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Uma ‘escrava’ do século XXI em Washington

A malauiana Fainess Lipenga passou três anos presa num porão, enquanto trabalhava como empregada doméstica para uma diplomata

Antonia Laborde
A malauiana Fainess Lipenga em Maryland, Estados Unidos.
A malauiana Fainess Lipenga em Maryland, Estados Unidos.Luisa Arbeláez

Há uma leoa na sala. Uma sobrevivente. Uma abusada. “Assim se apresenta uma guerreira”, determina Fainess Lipenga, de 39 anos, enquanto move os braços de cima a baixo para mostrar seus quase dois metros de altura. Tem vontade de falar. De contar o que suas cicatrizes escondem. De ser a última protagonista de uma história de escravidão contemporânea. A malauiana, que usa um longo vestido vermelho, brincos dourados e pálpebras sombreadas em tons de lilás, presenteia um sorriso com a mesma facilidade com que sua voz se embarga ao recordar. “Fui tratada feito cachorro, atravessei o inferno.”

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Quando Lipenga tinha pouco mais de 20 anos, vivia no seu Malaui natal, um país no centro-leste da África, e trabalhava como empregada doméstica de Jane Kambalame, uma funcionária do Governo. Em 2004, num desses dias que mudam uma vida para sempre, sua patroa foi escolhida para exercer uma função de diplomata na embaixada malauiana em Washington. Ela propôs a Lipenga que acompanhasse a sua família para os EUA. A moça, que tinha estudado até a oitava série e não sabia falar inglês, disse que sim, com o entusiasmo de uma menina. Assinou um contrato sem entender uma palavra. O documento estipulava um salário mensal de 980 dólares, dois dias de descanso por semana, férias e o pagamento de horas extras.

Uma vez instalados em Maryland, a meia hora de Washington, Kambalame ordenou a Lipenga que dormisse no porão para não “contaminar” os demais moradores. Os horários combinados não foram respeitados, e ao final de um tempo a empregada se viu trabalhando das 5h30 às 23h, pelo equivalente a 2,54 reais por hora. A patroa instalou um sistema de segurança com uma senha à qual Lipenga nunca teve acesso. Reteve seus documentos, não a inscreveu na previdência social e a deixou incomunicável. “Eu escutava quando ela falava com meus pais, mas ela cortava o telefone quando saía”, conta, uma década depois do ocorrido.

Kambalame repetia constantemente a Lipenga que, por ser diplomata, tinha imunidade e podia fazer o que quisesse. Os diplomatas trazem seus empregados com um visto tipo A3, que está diretamente relacionado com o nome do empregador. Mas, dado o desconhecimento de seus direitos, a dificuldade com o idioma e o isolamento ao qual estava submetida, Lipenga ficou paralisada. “Perdi a vontade de viver, mas não queria morrer nessa casa”, sustenta, com a voz embargada.

Numa nevada madrugada de 2007, Kambalame se esqueceu de fechar a porta da garagem. Lipenga, que tinha roubado seu passaporte e seu contrato, saiu para não voltar mais. Conseguiu chegar a um hospital, onde foi diagnosticada com tuberculose e depressão. Quando estava internada, recebeu uma visita. “Adivinha quem era? Minha patroa. Não sei como soube onde eu estava. Achei que estava livre, mas continuava sendo uma escrava”, descreve. Lipenga, depois de se recuperar superficialmente, foi encaminhada a um albergue de indigentes. Kambalame apareceu novamente. “Não sei como fazia. O refúgio ficava a duas horas do hospital”, conta, após anos sem conseguir tirar essa dúvida.

Finalmente, Lipenga encontrou uma organização sem fins lucrativos da faculdade de direito da Universidade de Arkansas, que a ajudou a obter um visto T, concedido às vítimas de tráfico humano. Em 2017 foram concedidos 1.362 vistos desse tipo. Há 10 anos foram 544, segundo o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA.

Em 2014, Lipenga moveu uma ação judicial contra a ex-patroa por perdas e danos, acusando-a de violar o contrato e lhe infligir angústia emocional proposital. "A senhora Kambalame claramente abusou da sua posição de poder sobre a senhora Lipenga para lhe causar um severo sofrimento emocional", disse o juiz. A última coisa que Lipenga soube de Kambalame é que havia sido promovida a alta-comissária (embaixadora) do Maláui para o Zimbábue e Botswana. Ela não apresentou defesa na ação. A indenização estipulada foi de mais de 1 milhão de dólares. Só que a vítima ainda não viu a cor do dinheiro. “Meus advogados continuam trabalhando nisso”, diz.

Em seu processo de “reconstrução”, foi fundamental a ONG Ajuda, que aborda de maneira transversal as necessidades dos imigrantes. Lipenga conta que lá conheceu as mulheres que “salvaram a vida” dela. Katherine Soltis, advogada da instituição, explica que os imigrantes, especialmente as mulheres, são frequentemente alvo de abusos trabalhistas porque não sabem para onde ir, não têm contatos e, muitas vezes, não dominam o idioma. “É difícil conseguir cifras de quantos são, porque muitos nunca chegam a denunciar que são vítimas de tráfico trabalhista, justamente por não conhecerem seus direitos”. É isso que Fainess Lipenga quer mudar. Ela agora é consultora em conscientização sobre exploração trabalhista e assessora advogados, funcionários judiciais, médicos etc.. “Não é fácil falar, eu sei. Mas é preciso superar os medos, é hora de dizer chega.” E, como uma erupção vulcânica, começa a dançar e a cantar várias vezes o número 1-888-373-7888. A linha norte-americana contra o tráfico de seres humanos.

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