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Como as lutas de Marielle seguem vivas na arena política

Marielle fez parte do grupo de mulheres que começou a mudar o cara do PSOL, partido tradicionalmente branco, hétero e de classe média; nos 50 dias de sua morte, Câmara aprovou 5 de seus projetos

Graça trabalha há 16 anos na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, na Praça Floriano, centro da capital fluminense, ao lado do centenário restaurante Amarelinho. Ela serve café no nono andar. “O que me chamava atenção na Marielle era o olhar e o sorriso. Sou apaixonada por pessoas simpáticas. Ela era assim”, conta para mim no minúsculo cômodo onde fica a copa, enquanto tira um cafezinho. “Não sei se ela tomava muito ou pouco café, mas sempre tinha gente e café no gabinete dela. Ela era a alegria do andar. Alegria, aliás, é a palavra. Mesmo em dias ruins, ela sempre sorria. Se ela tá fazendo falta? Sempre vai fazer, né? Acho que não só na política, mas como pessoa”, diz.

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Na tarde desta quarta-feira (2/5), dia em que os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes completam 50 dias, sem que a polícia tenha chegado aos culpados do crime, o PSOL apresentou à mesa diretora da Câmara Municipal do Rio uma parte dos projetos de lei que haviam sido propostos por Marielle. “O presidente da Casa pediu alguma sensibilidade para que a gente não colocasse projetos muito polêmicos, como por exemplo, um que prevê atenção humanizada em caso de aborto legal, porque isso ocasionaria uma guerra com a bancada fundamentalista. Mas ao mesmo tempo a gente não quer deixar de colocar projetos importantes”, lembra o vereador Tarcisio Motta (PSOL-RJ), com quem Marielle assinava muitos de seus projetos.

Com as galerias lotadas, a primeira sessão da semana colocou em votação seis projetos de lei de autoria de Marielle Franco. Os cinco aprovados foram: Espaço Coruja (PL 17/2017), que cria um programa de acolhimento no período noturno às crianças que têm mães que estudam ou trabalham; a inclusão do Dia de Tereza de Benguela em 25 de julho, já reconhecido como Dia da Mulher Negra (PL 103/2017); o Dossiê Mulher Carioca (PL 555/2017), que cria periodicamente um compilado de dados sobre a violência contra a mulher a partir de dados de atendimento do sistema municipal; Assédio não é passageiro (417/2017), que Cria a Campanha Permanente de Conscientização e Enfrentamento ao Assédio e Violência Sexual no município, em espaços públicos e transportes coletivos; e o cumprimento de medida socieducativa em liberdade (PL 515/2017) com a possibilidade de inserção desse jovem no mercado de trabalho. O PL 642, que prevê assistência técnica pública e gratuita para habitações de interesse social, não foi colocado para votação nesta quarta-feira, por causa de alguns detalhes técnicos que serão reparados e colocados e levados ao plenário posteriormente.

Os PLs aprovados passarão por segunda votação e, em seguida, pela aprovação ou veto do prefeito do Rio, Marcelo Crivella. Quase no final da sessão, uma nova proposta surgiu: batizar a tribuna do plenário de Marielle Franco, aprovada por 44 votos.

Apenas uma das seis proposições da vereadora teve votação adiada, por pressão da bancada religiosa mais conservadora e a pedido do vereador Claudio Castro (PSC): a que instituía o Dia da Luta contra Lesbofobia, Homofobia, Bifobia e Transfobia na cidade do Rio. Como vereadora, Marielle Franco ficou muito conhecida justamente pelas lutas no campo LGBT e pela visibilidade lésbica. Além desse PL, o 72, é autora do PL 82/2017, que criava o Dia da Visibilidade Lésbica. Esse segundo chegou longe nas votações, mas acabou não sendo aprovado.

No plenário, ela ocupava a quinta cadeira da direita para esquerda, na primeira fileira. Jornalistas que acompanham o dia a dia da Câmara confirmam que Marielle era uma presença forte que não passava despercebida. Conversava com todos e, mesmo que entrasse em embates no plenário, especialmente com vereadores da bancada evangélica, tinha relação amistosa com todos. “Os que eram mais adversários no dia a dia do plenário eram o Alexandre Isquerdo (DEM) e o Otoni de Paula (PSC), mas a relação pessoal era tranquila. No ano passado, por exemplo, os debates que envolveram a questão do Queermuseu foram acalorados. Marielle, claro, saiu em defesa da exposição, fizemos um embate com os fundamentalistas do campo religioso. Mas ela era capaz de, no minuto seguinte, brincar no plenário e se dar bem com todo mundo”, conta o Motta.

As cores do gabinete

O gabinete ocupado por Marielle, o 903, agora abriga Babá, suplente de Marielle. Mas o vereador não é nem de longe um substituto de Marielle, a “preta favelada da Maré”. A porta do 903 era semelhante a de outro parlamentar do partido e amigo pessoal, Tarcisio Motta: repleta de adesivos coloridos que indicavam lutas e bandeiras que ela defendia. Agora é o rosto dela que estampa parte desses adesivos que clamam por justiça no caso. Na porta de Babá, restam apenas alguns poucos adesivos. “Já mudou a cara”, diz uma funcionária. O gabinete de Carlos Bolsonaro fica no mesmo andar, o nono. Apesar de algumas piadas que a proximidade entre legislaturas que defendem coisas tão distintas, Carlos é o mais discreto e opaco dos Bolsonaros e mantinha uma relação cordial com Marielle.

Porta do gabinete 902, de Tarcísio Motta, decorado tal e qual o da vizinha, Marielle.
Porta do gabinete 902, de Tarcísio Motta, decorado tal e qual o da vizinha, Marielle.Maria Teresa Cruz/Ponte

Motta conta que Marielle falava e ria muito alto e a distância que separava os gabinetes era uma daquelas divisórias de repartição. “Às vezes eu estava recebendo gente no meu gabinete e, de repente, vinham gargalhadas altíssimas do outro lado da parede que eram exatamente dela, mais do que do resto da galera do gabinete. Aí eu batia na parede ‘Fica quieta aí eu to recebendo alguém’. Tudo na brincadeira”, diverte-se.

Mas não era apenas pelo jeitão característico ou pelo colorido das suas lutas marcadas na porta do gabinete que Marielle era considerada única pelas pessoas que conviveram com ela. Marielle era única porque conseguia arregimentar as lutas pelos direitos dos grupos marginalizados porque falava do ponto de vista de quem faz parte desses grupos.

“Marielle era única para o partido. Nós temos algumas lideranças que despontaram recentemente: a Áurea Carolina em Belo Horizonte, a Talíria em Niterói. Mas Marielle era única aqui no Rio de Janeiro, mulher negra, somando todas as bancadas federal, estadual e municipal. Claro que tem uma ausência simbólica muito forte”, afirma Motta. Uma das investidas mais recentes para dirimir essa ausência são justamente as candidaturas de Áurea Carolina e Talíria Petrone à Câmara dos Deputados pelo PSOL. As duas, aliás, cumprem o primeiro mandato de vereadora nas respectivas cidades. “O PSOL, embora tenha uma abertura inegável e uma presença cada vez maior de mulheres como nós, ainda reproduz uma lógica tradicional das esquerdas em boa parte das suas práticas”, explica a vereadora em Belo Horizonte, Áurea Carolina.

Para o deputado estadual pelo PSOL fluminense, Eliomar Coelho, a liderança política de Marielle foi histórica porque ela abraçou um sem número de causas que ainda sofrem muita rejeição de segmentos mais conservadores. “Ela se torna vereadora e de repente tem uma liderança assumida muito em cima dos temas que ela defendia, com muita garra e marra. A questão do feminismo, do racismo, do LGBT, do indígena, que são segmentos vulneráveis da sociedade. Isso é um verdadeiro elenco. Uma coisa é defender os negros, ou mulheres, ou indígenas… Agora você defender tudo? Tudo! Não é à toa que a execução dela se transformou, nesse país e fora também, em uma verdadeira comoção”, afirma Eliomar, que define o espaço simbólico de Marielle como resistência. “Ela se tornou uma liderança em numa rapidez extraordinária. Ela ainda não tinha completado um mandato e já tinha esse poder de intervir em relação a esses temas trazendo para dentro da política, fazendo com que a política começasse a enxergar esses temas”, pontuou.

O vereador Tarcísio Motta reconheceu que o partido acabou se tornando um local de homens, brancos e heterossexuais, mas que a morte de Marielle reforçou a necessidade de entender como fortalecer a entrada e, sobretudo, a permanência de quadros mais diversos. Se Marielle não tivesse sido assassinada, sairia como vice de Motta ao governo do estado do Rio de Janeiro.

A vereadora Talíria Petrone.
A vereadora Talíria Petrone. Reprodução Instagram

Para Áurea Carolina, que iniciou uma amizade com Marielle que define como “identificação imediata” na campanha de Marcelo Freixo em 2016, a escolha de Sonia Guajajara — que é mulher indígena — como vice de Guilherme Boulos à presidência nas eleições deste ano é o claro sinal de que o partido percebeu que precisa fortalecer na prática o que prega na teoria. Ela também vê com bons olhos o fato de Boulos colocar em pauta a questão do genocídio da população negra e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, apesar de ser um homem branco. “Para nós, feministas, antirracistas, periféricas não tem nenhum lugar garantido sem muita luta. Então, qualquer conquista dentro do partido só vai ser mantida e ampliada se a gente insistir nesses enfrentamentos para dentro e para fora. Esses espaços tradicionalmente não foram feitos para nós”, aponta Áurea.

Em entrevista ao jornal O Globo, a vereadora em Niterói, Talíria Petrone, engrossa o discurso da colega mineira. “Desde a execução da Marielle há um sentimento de urgência de levar Brasil afora as pautas dela. Essa urgência faz com que precisemos ampliar a participação das mulheres negras na Câmara Federal e nos fez mudar de opinião com relação à minha candidatura. A partida da Mari, por um lado, nos deixa muita dor, uma dor que nunca vai terminar, mas, por outro lado, é uma convocação de ousadia”, afirmou Talíria.

No final de março, Talíria afirmou à imprensa que estava recebendo ameaças de morte. A parlamentar aparecia como sucessora natural de Marielle e chegou a ser cotada para compor a chapa ao governo do Rio ao lado de Tarcísio, mas acabou firmando a candidatura à deputada federal.

Sobre o medo e a ancestralidade

Natural de Tucuruí do Pará, Áurea Carolina, que hoje tem 34 anos, iniciou a militância em movimentos sociais de Belo Horizonte por causa do hip hop. Na época em que Marielle se engajava no #PartidA, movimento suprapartidário que trabalhava a ideia de levar mais mulheres a ocuparem espaços na política, Áurea despontava na mesma toada na capital mineira. Ela venceu as eleições de 2016 — foi a vereadora mais votada em Belo Horizonte — também em virtude do movimento interno do Psol chamado Muitas, que lançou, de uma só vez, 12 nomes de mulheres postulantes a vagas na Câmara Municipal. Ao lado de Cida Falabella, Áurea faz questão de dizer que as duas constroem um mandato coletivo “feminista, periférico e antirracista” e que, caso conquiste uma vaga em Brasília, Bela Gonçalves será sua suplente e seguirá com as lutas necessárias e prometidas em campanha.

Periférica e com vivência no rap, não custou muito para Áurea se engajar em pautas contra a violência policial, a ponto de ter se tornado presidenta de uma Comissão Especial de Estudos sobre Genocídio da Juventude Negra na Câmara. “Para mim, é prioritário esse tema”, afirma. Também nesse contexto de criminalização da juventude, o funk acabou entrando na esteira de temas com os quais a vereadora lida. “A gente tem trabalhado nesse momento a questão da mediação com a PM e a Secretaria Municipal de Cultura e com os coletivos ligados ao tema. O ‘Aglomerado da Serra’ foi um pouco por onde a gente começou a ter essa incidência. Hoje é um baile que virou um fenômeno e estamos na retaguarda junto com o pessoal de lá, sempre acompanhando. A gente acredita na cooperação e no diálogo”, explica.

As semelhanças com a ex-colega de partido ficam cada vez mais evidentes. Marielle carregava com muita coragem essas bandeiras, além de ter uma relação pessoal com o funk: amigos apontaram que a mareense gostava muito do ritmo e participou da criação do grupo Apafunk, que existe até hoje e onde a filha, Luyara, toca. A militância contra a violência de Estado também era constante, a ponto de, alguns dias antes do assassinato, ela ter criticado em redes sociais os supostos abusos cometidos por policiais militares do 41º BPM na favela de Acari, como denunciou a Ponte.

A vereadora Áurea Carolina.
A vereadora Áurea Carolina.Facebook

Áurea explica que o cenário tem sido exaustivo, mas, ao mesmo tempo, não é hora de retroceder. “Eu não sinto medo pela minha integridade. Eu sinto é uma angústia muito grande com esse cenário que estamos vivendo, com cerceamento de direitos, com o agravamento da violência, com as mentiras que são espalhadas por aí e o trabalho danado que isso dá para desfazer depois. É isso que me preocupa muito. A gente está num tempo de luta incansável, ininterrupta e isso é muito desgastante. Exige muito de nós. Estamos desdobradas em milhares e acho que, por isso, um pouco, a exaustão. Nós estamos trabalhando no limite e é isso que mais me deixa em estado de alerta, quanto à nossa proteção como lutadora, que estamos fazendo graves denúncias. É uma proteção que deve vir da sociedade, do Estado e também de um autocuidado que a gente precisa desenvolver. E acredito também que a nossa proteção venha da ancestralidade. Eu confio muito nisso”, afirma Áurea Carolina.

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