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Tribuna
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A tenacidade do esquerdista López Obrador, que deve chegar ao poder no México

Se o candidato do Morena à presidência do México vencer neste domingo, sua história será a de alguém que sempre acreditou na sua causa e, acima de tudo, em si mesmo. Não tem nem padrinhos nem companheiros, e colocará todos à prova

Jesús Silva-Herzog Márquez
ENRIQUE FLORES

Sua teologia foi a conspiração. Um poder invisível e absoluto lhe arrebatava repetidamente a vitória que merecia. A máfia do poder ditava seu capricho em todos os âmbitos. Controlando meios de comunicação, mercados, pesquisas e votos, os poderosos teimavam em obstruí-lo. Hoje o México contempla uma sintonia de acontecimentos que apontam para a eleição de Andrés Manuel López Obrador como presidente. Os planetas e os mosquitos se coordenam não só para dar um triunfo esmagador ao candidato do Morena, mas também para refazer o mapa político do país. Há uma conspiração lópez-obradorista no sentido que Cornelius Castoriadis recordava: todos respiram o mesmo ar e ao mesmo compasso, tudo sopra numa mesma direção.

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A iminente vitória de López Obrador é o testemunho de uma tenacidade assombrosa. Há décadas está no centro da atenção nacional. Suas frases, seu sotaque, seus dardos e seus tiques se tornaram parte do pão nosso de cada dia. Feita mais de derrotas que de vitórias, o homem que veio do trópico sempre acreditou na sua causa e, acima de tudo, em si mesmo. É o político mais temido e o mais amado. Um fator de polarização e, ao mesmo tempo, uma tocha de esperança. Já o demos várias vezes por morto, e está mais vivo que nunca. Acreditou-se que sua radicalização após perder as eleições de 2006 seria seu fim. Teve uma segunda chance em 2012, e voltou a perder a presidência, agora com uma margem clara. Poucos acreditaram que tinha um futuro pela frente. Quando as portas do seu partido se fecharam para ele, saiu para formar uma nova agremiação política. Parecia um salto no vazio, a obstinação de um homem que não admite seu ocaso, o capricho que voltava a dividir a esquerda. Sua aposta acabou sendo acertada: aquela aventura quixotesca tem tudo para conquistar a maioria. López Obrador é um homem de fé porque viu além do razoável, porque é um crente no inacessível.

O fascínio e o temor que suscita podem ser explicados por sua extravagância. López Obrador não se fez na política das panelinhas nem na das linhagens. Não ascendeu ostentando diplomas nem apostando nas recompensas da disciplina. Não é filho do centro, e sim da periferia. Mais do que isso, é filho da periferia da periferia. Fez-se, literalmente, durante o caminho. Como ninguém, percorreu o país de ponta a ponta. Há anos, viajava horas para se reunir, num povoado muito remoto, com uma dezena de simpatizantes. Hoje enche as praças. Curtiu-se com o caráter tosco da luta política, ali onde se rompem os limites do possível, onde se questiona o aceitável. Sua singularidade é relevante. No horizonte mexicano, representa a aparição de uma liderança radicalmente diferente, ao mesmo tempo autêntica e indômita, profunda e desbocada. Será o primeiro líder social a ocupar a presidência do México. Isto é López Obrador: um esplêndido dirigente social. Homem de instinto, teimoso, perceptivo, audaz, imaginativo, misteriosamente eloquente. Nisso podem estar arraigada a intensidade da devoção e do temor que provoca. O político mais inusitado e também o mais talentoso que o México conheceu em muitas décadas.

É o político mais inusitado e mais talentoso que o México conheceu em muitas décadas

Reconhecer o evidente é, talvez, o mais estranho. López Obrador deu nome ao nosso elefante. Ele está diante de nós todos os dias. Ocupa todos os cantos do país, todos os escritórios, todas as praças, e poucos se atrevem a vê-lo. É o privilégio que destrói o país. Se todos os políticos, se todos os candidatos registram a desigualdade, só López Obrador aponta o dedo para a ordem oligárquica e não teme nomeá-la. Seu discurso se vincula ao espírito contemporâneo do México (e do mundo), porque reflete uma sincera paixão antielitista. O dirigente do Morena registra como ninguém o abismo do México. A polarização que o país vive não provém da linguagem nem da estratégia política de um líder: provém de um longo acúmulo de ofensas. López Obrador os expressa e os direciona. Poderá repará-los? Suas denúncias exibem a captura do poder político, sua utilização para o serviço dos interesses privados, a falta de vergonha pela corrupção, a atrocidade da nossa guerra, a falta de oportunidades para milhões. Diagnóstico irrepreensível. Seus remédios são outra coisa.

López Obrador se fez a si mesmo, e quase se poderia dizer que sozinho. Se não tem padrinhos em sua biografia, tampouco tem companheiros. Um insubmisso não reconhece pares. Idólatra de si mesmo, está convencido de que é a solução para o México. Tem a convicção de que, para acabar com a corrupção, basta sua presença. Se o presidente for honesto, todos serão honestos, diz. A aura onipotente do líder transformará magicamente a realidade. A fé em si mesmo contrasta com a suspeita contra todo o resto: as instituições são joguetes da máfia, as leis são irrelevantes, a sociedade civil é suspeita. Só ele e o povo que ele encarna merecem confiança. Quem fez López Obrador foram seus adversários. Contra eles se formou, contra eles cresceu. Não é estranho que a política seja para ele a permanente construção de adversários. Manter-se em pé é brigar. A política não é a praça das conciliações, e sim a condensação do conflito. Ao decretar a inimizade, ao listar as ofensas, ao enfatizar a ameaça do inimigo, dá corpo a uma legião combatente. Seus seguidores são muito mais que eleitores. Não acompanham momentaneamente um candidato, não procuram apenas comparecer certa manhã às urnas para colocar uma caneta sobre o papel. São parte de um movimento social do qual não há precedentes na história contemporânea do México. Ninguém cultivou essa lealdade de forma tão veemente quanto López Obrador.

Não é estranho que a política seja para ele a permanente construção de adversários

Convocando ao que ele chama de Quarta Transformação do México, esculpe para si uma estátua do tamanho das do pai da pátria (Hidalgo), do criador do Estado laico (Juárez) e do mártir da democracia (Madero). Mas esse desejo de glória parece moderado, em sua terceira tentativa de chegar à presidência, por um chumbo pragmático. López Obrador será um populista de manual, mas é também um político pragmático. Como prefeito da Cidade do México não foi um radical. Encabeçou um moderado governo de esquerda. Manteve um diálogo fluido e frutífero com os empresários da capital. Seu governo foi eficaz, opaco, disciplinado. A equipe que se antecipou em nomear como parte de seu gabinete tem esse perfil. Não há indício algum de radicalismo, e sim, pelo contrário, gestos visíveis de moderação. Às vezes deixou entrever que a grande reforma deve ser, na verdade, uma recuperação da modéstia. O renascimento do país, disse, citando Francisco J. Múgica, surgirá “da simples moralidade e de algumas pequenas reformas”.

Já foi acusado de ser o grande perigo para o México. Depois de 12 anos de sangue e imundície, de violência e corrupção, é claro que para os eleitores mexicanos não há maior perigo que a continuidade do existente. Por isso é preciso dizer que o terremoto provocado pela vitória de López Obrador será o grande desafio do México. Colocará todos à prova.

Jesús Silva-Herzog Márquez é analista político e professor do Instituto Tecnológico de Monterrey.

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