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Como um promotor e um juiz do interior de SP esterilizaram uma mulher à força

Defensoria Pública de SP aponta que apenas a mulher pode decidir sobre seu corpo; decisão em segunda instância impedindo procedimento chegou tarde demais

Fachada da Santa Casa de Mococa, que aproveitou parto para fazer esterilização.
Fachada da Santa Casa de Mococa, que aproveitou parto para fazer esterilização.Reprodução Google Maps
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Mulher e pobre, Janaina Aparecida Quirino começou a perder o direito ao próprio corpo em maio do ano passado. Foi quando o promotor Frederico Liserre Barruffini, da comarca de Mococa, no interior de São Paulo, entrou com uma ação civil pública pedindo a esterilização à força de Janaina.

Na ação, o promotor alegou que, por ser moradora de rua e usar drogas, Janaina não teria condições de criar os filhos e muito menos de tomar decisões por conta própria. Barruffini lançou mão de jurisprudência que trata da obrigação do Estado em prover dependente químico de tratamento de saúde, ainda que tenha que fazê-lo de forma involuntária.

Depois que o juiz Djalma Moreira Gomes acatou o pedido, a mãe não teve mais escolha. Quando foi à Santa Casa de Mococa para dar à luz o oitavo filho, em 14 de fevereiro deste ano, o hospital, cumprindo a ordem judicial, realizou uma cesárea em Janaina e aproveitou a mesma cirurgia para praticar nela uma laqueadura. Janaína, que entrou no pronto-socorro para ter um filho, saiu de lá estéril.

A essa altura, o município de Mococa havia entrado com um recurso contra a decisão do juiz. A decisão em segunda instância, tomada pela 8ª Câmara do Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, veio somente em 25 de maio, três meses após a esterilização forçada de Janaina. O procedimento é irreversível.

Para a defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, Paula Machado de Souza, o Ministério Público jamais poderia ingressar com uma ação pedindo a laqueadura involuntária de uma mulher. Segundo ela, a ação fere a legislação brasileira e tratados internacionais, como a Recomendação Geral nº 24 do Comitê sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, prevista no artigo 12 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que veda expressamente a esterilização sem consentimento.

“No nosso ordenamento jurídico, esse pedido é juridicamente inviável, porque não tem respaldo legal”, afirma a defensora. “O que aconteceu foi que uma outra instituição acabou pedindo uma cirurgia para Janaina, sendo que em nenhum momento ela foi ouvida no transcorrer do processo. A única pessoa que poderia decidir se quer ou não fazer a cirurgia seria a própria Janaína. A gente defende que as mulheres são capazes e são as únicas que podem decidir sobre seus órgãos reprodutivos e sexuais”, pontua.

Na ação, o MP cita que “a requerida Janaina, pessoa hipossuficiente, apresenta grave quadro de dependência química, sendo usuária contumaz de álcool e outras substâncias entorpecentes. Por tal motivo, foi acompanhada por órgãos da rede protetiva, como o CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), e já esteve internada compulsoriamente diversas vezes em instituições próprias ao tratamento de sua drogadição” para justificar o pedido de tutela. Além disso, o promotor anexou na ação uma certidão datada de 2015 e assinada por Janaina em que ela aceitava o procedimento de laqueadura, por reconhecer ter 7 filhos e querer evitar uma nova gestação.

Para a defensora Paula Machado Souza, ainda assim, a jovem teria que ser ouvida novamente nesse novo contexto, e não submetida a uma cirurgia unicamente com base em um documento de três anos antes. “A questão basilar é que alguém entrar para que seja feita uma cirurgia de laqueadura numa terceira pessoa é impossível. Isso não pode existir”, reforça a defensora.

Paula explica que a própria Lei de Planejamento Familiar tem sido contestada em seus requisitos: para uma mulher passar pelo procedimento de esterilização pago pelo Estado, ela precisa ser maior de 25 anos, ter tido duas gestações anteriores e ter anuência de companheiro quando casada. “A gente acha que esses tipos de requisitos vão além do que a mulher precisaria para decidir. Se ela é informada de que é uma cirurgia, dos riscos e deseja fazer, a gente considera que a vontade dela é que tem que imperar sempre”, afirma.

Eugenia

Na decisão da 8ª Câmara do Direto Público, o desembargador Leonel Carlos da Costa considera que o pedido do promotor viola a Constituição e caracteriza a esterilização forçada de uma mulher pobre como eugenia, a prática de “melhoramento das raças” criada pelo racismo científico do século 19 e adotada pelo governo nazista no século 20, através da esterilização de pessoas tidas como inferiores.

“Petição inicial que deveria ser indeferida pela carência de interesse processual em promover a esterilização eugênica, que não tem condescendência constitucional, que institui regime democrático e de direito, com fundamento na dignidade humana e no respeito à liberdade da pessoa”, afirma o desembargador.

Além disso, a decisão aponta para o cerceamento de defesa da principal interessada, bem como a tentativa de utilizar a lei para controle demográfico. “É inafastável a garantia do direito de defesa daquele sobre quem recairão os efeitos materiais do provimento jurisdicional, sob pena de nulidade absoluta reconhecida pela falta de defesa”, diz a decisão em segunda instância.

Paula também alerta para o cuidado necessário ao se falar em tutela do Estado e que casos de interdição, por exemplo, são a exceção e não a regra. “Não se pode concluir que uma pessoa, seja ela uma mulher ou homem, por apresentar determinadas condições, subjetivas ou objetivas, por exemplo, o uso abusivo de drogas, situação de rua, que ela seja uma pessoa incapaz. Essa conclusão não pode acontecer. As pessoas sempre são plenamente capazes de tomar as suas decisões, salvo em raras exceções, que também estão previstas em lei”, explica.

Além da Defensoria Pública de São Paulo, que se manifestou oficialmente contrária à atitude do MP e a primeira decisão da Justiça paulista, a OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo) também publicou nota em que ressalta que Janaína foi vítima de uma violência perpetrada pelo Judiciário e que fere os direitos fundamentais de qualquer ser humano.

“Expressamos nossa solidariedade à Janaína Aparecida Quirino, vítima de Ação Civil Pública movida pelo MP com o objetivo de compelir o município de Mococa a realizar cirurgia de laqueadura tubária. Sua condição de dependente química não lhe subtrai os direitos fundamentais. Manifestamos repúdio à violência perpetrada contra aquela senhora”, afirma a nota. O texto lembra que, “apesar de repelida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, [a laqueadura] acabou se concretizando, uma vez que, quando do julgamento de recurso interposto pelo município, já havia ocorrido a cirurgia”.

Ainda de acordo com a defensora Paula Machado Souza, a Defensoria acompanha o caso e vai consultar Janaína se ela deseja algum tipo de reparação do Estado, para então ingressar com alguma eventual ação. “Ela estava grávida na época, teve uma cesárea e na mesma hora passou pela laqueadura. Mesmo na Lei de Planejamento Familiar [inciso 2, 10º artigo] é vedado realizar a procedimento junto com o parto, salvo raras exceções”.

Outro lado

Em nota, o Tribunal de Justiça de São Paulo, cita o artigo do professor Oscar Vilhena Vieira na Folha de S.Paulo, o primeiro veículo a tratar do caso, e afirma que “o Poder Judiciário paulista não se manifesta sobre processos em andamento”.

“A ação envolve decisões de primeiro e segundo graus e, ao dar provimento ao recurso interposto pela Prefeitura de Mococa, a 8ª Câmara de Direito Público determinou a remessa do processo à Corregedoria Geral da Justiça e à Corregedoria Geral do Ministério Público. No âmbito da Corregedoria Geral da Justiça, o procedimento apuratório foi instaurado na data desta segunda-feira (11/6)”, afirma o TJ-SP.

Em texto divulgado pela Apamagis (Associação Paulista dos Magistrados), o juiz Djalma Moreira Gomes Junior afirma que Janaína não estava em situação de rua e que teria concordado com o procedimento cirúrgico, conforme documento assinado em cartório no ano de 2015. Também diz que a situação dela tem sido acompanhada há três anos pela Comarca de Mococa e que Janaína é mãe de 8 filhos, sendo que o bebê está em processo de adoção.

“Todos os filhos passaram pelo Serviço de Acolhimento de Mococa, alguns em mais de uma ocasião, devido à negligência dos pais em desempenhar devidamente suas funções, expondo-os a situações de risco, com o agravante de serem dependentes químicos (de “crack” e de bebida alcoólica) e não aderirem ao tratamento proposto, apesar de várias intervenções da rede protetiva do município. O ambiente familiar sempre foi permeado pela dependência química dos pais, não adesão ao tratamento indicado, agressões físicas entre o casal, violência física contra os filhos por parte do atual companheiro, dificuldades financeiras. Além disso, o casal passou a traficar drogas”, diz um trecho do texto escrito pelo juiz.

Moreira também destaca que o MP observou toda a configuração familiar e situação atual de Janaína para ingressar com a ação e nega que não tenha sido dado a ela direito de defesa. “Cabe ressaltar que Janaína foi ouvida por diversas oportunidades, por mim, em audiências sobre seus filhos. Mais recentemente Janaína e seu atual companheiro foram presos em flagrante por tráfico de drogas e por associação para o tráfico. Encontram-se reclusos e condenados, em primeiro grau, por esses crimes”.

Este texto foi publicado originalmente no site da Ponte.

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