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Aprovação do aborto pode ser passo histórico na Argentina, que deixaria Brasil para trás

Projeto que permite interromper a gravidez até a 14ª semana vai ao Senado. Sessão na Câmara demorou 20 horas e a votação foi apertada: 129 a favor X 125 contra

Jovens a favor do aborto legal diante do Congresso argentino
Jovens a favor do aborto legal diante do Congresso argentinoEFE
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O aborto legal venceu na Câmara dos Deputados e nas ruas de Buenos Aires. Em uma votação acalorada e muito apertada, que se prolongou durante mais de 20 horas, os legisladores aprovaram nesta quinta-feira, dia 14 de junho, o projeto de lei para a interrupção voluntária da gravidez, por 129 votos a favor e 125, contra. Do lado de fora, em um dos lados da praça, milhares de garotas adolescentes irromperam em aplausos, gritos de emoção e lágrimas. Do outro, os manifestantes se retiraram cabisbaixos. Poucos imaginavam três meses atrás, quando o presidente Mauricio Macri abriu espaço para o debate, que a legalização do aborto seria aprovada em pelo menos uma das casas do Legislativo. Agora o projeto de lei segue para o Senado, mais conservador. Tudo indica que a lei será bloqueada ali, mas nada é certo nesta Argentina arrastada por uma onda feminista que fez do aborto legal uma de suas bandeiras. É um dia histórico.

Foi uma sessão para corações fortes. Os números dançavam durante toda a jornada e no final a balança se inclinou pela mudança de posição de alguns deputados. A fratura da sociedade argentina sobre o aborto se repetiu no interior da Câmara e dos partidos políticos. Todos os blocos votaram divididos, com exceção da esquerda, com uma posição unânime a favor da interrupção voluntária da gravidez. Atualmente, o aborto é ilegal, exceto em casos de estupro, risco para a saúde da mãe e malformação fetal. As mulheres que interrompem a gravidez enfrentam penas de prisão de um a quatro anos. É a mesma legislação que vale no Brasil, que também ignora os inúmeros abortos clandestinos (estimam-se em 1 milhão por ano) que colocam as mulheres em risco de morte. Se a proposta da Câmara passar no Senado, as argentinas ficariam à frente das brasileiras sobre a liberdade de decidir quanto à gestação.

Em um gesto inédito, Fernando Iglesias, um deputado do partido Cambiemos (Mudemos, em português)  conhecido por sua defesa de políticas econômicas ultraliberais, foi aplaudido por grande parte do kirchnerismo. “Somos Cambiemos”, disse Iglesias, “viemos para mudar (cambiar, em espanhol), não para consagrar o status quo”. Com um mapa-múndi na mão, o deputado convidou os colegas a pensarem no país com o qual gostariam que a Argentina se parecesse: “Na América do Norte, Ásia, Europa, Austrália, o aborto é legal, ou queremos que se pareça com as partes vermelhas do planisfério, a América Latina e a África? São os únicos continentes que proíbem o aborto, onde a desigualdade e a violência são maiores”, afirmou.

Na Argentina, cerca de 50.000 mulheres são internadas todos os anos por complicações decorrentes de abortos e por volta de cinquenta morrem.

Um dos discursos mais polêmicos foi o da deputada radical Estela Regidor, da União Cívica Radical. Depois de se apresentar como “protetora dos animais”, lançou uma pergunta no ar: “O que acontece quando nossa cachorrinha fica grávida? Não a levamos ao veterinário para que aborte. Saímos para ver a quem daremos os cachorrinhos de presente. As piores feras amam suas crias. O que se passa com os seres humanos, que temos essa maldita razão que nos fecha o coração?”

Às seis da manhã, com o placar igualado, o kirchnerista Axel Kicillof lembrou que os presidentes anteriores que abriram debates importantes, como o da legalização do divórcio e do casamento homossexual, se envolveram neles. Mauricio Macri se opõe à descriminalização, mas em fevereiro decidiu abrir o debate em meio a uma grande pressão social. Depois se manteve à margem e se limitou a garantir que respeitará o resultado e não haverá veto presidencial.

Diante do Congresso, a mobilização a favor do aborto ganhou as ruas, embora tenha ficado visível a enorme polarização. “Tirem os rosários de nossos ovários”, “É meu corpo, eu decido”, diziam os cartazes de muitas jovens irritadas com a pressão da Igreja Católica para evitar a descriminalização. Do outro lado da praça, em um número muito inferior, os antiabortistas gritavam: “Sim à vida, não ao aborto”. Aguardavam o resultado da votação com orações coletivas.

A votação fez saltar pelos ares toda a emoção vivida durante 20 horas. “Aborto legal no hospital”, gritava em uníssono a maré verde, formada por milhares de mulheres. “Abaixo o patriarcado, vai cair, vai cair, Vamos!, o patriarcado, vai vencer, vai vencer”, cantavam as jovens que não choravam.

A aprovação da Câmara dos Deputados é histórica, mas conseguir que se converta em lei no Senado será muito mais difícil. Muitos legisladores das províncias do norte, mais conservadoras e com maiorias sociais contra o aborto, já anteciparam que votarão contra. Há uma enorme expectativa para saber como votará a ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner. Durante seus oito anos de presidência se opôs a abrir o debate por ser contra, mas não se sabe se influenciada pela filha e pela voz de milhares de jovens agora mudará de opinião. “Será lei, será lei”, grita um coro de garotas com o olhar já voltado para o Senado.

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