudidos por parte da imprensa que corrobora com o golpe.

A cada encontro e relato de um amigo negro de pele escura que perdia o seu papel como ator, bailarino ou cantor para outro de pele ‘clara’ ou para uma pessoa branca...”

Aqui eu parei.

“Fui acusada dentro da tribo porque a tribo ainda sangra”

P. Por que será que você parou num ponto tão crucial? Como pensar esse corte justamente neste momento?

R. Porque talvez seja o lugar que me paralisa de dor. A injustiça. Desse ponto em diante eu posso continuar falando pra você. Eu ficava deslocada. Deslocada do ponto de vista emocional, deslocada porque aquilo era de uma agressão que me causava uma empatia imensa. Eu tenho uma grande amiga que mora fora do país, que vive intensamente esse não lugar. Tipo: “Você é a melhor bailarina do teste, nós não temos dúvidas. Mas, querida, você é muito preta pra esse espetáculo, a tua cor de pele é muito escura, eu não posso te garantir esse papel”. Isso é inaceitável, mas é ainda a realidade da maioria dos homens e mulheres negras. E aí foram muitos cafés em que eu só escutava e chorava junto. Trazendo pra esse momento meu, eu passo por uma situação próxima a dos meus colegas. Discriminada pelo tom de pele. Mas não acusada pelos brancos, como acontece com ela, como acontece porque este é o nosso lugar dentro do sistema racista do Brasil, da América Latina, de tantos outros lugares do mundo. Como diria o Carlos Moore (pensador negro de origem cubana): “o negro é um eterno exilado”. Fui acusada dentro da tribo. Porque a tribo ainda sangra. Essas marcas são profundas, e a gente não tem a dimensão exata do que o racismo provocou em nós.

P. Neste caso, seria você a negra com a pele mais clara tirando o lugar da negra de pele mais escura. É um lugar duríssimo. Como foi estar nesse corpo também politicamente embranquecido?

R. É uma dor que lateja. Te falei do meu emocional, mas a questão política dessa história é que esse é um lugar de muita dor. Então, não tem como não gritar. Tem um teor de muita subjetividade. Usando um pouco a ideia do teatro, acho que é preciso que se torne uma discussão objetiva e empática para que a gente consiga desfiar o novelo da história.

P. Objetiva em que sentido?

R. Objetiva no sentido de conquistar uma plateia que seja para além de nós mesmos, para além de nós, negros. Quando a gente fala isso no teatro, você pensa assim: “Eu tenho uma canção subjetiva que tem que fazer sentido, objetivamente, para que possa ser compartilhada, para que eu possa conquistar o outro”. Se eu vou cantar uma música em primeira pessoa, eu preciso multiplicar essa primeira pessoa, eu preciso falar: “Olha, essa dor não é minha, é sua também”. É isso que eu acho que acontece nessa questão do racismo. Quando a gente fala ou pensa na coisa do racismo no Brasil vem esse conceito relativamente novo que é o colorismo. Como todo conceito ele precisa ser estudado, entendido e transposto. Transposto para a nossa realidade, pra gente poder ver como é que a gente vai lidar com essas diferenças. Porque esse conceito não deve nos dividir.

P. Como tudo aconteceu? Me conta desde o começo?

R. Primeira coisa importante a se dizer. Eu fui convidada para fazer o espetáculo. Na semana passada, Eliana, a nora da Dona Ivone me ligou muito inconformada com a minha renúncia, querendo que eu voltasse.

P. Ela é branca?

R. Branca, loiríssima. Ela era considerada como uma filha pela Dona Ivone. E ela me ligou dizendo assim: “Olha, tudo bem, eu respeito a sua opinião, mas eu acho importante você saber uma coisa. Em janeiro, a Dona Ivone ainda estava melhor de saúde, e ela já sabia do musical que ia ser feito em homenagem a ela. E ela escolheu você. Talvez no meio dessa dor e dessa confusão toda é bom que você saiba. Foi ela que escolheu você, porque eu perguntei a ela”. Então, é importante deixar isso claro desde o começo, porque isso precisa ser levado em conta nessa discussão.

P. O que significa, neste caso, ter a escolha de Dona Ivone Lara, uma artista negra, desrespeitada? Qual é a voz que deve valer mais? Ou como decidir qual é a voz que deve valer mais? É importante não fugir de nenhuma das complexidades desse debate tão cheio delas...

R. Acho que a decisão e a vontade de Dona Ivone não foram ouvidas. A bem da verdade, acho que nem ouviram essa fala trazida publicamente pela Eliana. Recentemente assisti ao espetáculo novo de Elias Andreato, inspirado na obra de Fernando Pessoa. Num dado momento, seu personagem diz: “A fala é um abismo entre nós". Este é o nosso tempo...

“A discussão da representatividade é legítima porque não existe equidade entre brancos e negros”

P. Como foi que isso bateu em você?

R. Quando as pessoas começam a falar de representatividade, eu me lembrei dessas histórias dos meus amigos que sofreram racismo por ter a pele mais escura. E isso ainda é imperativo na nossa sociedade. Te confesso que eu li poucos ataques, porque eu não sei lidar com isso. Como eu tenho uma vida bastante cheia de coisas, estou também fazendo mestrado em fonoaudiologia na PUC, onde penso justamente a voz na perspectiva da emoção. E naquele momento eu tinha ainda que viajar para Cuba, separar os arranjos para a orquestra. Estava bem no meio de um furacão pessoal quando a discussão começou. Aí eu comecei a ver aquela situação toda, e as pessoas falando pra eu sair porque eu não represento, porque a minha imagem fenotípica, os meus traços fenotípicos são distantes dos traços da Dona Ivone. É importante que, do ponto de vista histórico, uma criança veja um grande nome como a Dona Ivone, tal qual ela é, e neste caso estou falando politicamente, não artisticamente. Tenho consciência disso. Mas a questão não se encerra aí. Ao contrário, acho que discutir representatividade é importante e exige de nós uma elaboração maior, para entender outras matizes dessa pauta. Mas, naquele momento, pensei: “Eu preciso sair. Eu preciso sair porque, primeiro, é legítimo. Essa discussão da representatividade é absolutamente legítima”. E, como a entrevista é pra você, eu não preciso explicar o porquê.

P. Acho importante explicar, sim.

R. É legítima porque a gente tem uma sociedade absolutamente desbalanceada em relação ao povo negro. Não existe equidade entre brancos e negros e mexer nisso é rever privilégios históricos. Nós, negros, nunca somos a primeira escolha. “Ah, vamos pensar em alguém que possa ter uma fala na ONU.” Não, não é a gente. Inclusive, no início, quem discutia racismo no Brasil, os pensadores, basicamente eram todos brancos. Particularmente eu não acho que exista nenhum problema nisso, mas onde estão os pensadores negros? Eles existem, e a maioria deles continua fora das academias. É preciso haver essa reparação. Eu escolhi ser negra logo cedo. Primeiro, é uma percepção. Você não nasce preta, branca... Você não nasce nada. Como diria uma professora que tenho (citando Lacan): “Você é um bife quando você nasce”. Um bife. Você é só inconsciente. É só: “preciso comer, estou com dor...”. Não tem nada. Demora pra construir isso, e aí você se faz negra.

P. Você se faz negra ou te fazem negra? Pode ser uma escolha?

R. De criança ninguém dizia que eu era branca. Ninguém dizia que eu era negra. A sociedade sabia que branca eu não era. Outra parte talvez tivesse dúvidas se eu era negra. Eu me entendi e me fiz negra ao longo da vida. Eu sou negra. Ponto. É isso o que eu sinto, é assim que eu quero ser vista. A música que me constitui vem dos tambores, e eu atendo a esse chamado para dialogar com o mundo.

Fabiana Cozza na sala de seu apartamento, em São Paulo, em foto feita após a renúncia ao papel de Dona Ivone Lara no musical
Fabiana Cozza na sala de seu apartamento, em São Paulo, em foto feita após a renúncia ao papel de Dona Ivone Lara no musicalFernando Cavalcanti

P. Como foi esse compreender-se negra?

R. A minha primeira imagem de uma cisão étnica foi na escola municipal, em São Paulo, onde eu estudava. As minhas amigas brancas entravam pela frente da escola, pela porta principal. As minhas amigas negras entravam pelo fundo da escola, porque elas moravam na favela que tinha acima do morro da escola. Então, essa foi a minha primeira percepção: “Nossa, as pessoas entram por lugares diferentes na mesma escola”. Na segunda série, uma professora chamada Cândida quis criar uma biblioteca na sala de aula, e eu tinha um amigo chamado Cláudio. O Cláudio era mais velho que a gente, nós tínhamos oito anos e ele já tinha 12, 13. E o Cláudio, pra ajudar a sustentar a avó, já estava envolvido com o tráfico de drogas. O Cláudio era negro, mais escuro que eu. E, quando o Cláudio escolheu o livro, a sala teve uma reação contrária. E a professora interveio: “Por que ele não vai levar esse livro? Por que ele não pode levar esse livro? Cláudio, você vai levar o livro, sim”. Houve um constrangimento. Uma classe majoritariamente branca não queria deixar o Cláudio levar o livro. Então, muito cedo eu entendi esse lugar da discriminação. Quando eu vou para a carreira artística, eu não pensei muito, fui na minha escolha que era natural, que era o samba, que é a minha identidade, que é o quintal da casa da minha vó, italiana, que misturava, que recebia os pretos da Barra Funda, amigos do meu pai, e que o samba terminava em macarronada e não em feijoada, porque era o que se fazia dentro de casa. Eu fiz a militância da minha forma, pela minha arte, pelo meu discurso de valorização da cultura negra, de estar com o povo negro, mesmo estando em muitos lugares onde essas pessoas não estão. Mas, de um jeito ou de outro, como diz a Dona Ivone numa fala do espetáculo, que eu já estava estudando: “Vai devagarinho, minha filha, que você chega. Pisa miudinho”. Dona Ivone falava isso: “Não vai pela força, não”. Não foi à toa que essa mulher trabalhou muito, no início da carreira, com a Nise da Silveira, uma das maiores psicanalistas brasileiras, uma lutadora contra os manicômios. É claro que tudo isso deu um caráter humanizador pra Dona Ivone Lara. E eu vejo como a música é essa potência humanizadora que agrega, que une.

P. Quando você fala da escola, parece que você está olhando para as brancas, está olhando para as pretas... Onde você está? De que lugar você olha?

R. Eu entendia que eu não tinha o cabelo liso, que eu não conseguia namorar o menino que eu gostava. Os meninos brancos não olhavam pra gente. E tinha uma outra coisa que era muito triste. Chegava na festa junina, e isso eu senti na pele, e faltava menino pra dançar. Aí eles pegavam nós, as negras, pra dançar como menino. Eu fiz muito papel de menino e isso era muito ruim, porque de repente a gente chegava toda vestida de caipirinha na escola, com o vestido que a mãe comprava, e aí tinha que se vestir de menino. Eu tinha as amigas brancas, mas eu não era do grupo dos privilegiados, e as pretas me abraçavam mais.

P. Você se entendia como o quê?

R. Eu me entendia naquela época como parda. Falavam que eu era parda, então eu era parda. Me chamavam de morena.

“Minha negritude está no meu canto que não tem limites nem se curva ou se intimida”

P. Quando é que você passou de parda para negra?

R. Acho que foi quando eu comecei a cantar. Aí eu já era a Fabi do samba, a Fabi da Barra Funda, que é filha do Camisa Verde e Branco, né. Com um mês de vida meu pai me levou na quadra pra ser meio que batizada. Então, quando a velha guarda do Camisa Verde e Branco (uma das escolas de samba mais tradicionais de São Paulo), que me viu praticamente nascer, me viu cantar, eles choraram todos, todos. Nunca me esqueci desse dia. Então, essa é a minha negritude. Aí está a minha negritude. Nos meus espelhos, na minha herança familiar, no meu fazer diário, na minha religiosidade, na comunhão com tantos amigos não negros de pele. No meu canto que vai pro mundo e não tem limites e não se curva ou se intimida a despeito dos desafios e restrições que eventualmente surgem no caminho. Minha negritude fala alto. Quando a Omara Portuondo (grande cantora e dançarina cubana) me chama de negra, quando a Dona Ivone me chamava, quando os meus amigos me convidam pra roda de samba, quando sou recebida pelo Congado da Maria do Bairro de Aparecida, em Minas, quando eu saio com o Tizumba tocando no desfile da Festa do Tambor das Irmandades de Moçambique, quando eu canto o Monsueto (Menezes) na Sala São Paulo com a Jazz Sinfônica de São Paulo, pra uma plateia que não tá acostumada a ouvir Monsueto, quando tem um episódio desses e eu chego na universidade e as pessoas querem saber do que se trata. Porque, pra essas pessoas, essa é uma questão distante. Mas, pra mim, não. É uma questão do meu quintal.

P. Como foi que você foi convidada para ser Dona Ivone Lara?

R. Há três anos, o Jô Santana, que é o produtor musical, foi ao Rio de Janeiro e me viu fazendo o (artista cubano) Bola de Nieve (1911-71). Como você sabe, ele é um negro. Eu não gosto da palavra retinto, porque retinto é repintar e ninguém se repinta, a pessoa é o que ela é. Ponto e acabou. Não gosto de retinto. Nunca chamei ninguém de negro retinto. Meu pai, dentro dessa classificação, é um negro retinto. Mas meu pai sempre foi preto pra mim. Bom... Então, o Jô Santana me viu fazendo Bola de Nieve. Compositor, pianista, negro, gay, que foi um sucesso no auge da revolução. O Jô Santana falou: “Fabiana, você é uma atriz. Você não é só uma cantora. Você é uma atriz”. E disse: “Eu vou fazer um musical em homenagem à Dona Ivone Lara e eu já quero te convidar para estar nesse musical. Não sei ainda fazendo o quê, mas eu quero lhe convidar”. Eu falei que ficava muito lisonjeada. Mas eu sou uma pessoa que pensa muito o dia-a-dia. Tenho os meus sonhos. Eu olho lá longe, mas eu sou a formiga. Eu sei que o inverno vai chegar. Então, eu falo: “Lindo, projeto dos meus sonhos. Beleza, mas o que eu tenho que fazer agora?”. Agora então precisa estudar isso, depois ir lá na aula da professora tal, depois ligar pra não sei quem... É assim que eu vivo. Então, passaram-se três anos. Em 2018, recebi uma ligação do Jô Santana: “Fabiana, eu quero te convidar para uma reunião aqui na produtora porque eu quero te fazer um convite”. Eu fui para a reunião. E o convite foi pra ser a protagonista do espetáculo. Comecei então a organizar a minha vida para me mudar para o Rio, porque os ensaios começam agora, em julho. São dois meses de ensaio, todos os dias, até chegar à estreia em setembro. Liberei a minha agenda pra isso.

“A gente estuda e estuda para entender que depois tem que desconstruir tudo pra chegar no essencial. Dona Ivone Lara já era essencial”

P. E como é que você se sentiu?

R. Quando eu recebi o convite? Eu tive uma crise de choro na frente de todo mundo. A Dona Ivone gravou comigo no disco “Quando o céu clarear”, em 2007. Cantou comigo num show no SESC Pinheiros. Dona Ivone e dois cubanos, um deles um dos melhores trompetistas do mundo, que é o Julio Padrón. E o Yaniel Matos, que vive no Brasil, pianista. Os três eram meus convidados especiais nesse momento. Isso há 11 anos. Talvez ali eu já tinha uma coisa de querer também expandir a minha conversa com a América Latina negra. Foi a primeira vez que eu tive a participação de dois estrangeiros em um trabalho meu e numa conexão que pra mim era absolutamente natural, orgânica, imediata. Quando nós, pretos, nos encontramos, mesmo de culturas diferentes, a gente tem um tambor como pilar de união da gente e a gente têm a nossa ancestralidade, a nossa questão do sagrado. O sagrado é pilar de sustentação. Recebi esse convite e fiquei muito emocionada, porque veio esse filme na minha cabeça. Peguei na hora o celular e comecei a mostrar as coisas que eu tinha com a Dona Ivone. Em 2011, quando a Dona Ivone veio pra São Paulo, a gente foi fazer um show no Centro Cultural da Juventude, ali nas quebradas do (rapper) Emicida, na Vila Nova Cachoeirinha. Dona Ivone estava debilitada fisicamente. O filho tinha falecido recentemente, e ela ficou muito debilitada. Uma mulher naquela idade receber uma notícia dessa... A gente ficou conversando longamente no camarim. E eu sempre não querendo incomodar, sempre numa reverência imensa, que é uma reverência que eu tenho com grandes nomes, as pessoas que me constituíram artisticamente. Ela entrou na cadeira de rodas, o neto André levou, e quando eu comecei a cantar “Eu vim de lá”, ela começou a querer se levantar e o André, por precaução, disse: “Vó, fica sentadinha, vó...”. Eu olhava pro André e falei: “Mas ela quer se levantar, gente”. E aí eu tomei a decisão de ir lá e falei: “Dona Ivone, a senhora quer se levantar?”. E ela: “Quero me levantar, minha filha”. Aí eu peguei, coloquei o braço dela e levantei a Dona Ivone. Dona Ivone cantou em pé o tempo todo, feliz com o seu povo. Ela conquistou o seu lugar por ser efetivamente uma representante das expectativas do povo, dessas falas que ecoam dessa gente, isso é ser uma artista popular. Dona Ivone não era uma pessoa que ficava filosofando, falando difícil. Era uma mulher simples. É uma mulher que eu não sei ser. Eu fui por outros caminhos. A gente estuda, estuda, estuda e depois entende que tem que descontruir tudo pra tentar chegar no essencial. A Dona Ivone já era o essencial. Ela já era essencialmente Dona Ivone Lara. Então, representar uma mulher dessas tendo no currículo toda uma passagem com ela, me fazia sentir que esse convite estava muito no lugar pra mim.

P. Você tinha algum temor quando recebeu o convite?

R. Eu fiquei pensando como é que eu ia desconstruir a Fabiana pra poder dar voz a uma Dona Ivone Lara. Como é que eu saio da Fabiana, que faz mestrado, que tem um trabalho artístico que está nesse lugar do samba também, que está nesse lugar popular, mas que teve um entendimento de construção disso de uma forma diferente da Dona Ivone. São três Dona Ivone no espetáculo: uma criança, uma jovem, do período em que Dona Ivone trabalhava com a Nise da Silveira, e a Dona Ivone quando vira Dona Ivone Lara, que é quando ela começa efetivamente a assinar as canções e assumidamente vira a compositora e cantora. Eu ia fazer essa última. Eu ia ter que envelhecer voz, eu ia ter toda uma caracterização, porque eu pegava a Dona Ivone a partir dos 50 anos e eu ia até os 80. Então eu precisaria fazer todo um trabalho também de corpo, de construção dessa personagem, até chegar nesse envelhecimento, nessa voz que se fragiliza por conta da condição física, biológica, anatômica, que vai se deteriorando com o tempo, que vai dando espaço para uma certa flacidez muscular. Estava tudo bem arranjado, com fonoaudióloga etc. Isso é uma exigência minha, enquanto artista: “O que eu preciso pra chegar na voz dessa personagem?”. Mesmo com uma orientação do diretor, o Elísio Lopes, que é uma pessoa bem sensível, me dizendo: “Eu não quero uma imitação da Dona Ivone Lara”.

P. Isso é importante. Qual era a ideia desse espetáculo, no sentido da interpretação artística?

R. Nessa reunião, a primeira pergunta que eu fiz foi: “Qual Dona Ivone Lara vocês querem? Que tipo? Porque se for pra fazer uma imitação, não sou eu”. Não sou eu até porque eu não me vejo nesse lugar. Minha interpretação busca a subjetividade do outro, através de uma série de composições, sobretudo psíquicas. Então, o Jô Santana falou assim: “Olha, ninguém quer uma cópia. A gente quer a intérprete Fabiana Cozza dando voz a essa personagem que se chama Dona Ivone Lara”. Ótimo. Quando eu conheci o Elísio, diretor, falei longamente com ele por telefone: “Elísio, eu já ouvi do Jô, mas eu preciso ouvir de você, que é o diretor do espetáculo: o que é que você quer de mim e qual é a sua expectativa com essa Dona Ivone? Quem é essa Dona Ivone pra você?”. Ele falou: “Fabiana, você é uma intérprete. Conheço você fazendo coisas muito diferentes. Quero que você dê voz à essa Dona Ivone Lara que nós vamos criar”. Aí eu fiquei tranquila, porque o lugar da criação é o lugar ao qual estou habituada. Não o lugar da cópia, mas da interpretação. Vai existir uma Dona Ivone que tem o espírito, a anima, a áurea da Dona Ivone Lara. Mas que não é ela. Não é uma cópia chapada, não é uma xerox, porque não daria pra fazer isso. É impossível. Então, a partir desse lugar de artista eu fiquei confortável. Do mesmo modo que eu não sou o Bola de Nieve, mas eu tenho como emprestar minha voz à poética do Bola de Nieve e isso é representar o Bola de Nieve e também é manter viva a alma do Bola de Nieve. É perpetuar o Bola de Nieve, mesmo numa pele mais clara. Mesmo sendo mulher.

P. Você estava imensamente feliz por interpretar Dona Ivone Lara. De repente, começaram as reações contrárias por conta da cor da sua pele. Qual foi seu primeiro contato com as críticas e também com os ataques, porque é importante diferenciar uma coisa da outra.

R. Teve um jornalista do Rio, do jornal Extra, que foi a primeira pessoa a me perguntar: “Fabiana, você não tem medo das críticas que possam surgir, por você ser muito clara e a Dona Ivone ser mais escura?”. Eu juro a você que naquele momento eu não computei isso, porque eu sempre cantei Dona Ivone, eu tinha contato com ela, eu tinha sido escolhida por ela. Então, eu não precisava levantar placa em lugar nenhum pra dizer nada. Eu achei que estava tudo bem. E eu sou movida por uma coisa que é artística, então fiquei feliz porque, sei lá, de repente poderiam ter escolhido alguém de outro gênero musical, que não tivesse contato com a linguagem do samba, e que aí ,sim, talvez essa pessoa sofresse mais críticas. Mas eu?!

P. O que você respondeu ao jornalista?

R. Eu falei: “Olha, eu, eu acho que isso não vai acontecer, porque eu fui escolhida pela Dona Ivone, eu tenho minha história, que é toda relacionada ao samba”. Mas não teve nem cinco horas de comemoração...

P. E como é que aconteceu?

R. Começaram a invadir a página do musical. Parecia um enxame, porque até então a página não tinha tantos seguidores. A minha produtora, a Nenê (Rodrigues), que acompanhou bravamente tudo isso, leu tudo, começou a tentar me blindar. Mas eu tenho acesso, claro, e a primeira coisa que pensei foi: “Gente, muitas dessas pessoas não me conhecem”. Por conta do que falavam, da forma como falavam, me chamando de “alpinista”, “aventureira”, “oportunista”. Dizendo: “Ela não é preta” ou “Quem é você que acha que é do samba...”. Pensei: já que esse pessoal é tão internético, poderia ter pelo menos dado um Google. Aí o discurso começou a ficar muito confuso, porque havia pessoas que falavam que não tinha nada a ver com a minha cor, mas sim com a representatividade. Precisava ter uma pessoa do tom da Dona Ivone Lara, pra poder ser legitimada no papel de Dona Ivone Lara. Mas rapidamente a coisa tomou o tamanho que tomou. Isso abriu brechas pra os que eu estou chamando de extremistas aparecerem, e aí partiram pra algo pessoal.

P. O “pessoal” vinha como?

R. Eu nunca postei coisas pessoais no Facebook, a não ser, sei lá, uma foto com a minha mãe no Dia das Mães, sabe, coisas assim. Ninguém sabe da minha vida pessoal, porque não interessa, minha vida não interessa pra ninguém, até porque é muito desinteressante. Minha vida só é interessante pra mim, pra quem convive comigo. Mas tenho a página de artista e nunca tive tantos comentários pra nenhuma atividade artística que eu tenha feito. Nunca recebi 1.300, 1.500 comentários. Desconfio que muitas dessas pessoas que comentaram sobre eu ter sido escolhida para o papel de Dona Ivone Lara nunca assistiram a um show meu ou ouviram um disco. Então, me parece que esse é só um lugar histérico, psicótico. O outro é invisibilizado, apagado. Não se trata de uma surdez. É um processo que nesse tempo da gente não tem só a ver com a questão do racismo.

“Nossa sociedade está com uma febre muito alta. É preciso baixar para os 36 graus porque a gente precisa conviver”

P. Tem a ver com o quê?

R. Eu acho que tem a ver com esse tempo de polarizações, de ódio, esse tempo pouco poético, pouco musical, sem delicadezas, esse tempo em que as pessoas não se encontram mais pra tomar um café, esse tempo em que as pessoas só se abraçam num momento de extrema euforia, como a Copa, o que também me soa sintomático. Aí os homens se abraçam. A mim parece uma sociedade com uma febre muito alta. A gente precisa baixar essa febre pra 36, sabe, baixar o grau, porque precisamos conviver. Eu vivo num prédio onde sei que muitas pessoas têm toda uma orientação política, social, cultural muito diferente da minha. Nem por isso agrido o meu vizinho de porta, nem por isso eu não posso oferecer um café se ele precisar, como minha avó fazia antigamente.

P. Houve alguma manifestação que particularmente doeu mais em você?

R: Tudo ficou muito difuso, tudo virou um grande eco pra mim, um eco de muita gente falando ao mesmo tempo. Aí eu precisei ficar quieta com o meu orixá. Sabe, fica com o teu silêncio.

P. Quanto tempo você levou até decidir renunciar ao papel?

R. Três, quatro dias. Eu silenciei imediatamente e, nesses três dias, fiquei nessa situação de escutar. Quando eu era jornalista e cobria esportes, frequentava os estádios. Então foi como estar num grande estádio de futebol e todo mundo falando junto. E logo as pessoas começaram a se estapear. Para mim não dá essa coisa de linchamento uns com os outros. Teve uma professora que saiu em minha defesa e foi xingada: “Sua branquela, quem é você, vai estudar!”. Houve uma outra pessoa que postou até um pedido público de desculpas: “Fabiana, eu venho aqui pedir desculpas porque eu não sabia quem você era, eu não sabia da sua trajetória, eu não conhecia você, e eu fui uma das pessoas que falou muito mal de você”. Porra, esse é um lugar de muita coragem. Eu busquei ler tudo o que os pensadores, os professores, os jornalistas escreveram, as pessoas que tentaram refletir para iluminar a questão. Falei pra Nenê assim: “Porra, você já pensou se no Brasil a gente pudesse discutir as coisas, se a imprensa desse essa atenção sempre pra assuntos tão importantes como esse, sem precisar de uma ocasião?”. A gente avançaria muito. Eu gosto da reflexão, do debate, da escuta, gosto quando apontam falhas na minha linha de pensamento nos debates da universidade. Sempre começo pedindo licença pra falar sobre a área do outro. Porque isso é educação da gente, que é preto. A gente aprende que ninguém entra no terreiro sem pedir licença. Os antigos é que ensinam sobre isso, os de “cabelo branco”.

P. Como bateu em você o questionamento sobre a sua representatividade?

“Os negros de pele clara estão na Faixa de Gaza, no lugar de conflito”

R. Politicamente, essa questão da representatividade bateu forte, e eu pensei: “Não, eu vou embora, eu não vou fazer o musical. Vou ceder esse um lugar para uma mulher mais escura do que eu nesse momento em que sequer essa questão é discutida no Brasil”. A representatividade negra não é amplamente discutida. Aliás, muito pelo contrário. Nos últimos anos nós tivemos pequenas conquistas, cotas, mais negros na universidade, Secretaria de Igualdade Racial... E agora acabou e está acabando tudo isso. Há um extermínio. Diante de tudo, pensei: “Vou sair”. Politicamente talvez tenha sido a posição que me exigiu mais reflexão.

P. Como você situa o que aconteceu?

R. Essa questão tem muitas faces. Existe, sim, a questão da representatividade. É uma questão política. Como disse recentemente o Kabengele Munanga (antropólogo e intelectual brasileiro nascido no Congo): “Nos Estados Unidos, basta ter uma única gota de sangue africano para ser considerado totalmente negro. Obama, por exemplo, tem pai queniano e mãe branca, mas politicamente é considerado negro, sem ambiguidades. No Brasil, se criou essa ambiguidade. E agora os próprios negros estão se dividindo entre eles”. Então, é preciso ver as questões de uma forma muito cuidadosa, porque tudo está posto, tudo está sendo dito, e eu acho também que a gente só aprende o caminho caminhando. Acho que as bombas, as tempestades, tudo faz parte desse caminho. Não acho que nada tenha que ser excluído. Do contrário, a gente teria uma ditadura, onde as coisas são fixas. Pra gente poder avançar, a discussão tem que ser absolutamente democrática. Há uma coisa, no meio disso tudo, que eu acho realmente muito positiva: as pessoas começaram a ter empatia pelo assunto. Eu acabei funcionando um pouco como um disparador. Aí volto para a sua pergunta: “Que lugar você ficava lá na escola, né, porque tinham as brancas, tinham as pretas e tinham as pardas”. Eu fiquei em uma faixa, né, e é interessante como a discussão “startou” de novo pela faixa, pelo que separa. Por uma coisa que separa, mas que, também, se a gente for falar da questão de cor, de pigmento, não é nem uma coisa e nem outra. É quase que a Faixa de Gaza, um lugar de conflito mesmo. É o lugar do conflito.

P. É interessante pensar sobre isso. Você acha que o lugar da “mulata”, essa palavra considerada racista por parte dos movimentos negros, é o lugar de conflito? Que conflito é este, pensando do ponto de vista histórico, na medida em que podemos pensar que o processo de miscigenação no Brasil começou pela violência, pelo estupro das pretas escravizadas pelos brancos, senhores de escravos?

R. O racismo gera o conflito. Nós, negros de pele clara, eu me arriscaria a dizer, estamos nessa Faixa de Gaza. Metaforicamente, o colorismo pode ser essa linha divisória. Agora, talvez seja importante entendermos o conceito de negro. Quem é negro neste país? Quem não é? O que define? Quem tem “autoridade" suficiente pra entrar ou não nessa discussão? O que legitima uma pessoa se assumir negra? E a auto-declaração, vale? Não Vale? Eu também fiquei confusa.

P. Tem algo positivo nesse episódio?

R. Se tem uma coisa boa, é que pela primeira vez fui interpelada por pessoas brancas – professores, colegas, gente da família, gente na rua que me conhece, interessados no assunto. E eu me expresso assim porque eu tenho muito respeito, porque eu sou filha de uma mãe branca e há que se ter respeito pelas pessoas, pelo que elas são. Há que se ter respeito, como os negros precisam ter respeito pelo que eles são. A discussão não pode ser extremada dessa forma porque a gente não avança.

P. Como os apoios a você foram demonstrados?

“Precisamos de lugar de fala. Mas acho que precisamos ainda mais de lugar de escuta”

R. Eu tive apoio de muita gente do movimento negro que, do ponto de vista dos argumentos, dos conceitos, se manifestou com muito mais propriedade do que eu consigo me expressar, porque eles, sim, estudam a fundo essa questão. E se manifestaram no intuito de dizer: “Olha, nós hoje somos a maior parte da população, porque isso foi uma conquista do movimento negro. Negros são os pretos mais os pardos. Então, com isso, sim, nós somos muitos, nós somos mais de 50% do país. Mas, se a gente tira os pardos, a gente vira 8%, que é o porcentual dos que se declaram pretos, segundo a última pesquisa divulgada pelo IBGE. Pardos são quase 47%. E 8% é muito pouco. Então, a gente precisa estar junto”. Eu recebi muitas mensagens de pessoas que são claras, negras claras, negros claros. Onde é que essa gente está? Onde é que a gente fica? Por isso é que eu digo que esse discurso extremado contribui muito pouco pra gente conseguir avançar e conquistar representatividade. Mas esse episódio fez com que, pela primeira vez, eu chegasse na universidade, por exemplo, e pudesse conversar com minhas professoras e colegas, porque todos queriam saber o que era colorismo, por exemplo. Todos os meus professores são brancos.

P. Que perguntas eles fizeram a você?

R. “Eu não estou entendendo, me explica o que é colorismo”. Ou: “Como assim, você não é negra? Porque a gente acha que não é uma questão só de cor, a gente acha que tem uma coisa da inveja. Mas explica pra gente”. Esse episódio me custa muito emocionalmente. Muito mesmo. Mas, se esse episódio for uma contribuição, se for só uma gotinha pra gente discutir racismo sentando numa mesa redonda e se olhando, terá valido a pena. Sentar gente de toda cor, porque não acho que seja um debate só nosso, só dos negros. Acho que nós, negros, temos que arrumar a casa. Mas me refiro a um diálogo maduro, com propostas. E eu vou te falar uma coisa que eu realmente penso: está muito comum a gente falar hoje em dia de “lugar de fala”. Perfeito. Precisamos do lugar de fala. Mas, na minha opinião, acho que a gente precisa mais de lugar de escuta. É muito mais importante. Fala-se muito, ouve-se nada. Assim não anda, não anda. Aí vira guerra, mesmo, e na guerra é a foto da ONU que eu vi hoje lá na Síria. Só sobra mutilado, escombro, sangue pisado, resto. Na guerra é isso. Catástrofe humana, trauma. E os que manipulam a guerra estão absolutamente preservados, estão sempre preservados. Assistindo a tudo e gargalhando diante de nós. No Brasil, por exemplo, temos vários candidatos interessados em ocupar uma vaga na Câmara, sentar na cadeira presidencial...

P. Como é estar nesta guerra como artista?

R. Este tempo não tem poesia. E nós, artistas, temos nos esforçado. A gente sempre construiu, criou, a despeito das adversidades e incongruências do país. Porque as coisas faltam pra gente. Falta fomento. Faltam escolas de artes, teatro, salas de música, biblioteca, circo, salas de cinema. Faltam espaços pra pensar a música, faltam espaços pra ensinar, falta aprovar que os professores entrem dentro do ensino fundamental pra ensinar música. Falta valorizar e preparar os professores. Falta, falta, falta, falta. E a gente continua, a gente sobrevive. E faz, faz, faz, faz. Ajuda o outro, dá uma mão pro outro, comemora. Quando tenho a oportunidade de ser curadora de algum projeto, como em alguns anos nos shows da Balada Literária, organizada pelo Marcelino Freire, convido só artistas negros, diversos e únicos. E essa escolha acontece porque aquelas pessoas são fundamentais pra minha arte. Tem um texto do (Eduardo) Galeano, na contracapa do Livro dos Abraços, que eu gosto muito. Fala assim: “Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E, quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: ‘Me ajuda a olhar!’”. É isso. Esses negros com os quais eu compartilho a minha arte, a minha vida, o meu coração, a minha casa são os negros que me ajudam a olhar a vida, isso que é o meu lugar de existência. Então, a minha renúncia foi a minha decisão artística mais doída até agora, artisticamente falando.

P. Por quê?

R. Porque me deslocou desse lugar onde entendo que posso contribuir de alguma forma pra gente olhar outras coisas, pra gente aprofundar o olhar. A arte é o lugar da criação, do imaginário, da reflexão. É o lugar do político, da filosofia. É o lugar da psique humana, dos monstros. Por isso é que quando a gente cala o artista, isso é um crime, é uma coisa muito doída. Por isso também acho que tantos artistas se solidarizaram. Eu volto a dizer: acho que a discussão precisa avançar e talvez a questão da representatividade do negro nos espaços públicos precise ganhar um outro patamar, para que a gente um dia esteja mais em paz e, quiçá, não precise mais discutir isso.

P. Você foi calada?

R. Eu fui silenciada, eu não fui calada.

P. Qual é a diferença?

R. Fui repreendida. Calada é quando uma mão vem pra minha boca. Silenciada é quando há uma escolha. Você se retira. Eu escolhi me silenciar. O “ca”, do verbo calar, é uma consoante dura, e o silêncio não, é uma palavra mais soprosa. Estou aqui fazendo uma análise fonética bem rasa, mas tem um pouco isso, calar como uma coisa de “cala a boca”.

P. Você ouviu muito isso?

“Minha voz é minha. Minha voz é muita gente. Chorei muito pra poder cantar”

R. Sim... “Cala a sua boca, quem você pensa que é?” E “cala a sua boca”, pra mim, também remete a um lugar muito infantilizado. A criança pequena, quando fala “cala a boca”, ela está aprendendo como ela vai negociar. Ela não sabe ainda negociar, então ela faz isso de uma forma caótica. Eu acho que abri mão de um desejo, que era o desejo de fazer, de interpretar Dona Ivone, pra poder também enxergar mais adiante na minha caminhada. Porque nada parou. Três dias depois eu estava em Cuba, trabalhando, ensaiando. Mas espero que essa discussão não arrefeça. Que continue podendo seduzir pessoas que nunca se sentiram no direito de conversar sobre isso. Ouvi muito esse argumento: “Não posso falar sobre isso porque sou branca”. Mas por que não? Eu não preciso ser palestina pra saber da dor que é ser mãe de um filho que morreu na guerra. Não, pera um pouquinho. Se for assim, os livros não poderiam ser escritos. Imagina se as escritoras tivessem que viver tudo aquilo que escrevem, que inventam, que criam, que pensam, que sonham. Não, isso não existe, eu tenho que ser empática com as pessoas, conhecer a sua história antes de tudo. O movimento LGBT tem uma coisa interessante, cada ano soma uma letra, né? L-G-B-T-S tã, tã, tã, tã... Daqui a pouco vai estar o alfabeto inteiro. E isso é maravilhoso. Porque as pessoas vão se enxergando nesse universo da dor por ser discriminado. “Sou discriminado, cara, tem lugar pra mim aí?” Tem lugar pra você, sim, vem pra cá, claro que tem lugar pra você. Então, precisa ter lugar pra gente, pra gente estar irmanado nessa luta que é coletiva. A discussão do racismo no Brasil é do Brasil. Depois, a gente pode até expandir para os irmãos, entender como é que é no Peru, como é que é no Uruguai, como é que é na Argentina, onde muitos negros morreram guerreando.

P. Como foi silenciar? Como foi essa renúncia?

R. Eu poderia estar no musical, poderia estar lá, suportando ou não. Artisticamente, eu saí com muita dor, com muita dor, porque foi algo muito celebrado, muito festivo num primeiro momento. Eu saí porque eu não sei ser criativa na violência, eu não sei. E, por isso, eu corria um risco muito grande, que era o de jogar na lama, por conta de uma desorganização interna emocional, um trabalho que eu construo há 20 anos. E isso eu não vou arriscar. Tirem-me tudo, só não me tirem a música, como diz a Noêmia de Souza, no poema “Súplica”. Pode me tirar tudo, mas a música não, a minha voz jamais. A minha voz é minha. Porque minha voz não é minha numa relação de poder, num jogo vaidoso. Minha voz é minha porque ela é a minha avó, é o meu pai, é a minha mãe, é os meus irmãos. Minha voz é tudo, minha voz é muita gente. É sentida. Chorei muito pra poder cantar.

P. Foi este o seu limite?

R. Quando entendi que eu ia perder esse lugar, eu falei: “Não, não posso correr o risco”. Inclusive por toda a questão do sagrado que eu tenho dentro de mim. Eu sou figura de candomblé e tudo o mais. Entendo que a Dona Ivone fez a sua passagem há dois meses, e ela não foi ouvida. A escolha dela foi verbalizada, ninguém inventou essa história pra acalmar ânimo de ninguém. Então, haveria de se ter mais escuta, eu volto a insistir nisso. A gente deve entender o nosso lugar de fala, sim, e o nosso lugar de fala deve ser respeitado, mas você não vai ser respeitado se você não respeitar o outro. Isso é básico. Isso é o começo de qualquer conversa.

P. Pegou muito forte pra você o fato de Dona Ivone Lara ter escolhido você, mas essa escolha não ter sido levada em conta nas críticas à sua cor...

R. Me entristeceu profundamente que, porra, a Dona Ivone nessa história morreu. Você pode recuperar todas as discussões e vai perceber que é um ou outro que fala da Dona Ivone. Não tem Dona Ivone na discussão, e a homenagem era pra ela. Então, por essas e por outras, eu achei que eu tinha que sair. Muito difícil esse exercício, muito difícil, quase que dois chips. Um político, politicamente Fabiana, no qual passam todos os pretos e pretas da minha vida com quem eu sentei nessa mesa. “Irmã, eu estou precisando falar com você”. O que foi? E era isso, demasiado pretos para o papel.

P. E o outro chip?

R. Na verdade, é tudo uma grande ilusão, é tudo uma coisa só. E é uma bagunça. Ninguém é uma coisa ou outra, né, mas eu precisei fazer assim. Eu fiquei nessa casa, chorava de um lado pro outro. A cachorra ficou doente, porque as cachorras entendem a coisa da energia. Eu pensei: “Eu preciso entender o que eu tenho que fazer”. Aí é muita reza mesmo, aí se tranca com seu orixá e vê o que você tem que fazer, qual é a decisão que você tem que tomar.

P. Como foi isso pra você?

“A Dona Ivone já está em mim. Eu também sou a Dona Ivone Lara”

R. Eu não esperei estancar nada, deixei a emoção tomar conta. Meu terapeuta achou ótimo isso, porque senão poderia ter explodido de outro jeito. Deixei a coisa tomar conta e aí falei: “O que é o melhor a ser feito?”. A coisa deixou de ser minha, a coisa passou a ser de tantas pessoas, virou uma outra voz. Eu saí da voz da Dona Ivone, da personagem, virou uma voz que era uma voz que precisava se posicionar, politicamente. E como eu acredito que o artista é um ser político sempre, desde sempre, vieram esses amigos na cabeça e algumas falas que pediam a minha renúncia. Estas foram falas muito delicadas e muito argumentativas, muito importantes até pra essa minha decisão. Não sei dizer o nome das pessoas, eu só sei que li algumas coisas que foram muito delicadas. Aí o outro chip é esse, essa coisa do artístico que eu já falei. Eu não estou abandonando a Dona Ivone, não estou me despedindo. Aí acho que entra o orixá, uma coisa que te ilumina. Não é uma despedida.

P. Por que não?

R. Por uma coisa simples, por uma coisa que gosto muito: as experiências viram memórias no corpo. Eu gosto muito dessa imagem da memória do corpo, que é o que trabalho comigo em cena. A Dona Ivone já está em mim, eu também sou a Dona Ivone. Não preciso estar no teatro, posso estar em qualquer lugar. Então, essa voz: “A Dona Ivone já está em você, você vai cantar Dona Ivone até morrer, não precisa ser agora. Sai, Fabiana, sai pra preservar tudo isso”. Como se a emoção de cantá-la fosse – ou é – algo que te toma de fora pra dentro. Algo que voa, que está suspenso e pode lhe encantar a qualquer novo momento.

P. Você se sentiu violentada?

R. O que mexeu muito comigo e com o meu pensamento é isso que eu já disse, o fato de que a opinião da Dona Ivone Lara não foi respeitada. Isso, pra mim, é uma violência.

P. Que efeito teve isso no seu corpo?

R. No meu corpo? Eu fiquei paralisada nos primeiros dias. Tudo isso começou no dia 30 de maio e, no dia 5 de junho, eu embarquei pra Cuba. Foi um período de quatro, cinco dias em que eu fiquei deslocada do meu lugar de identidade. Quando comecei a escrever aquela carta pra você, comecei a respirar melhor. A escrita, a literatura é meu quartinho de despejo, lembrando de Carolina Maria de Jesus.

P. O professor Kabengele Munanga disse numa entrevista ao jornal A Tarde que o que aconteceu com você poderia ser inveja. Você acha que teve também esse viés?

R. Muita gente disse isso. Mas eu não sei se foi inveja. Eu consigo identificar esse discurso da representatividade como legítimo, porque também vivenciei esse histórico com amigos. Isso é muito verdade e precisa ser reparado, sim. As pessoas perdem lugar porque são consideradas “escuras demais”, “pretas demais”. Agora, é fato e eu não sou ingênua, que a gente tem essa coisa de achar que a grama do vizinho é mais verde do que a minha. Quantas dessas pessoas apareciam nos meu shows ou compraram meus discos? Já interpretei até a Clementina de Jesus no teatro, na peça do Gero Camilo e do Victor Mendes, há dois anos, e acho que não apareceram. Agora, o papel da dama do samba brasileiro, num musical grande que vai pro Rio de Janeiro, que vai ficar quatro meses em cartaz, aí eu acho, sim, que tem uma quantidade de gente que queria estar nesse lugar.

P. Onde você se coloca, neste momento, depois de tudo o que aconteceu?

R. Eu estou do lado que sempre estive. E em movimento.

P. E se fosse uma branca?

R. Fazendo o papel? É... Acho que as pessoas achariam que aí de forma nenhuma poderia fazer Dona Ivone Lara.

P. Mas o que você acha?

Em espetáculo que estreou em 2016, Fabiana Cozza interpreta o grande artista cubano Bola de Nieve: homem, negro e gay
Em espetáculo que estreou em 2016, Fabiana Cozza interpreta o grande artista cubano Bola de Nieve: homem, negro e gayPaulo Pereira (Divulgação)

R. Talvez, se um dia houver equidade entre brancos e negros, essa questão não exista. Essa questão da representatividade existe, ela é insipiente, insuficiente ainda no Brasil, muito pouco debatida, e talvez eu não saiba te responder mais do que isso. Artisticamente, penso que a arte precisa perseguir sua “liberdade”, utópica, de que o palco é livre. Livre no que permite a imaginação, o sonho, a arte que pergunta, duvida, abraça, assusta, afeta, transforma, propõe, denuncia, ama. Fui pra Cuba fazer o Bola de Nieve, em março, fui gravar um DVD, e tive a coragem ou a cara de pau de convidar a irmã do Bola de Nieve, que é a única que está viva, com 87 anos de idade. Eu cantei pra uma plateia majoritariamente de negros, e eu posso te mostrar o que aconteceu, porque eu tenho o DVD aqui. Em nenhum momento tive dúvidas sobre o quê eu ia fazer, mesmo não sendo da cor do Bola de Nieve, mesmo não sendo pianista, mesmo não sendo cubana, mesmo não tendo, talvez, nenhum dos pré-requisitos que me mimetizassem com a figura do Bola de Nieve. E foi muito especial ouvir, ao final, a produtora contar que tinha uma jornalista aclamada em Cuba, respeitada e amiga do Bola de Nieve, que foi assistir contrariadíssima. Ela havia falado: “Eu vim pra tirar a dúvida e pra confirmar a minha suspeita”. Depois que eu cantei a primeira música, a reação corporal dela foi assim: “No, no lo puedo crer, no, no lo puedo crer”. Ela ficou assim o tempo todo, até eu terminar.

P. O que isso significa?

R. É nessa força que eu acredito. Não acredito em outra. Senão eu não ia ser artista, eu ia ser outra coisa. Essa força, esse potencial, essa coisa absolutamente misteriosa e potencialmente inegável que move o corpo, quase que descolado do pensamento. É nessa potência que eu acredito. Na minha música, na minha arte. Eu sempre me preparo pra conseguir acessar em cena essa potência que é o imaginário. Nem sempre consigo, mas é nessa força natural que arrepia pelo, que deixa a lágrima escorrer sem você conseguir controlar, que tira o outro do lugar da cadeira, que faz o outro levantar e querer falar com você, querer te abraçar, é nisso que eu acredito. Isso é uma medicina, isso é a medicina que eu acho que os artistas promovem. Uma coisa que é muito mais forte, intangível, incomensurável, um monte de coisas. Então, quando isso acontece, isso só diz pra mim assim: “Tá no caminho, Fabiana. É isso aí, segue, vai, vai pra frente”. Então, eu volto a te falar. Esse canto da Dona Ivone Lara, ele já está no meu corpo e eu levo pra onde eu quiser e puder.

P. Com a renúncia, você ficou sem trabalho por meses. O quanto isso pesa na sua vida atual?

R. Tenho cinco meses pela frente em que tinha fechado a agenda pra fazer o espetáculo. Há uma questão de ordem bastante prática e real que é de trabalho, de falta de trabalho. Preciso pagar as minhas contas, preciso viver, comer. Também perdi uma turnê pela China, porque coincidiria com o espetáculo, e uma apresentação em um dos maiores festivais de jazz de Tel Aviv, que acontecerá em agosto.

P. Como sua família lidou com o que aconteceu?

R. Minha mãe estava viajando. Tentei poupá-la, mas a família toda viu, ligou pra ela. Aí a minha mãe ligou chorando do interior, foi horrível.

P. E o seu pai?

R. O meu pai é mais duro. Acho que tem a carcaça mais dura, o casco mais resistente. Ele me ligou e disse assim, bem objetivo: “Fabiana, você sabe quem você é, você sabe da luta que foi virar a figura que você virou. Ninguém põe comida na tua mesa, bola pra frente”. Cabô, apitou, e fomos jogar futebol, né, bola rolando no gramado. É assim que essas pessoas na minha família vivem. A vida é urgente, não dá pra parar, não, não dá pra ficar lamentando. Não, vamos embora!

P. Tem mais alguma coisa que você ache importante dizer?

R. Sim. Quero dizer que eu não me sinto uma vítima. Nessa história, eu não sou uma vítima. Espero que eu tenha passado isso pra você.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_