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Do sapo Pepe aos incel: a ascensão da extrema direita dos EUA na Internet

Como os memes se converteram em uma arma política

Um dos memes que relacionava a rana Pepe (símbolo da direita racista) com Donald Trump
Um dos memes que relacionava a rana Pepe (símbolo da direita racista) com Donald Trump
Jaime Rubio Hancock

A alt-right pegou muitos de nós de surpresa. Estávamos acostumados a um discurso direitista muito diferente: rígido, necrosado, defensor da ordem e das convenções. Mas, quase de repente, a extrema direita norte-americana começou a se comunicar com memes e a zombar de seus adversários, aos quais identificava com o establishment a ser subvertido.

Como explica a jornalista irlandesa Angela Nagle em seu livro Kill All Normies, a direita passou a usar a arma principal da contracultura dos anos sessenta, a transgressão, aproveitando os meios do século XXI. Seu objetivo era (e é) maquiar o racismo e o machismo até fazê-los parecer originais e modernos. É um esforço que funcionou o suficiente para ajudar Donald Trump a se eleger presidente dos Estados Unidos, em novembro de 2016.

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E, no princípio, tudo parecia só uma brincadeira de mau gosto.

Pela zoeira

Em seu livro, inédito no Brasil, Nagle explica como a alt-right usou a linguagem dos memes para sair de cantos mais ou menos obscuros da Internet e acabar dominando grande parte do debate político.

Suas ideias não são novas, mas sim a linguagem, herdada de foros como Reddit e 4Chan. Esses memes e ataques se apresentam envolvidos em várias camadas de ironia. Seja ao desumanizar as mulheres ou espezinhar as minorias, tudo se faz através do riso. E quando alguém se mostra ressentido, a zoeira é redobrada, e se joga na cara da vítima que ela não é capaz de aguentar uma brincadeira. Quem não entender é um normie (um normalzinho, alguém que não se liga no que acontece na Internet). Já não se trata de épater o burguês, e sim de épater o progressista.

O tom, descrito também por Whitney Philips e Ryan M. Milner em seu livro The Ambivalent Internet (“a internet ambivalente”), torna difícil saber quando alguém fala a sério, quando está brincando, ou, como ocorre frequentemente, quando se trata das duas coisas ao mesmo tempo. Um exemplo é o sapo Pepe: a direita supremacista se apropriou desse personagem em 2015 e o transformou em um símbolo não muito velado de suas ideias, mas muitos (incluindo o site de ultradireita Breitbart) defenderam mais de uma vez que era só meme inocente. É brincadeira, por que vocês se magoam?

A referência ao Breitbart não é casual: as ideias dessa extrema direita cresceram à margem dos meios convencionais, criando (ou impulsionando) uma cultura própria na Internet e veículos alternativos. Também contribuiu para isso um punhado de figuras midiáticas, sejam da alt-right mais dura, como Richard Spencer, defensor de um Estado etnicamente branco, como da chamada alt-light, que atenuou essas ideias para que chegassem a um público mais amplo. Aqui cabe mencionar figuras como Mike Cernovich e Milo Yiannopoulos, que escolheram o feminismo como principal inimigo.

E todos, claro, contando com o apoio do exército memético procedente dos fóruns supramencionados, que aparecem correndo a qualquer chamado para realizar suas tarefas de perseguição. Um exemplo são os ataques a Leslie Jones, atriz de Os Caça-Fantasmas que foi alvo de uma campanha de insultos instigada por Yiannopoulos e que chegou à publicação de suas fotos pessoais.

A resposta da esquerda no Twitter

O subtítulo do livro (“guerras culturais on-line, do 4Chan e Tumblr a Trump e à alt-right”) faz referência às guerras culturais na Internet que levaram à ascensão do atual presidente norte-americano. Pois Nagle não fala só de como a direita centrou o debate na base de memes e manchetes escandalosas, mas também de como a esquerda, na sua opinião, não soube dar resposta a esse movimento.

Segundo Nagle, a guerra memética da direita foi em grande parte uma reação ao discurso esquerdista em espaços como Tumblr e Twitter. As principais preocupações desta nova cultura não estavam na desigualdade econômica, e sim em questões como a fluidez de gênero, a identidade cultural e a interseccionalidade, “o termo acadêmico padrão para reconhecer as múltiplas variedades das marginalizações e opressões cruzadas”.

A autora aponta como, apesar de sua aparente vulnerabilidade, essa esquerda tuiteira frequentemente se comporta com uma agressividade comparável à da direita, tudo “atrás da segurança do teclado”. Cultivou-se, escreve, “uma cultura da fragilidade e o vitimismo misturada com uma cultura agressiva de ataques e humilhações em grupo, além de tentativas de destruir reputações e vidas alheias”, num procedimento batizado de cry-bulling, ou seja, perseguição junto com choro. Definitivamente, para parte dessa esquerda o mais importante era apontar os erros alheios e deixar claro que não compartilhava deles.

Enquanto a esquerda caminhava na ponta dos pés, com medo a ficar marcada para sempre por seus próprios companheiros, a atitude da direita foi justamente a contrária: procurou o confronto e o provocou de forma aberta, como quando Yiannopoulos perguntou a seus seguidores se preferiam ter câncer ou serem feministas.

O fim da transgressão?

Como escreve Nagle, essa versão troll da direita com frequência entende “o valor da transgressão, da originalidade e da contracultura melhor que seus homólogos da esquerda”, a tal ponto que, na sua opinião, a vitória de Trump não significa tanto o retorno do conservadorismo como a confirmação da hegemonia do inconformismo, mesmo que só nas aparências.

Afinal de contas, esta direita é liderada por um presidente lascivo, apoiado por uma figura libertina como Yiannopoulos, tudo com a ajuda de um exército on-line de racistas, mal educados e apreciadores da pornografia. Pouco disso tem a ver com a direita conservadora tradicional.

Isso sim, toda essa transgressão ambivalente também tem seus riscos. Quando vieram à tona gravações de Yiannopoulos defendendo a pedofilia e o antissemitismo, ele não pôde se defender, como fazia habitualmente, com o escudo da brincadeira e da ironia. Sua carreira acabou.

Mas, como aponta Nagle, o grave é que Yiannopoulos tenha caído por um escândalo, “e não depois de uma batalha de ideias”. Do mesmo modo, os memes à custa do soco em Richard Spencer foram muito engraçados, mas não evitaram que em seu primeiro ato público depois da vitória de Trump 200 pessoas o aplaudissem, algumas delas fazendo a saudação nazista, enquanto ele gritava: “Hail Trump, hail our people, hail victory” (“salve Trump, salve o nosso povo, salve a vitória”).

A brincadeira não tem mais graça, conclui Nagle, que propõe aproveitar a vitória dessa temível direita nas eleições norte-americanas para rechaçar a dialética da provocação: em lugar de tentar trolar o troll, comenta, seria preciso pensar em construir algo novo. Algo que não dependa nem de insultos nem de linchamentos.

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