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Maria Teresa Horta: “Os fascistas estão por aí com suásticas tatuadas a olhar para nós”

A escritora portuguesa, convidada da Flip, teve a poesia como arma contra o fascismo. Aos 81 anos, produz como na juventude, até quando a inspiração lhe acorda no meio da noite

Maria Teresa Horta em viagem a Minas Gerais, em 2007
Maria Teresa Horta em viagem a Minas Gerais, em 2007Ana Maria Domingues

Convidada da 16ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP 2018), a escritora e jornalista Maria Teresa Horta é um dos principais nomes da poesia portuguesa. A poetisa, uma das três autoras do livro Novas Cartas Portuguesas, que virou um marco na luta contra o salazarismo, fundiu sua literatura ao seu feminismo e convicções políticas. Ainda pouco conhecida no Brasil pelo grande público, Teresa Horta teve imensa projeção internacional na década de 1970 e hoje é autora de mais de duas dezenas de livros, entre contos, poesias e romances. Por telefone, o EL PAÍS conversou com a autora que, em menos de um mês, completará 81 anos – não que isso faça alguma diferença para ela. “Eu penso exatamente igual pensava quando era jovem”, diz ela, que continua produzindo quando a poesia lhe acorda, ou no meio da rua...

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Pergunta. Perto de completar 81 anos, sua produção continua incessante. Como é sua rotina de trabalho?

Resposta. Eu sou um bocado contra as rotinas, as detesto, e digamos que a poesia aparece quando quer e, logo, a rotina desaparece. A única rotina que tenho é que me levanto muito cedo e me deito tarde, mas isso nem sequer é rotina, mas uma maneira de ser. Portanto, minha poesia não tem que ver com a rotina. Ela aparece quando aparece e eu aceito sempre, mesmo quando vem no meio da noite e eu resisto e resisto a acordar, mas sei que a única coisa a se fazer é levantar-me e escrever o que a poesia quer que eu escreva.

P. Mas imagino que o trabalho com ficção deva ser um pouco diferente…

R. Que é diferente, é. Só que minha ficção tem muito a ver com a autora que faz poesia. Ou seja, a romancista tem muito a ver com a poetisa e uma coisa acaba valendo para outra. Por exemplo, eu nunca escrevo poesia no computador e nunca escrevia na máquina de escrever também. Uma vez tentei, só que a poesia desapareceu imediatamente. Eu faço poesia sentada, anotando em cima de um livro de um autor qualquer que vai no meu colo. E se estou na rua é na rua, por isso tenho sempre que levar papel comigo. Tenho sempre que estar preparada, porque aparece a qualquer altura: no transporte público ou em qualquer outro sítio. Como diz meu filho, eu até escrevo poesia nos bilhetes de cinema durante os filmes.

P. E hoje você sente mais ou menos dificuldade para escrever?

Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa: as três autoras de 'Novas Cartas Portuguesas'
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa: as três autoras de 'Novas Cartas Portuguesas'Reprodução

R. A poesia tem pouco a ver com ser mais ou menos jovem. Eu penso exatamente igual pensava quando mais jovem, talvez um pouco melhor, porque tenho mais dados, mais profissão feita. No resto, nada mudou. Na verdade, essa história de se falar da pouca ou muita idade não tem nada a ver comigo. Igual não estou, porque as pessoas estão a evoluir sempre, então tenho melhor entendimento sobre as coisas. Há coisas que digo com mais segurança, mas não sinto essa idade, o que não entendo é como que tenho essa idade, mas isso já é outro assunto.

P. Aproveitando, você prefere “poetisa” a “poeta”, não é?

R. Poetisa, sim. Poeta pode ser utilizado tanto por homem quanto por mulher. Mas na nossa língua portuguesa existe uma palavra muito bonita que é poetisa. Portanto, eu gosto muito dessa palavra poetisa. Várias vezes os poetas e os críticos me disseram: “Você é uma grande poeta”. E eu sempre disse que isso é mau português. Eu não sou um, sou uma. Faz toda a diferença.

Eu gosto muito dessa palavra poetisa. Várias vezes os poetas e os críticos me disseram: 'Você é uma grande poeta'. E eu sempre disse que isso é mau português. Eu não sou um, sou uma. Faz toda a diferença

P. Minhas Senhora de Mim, de 1971, é apontado por muita gente como seu livro chave, um ponto de inflexão. Nele, avaliam, você faz uma espécie de releitura do Trovadorismo português através das Cantigas de Amigo. Por quê?

R. Eu não decidi escrever Minha Senhora de Mim, assim como não decidi escrever qualquer outro livro. Eu tenho temas sobre os quais gostaria de escrever, mas no começo nem sei o título que vou dar. Acontece que naquela altura, interessou-me revisitar as poesias dos cancioneiros, que são extremamente importantes e tem muito que ver com a cadência lógica e musical das minhas poesias. O que descobri é que muitas daquelas Cantigas de Amigo foram, de fato, escritas por mulheres, que eram obrigadas a usar pseudônimos. Resolvi, então, pegar as Cantigas de Amigo e partir para uma outra visão de mundo que elas não tinham, para outro entendimento feminino das coisas. Eu não fiz aquilo porque eu, determinadamente, queria aquilo. Não funciona assim: vou sentar aqui e fazer esse livro.

Eu acho que as mulheres dão uma grande lição aos homens quando vão fazer frente a uma Ditadura e lutam por homens e mulheres

P. Mas o salazarismo entendeu exatamente assim, não é? Como uma afronta.

R. O livro causou um escândalo tremendo porque, na realidade, as mulheres não escreviam poesias como aquelas. Não escreviam com tanta ardência, com tanto gozo. E não apenas só na escrita erótica, que eu assumo tratar um pouco. Assim, que sou jornalista e não poeta em minha torre de marfim, afastada do cotidiano. Sou uma poetisa que estou na vida, que tem uma profissão, que tem amores, que sempre teve uma posição política, que sempre esteve oposta ao regime fascista, lutando por liberdade, que é a primeira necessidade humana. Dos 15 anos até o 25 de abril, eu só fiz lutar contra o fascismo. Meus livros depois do 25 de abril são outros e diferentes entre si, mas têm uma raiz idêntica, que são as coisas que eu reflito sobre a vida. Minha poesia nunca deixou de ser uma arma.

P. E foi censurada por isso…

R. Eu conheci a censura de duas maneiras. A primeira, como jornalista, em todos os dias da minha vida, porque havia censura prévia. Tudo o que nós escrevêssemos, não havia uma palavra, que não passasse pela censura. Tínhamos que aprender a escrever no subentendido, o que é uma coisa tremenda para o jornalismo. A segunda, foi na escrita criativa, que não era censurada previamente. Os fascistas pensavam que a escrita criativa não interessava, que era só para contar historinhas, falar de amor. Quando perceberam que não era isso, as coisas começaram a ser apreendidas. Ou seja, Minha Senhora de Mim foi apreendida pela própria PIDE [polícia política]. E o Ministro do Interior de então, Moreira Baptista, chamou a editora, Snu Abecassis, para ameaçá-la com o encerramento da Dom Quixote, caso ela voltasse a editar-me.

P. Mas a censua não foi o único problema que você teve, não é?

R. Não. Quando publiquei Minha Senhora de Mim, eu tinha o telefone de casa em meu nome, não no do meu marido, o que era impensável naquela altura, porque eram os homens que sempre tinham tudo em seus nomes. No fim, tive que passar para ele, porque ninguém descansava mais naquela casa. Como eu estava na lista, telefonavam o tempo todo para dizer grosserias e me agredir. No jornal, tiveram de fazer triagem para que não chegassem em mim aqueles telefonemas grosseiros que partiam de pessoas com uma mentalidade antiquada, mas também da polícia política. A estratégia era instaurar o medo para que eu deixasse de escrever. Não funcionou e tanto é assim que a seguir o que eu escrevi? As Novas Cartas Portuguesas, com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, que nos levou ao tribunal e ao interrogatório da polícia de costumes. Se eu tivesse ficado com tanto medo assim, nunca aceitaria escrever o novo livro com elas, que fizemos justamente por causa da repercussão violenta contra Minha Senhora de Mim.

P. Você fala com muito orgulho da sua carreira de jornalista. Como vê a profissão hoje?

R. É uma profissão em que as pessoas dão muito de si próprias e que exige muita generosidade pessoal. Esse é o meu entendimento do jornalismo que, provavelmente, é antiquado hoje em dia, mas que continua a ser o meu. O jornalismo deve ser algo que faz refletir sobre a condição em que vivem os outros, é algo que deve abrir ao mundo.

P. E por que ser feminista era tão importante no Portugal sob o salazarismo?

R. Por que somos as pessoas talvez mais violentadas da história da humanidade. Eu acho que as mulheres dão uma grande lição aos homens quando vão fazer frente a uma Ditadura e lutam por homens e mulheres. Aí há a grande diferença. Eu penso que eu existo, minha escrita existe, para mudar mentalidades também. E lutar contra a desigualdade, para que as mulheres, mais de metade da população mundial, sejam felizes é essencial. Temos que lutar por essa sociedade e temos que lutar por aqueles que são minorizados, espancados, aprisionados todos os dias.

P. Como você vê esse rejuvenescido feminismo que chegou até Hollywood?

R. Com muitos bons olhos. Estou de acordo com elas, absolutamente. Não estou de acordo é com as francesas. Elas estão a ver se ganham a simpatia dos homens, por que ainda há mais realizadores do que realizadoras? É muito feio e muito triste. Acho muito bem que as americanas estejam a fazer isso. É provável que há quem se meta ali oportunisticamente, mas isso sempre vai haver. Elas eram realmente violadas para poder entrar no cinema e nós sabemos disso pelas próprias memórias de Marilyn Monroe, que todos queriam fazer de parva, mas que de parva não tinha nada. Agora, alguém se espanta porque há pessoas espezinhadas que de repente resolvem encarar de frente e dizer a verdade do que se passou com elas? Não tenhamos dúvida de que isso acontece aqui e em toda parte do mundo. Estou ao lado delas, claro que sim. E gostaria de estar mais ainda.

P. Por fim, sente-se livre do fascismo contra o qual lutou?

R. As coisas avançaram evidentemente, mas o fascismo está sempre a espreitar uma ocasião, um buraquinho, um sítio, um país, um ser humano. Está sempre ali para saltar em cima. Nós, portugueses e brasileiros, que já passamos por fascismos, sabemos que eles estão por aí. E, pior, agora estão por aí a olhar para nós com suásticas tatuadas nos braços. É preciso ter muito cuidado, porque os campos de concentração podem ser reabilitados e nós estaríamos lá dentro. É preciso estar muito atentos ao que se passa à nossa roda, porque, caso contrário, prende-se, como se fez ao Lula, para ver se o cala. Fico animada quando olho para Portugal e vejo que somos um dos únicos Governos de esquerda em um mundo que está a ver renascer muito dos fascismos. Gosto muito do primeiro-ministro António Costa e o conheço desde pequenino. Ele é filho de uma das poucas jornalistas que já estavam no jornalismo quando eu cheguei lá, a Maria Antónia Palla, foi criado por uma feminista e, por isso, sabe, como o meu filho também sabe, que não é senhor de nada nem de ninguém.

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