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A vida desmoronou como um castelo de cartas

Os 400 moradores do prédio ocupado no Largo do Paissandu esperam respostas à pergunta que ninguém está fazendo: e agora o quê?

Homem observa os destroços do prédio que desabou no Largo do Paissandu, em São Paulo.
Homem observa os destroços do prédio que desabou no Largo do Paissandu, em São Paulo.Andre Penner (AP)
Tom C. Avendaño

Leandro Renitz Oliveira, um homem loiro de 29 anos, de olhos avermelhados sentado no chão de uma rua do Centro de São Paulo, tem um pequeno ritual para quem lhe dirige a palavra na manhã desta terça-feira. Ele para de soluçar e tira uma carteira preta do bolso da calça jeans; vasculha nela e tira um cartão amassado com uma série de carimbos. Eles indicam cada pagamento que fez para viver no arranha-céu onde ficou com a mulher desde –de acordo com o primeiro carimbo– 16 de dezembro de 2016. Esse prédio é agora uma pilha de escombros flamejantes e uma coluna de fumaça cercada de moradores tão confusos quanto ele. Tudo isso está fisicamente na frente de Leandro, mas ele não desvia o olhar do cartãozinho. “Está vendo? Está tudo em ordem”, diz, mostrando para quem quiser ouvi-lo, com alguma esperança. “Agora o senhor é daqueles que vêm ajudar?”

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Leandro faz parte das 150 famílias que ocupavam um prédio no Centro de São Paulo até que, em questão de segundos, desabou. Seus 24 andares de metal e concreto desmoronaram de repente, como um castelo de cartas: o incidente mais espetacular e provavelmente evitável da história paulistana recente. Se quase todos os inquilinos se salvaram, é porque o desmoronamento foi consequência de um incêndio que começou à 1h30 da manhã e durou horas, durante as quais os bombeiros tiveram tempo para evacuar a maioria dos 372 moradores. “Todos, menos essa pessoa”, explicava ao EL PAÍS Max Mena, coronel do Corpo de Bombeiros de São Paulo e um dos responsáveis pelas operações de resgate, na manhã desta terça. “Estávamos resgatando essa pessoa quando o prédio veio abaixo. Agora só falta buscar outras vítimas sob os escombros e se não encontrarmos nada nas próximas 48 horas, entraremos com máquinas para remover tudo.” Não muito longe, o capitão Marcos Palumbo admite: “Pela minha experiência, não é fácil encontrar gente com vida a essa altura.” Pelas informações da Prefeitura, há outros 44 moradores, que estavam cadastrados pela prefeitura, mas cujo paradeiro é desconhecido. Não se sabe se estavam no interior do prédio ou estavam longe do local na hora do incêndio.

As autoridades continuam focadas na questão principal: como um prédio inaugurado em 1966 no coração da maior cidade da América Latina, durante o boom da construção de estilo internacional daquela década, pode simplesmente desaparecer, sem mais nem menos. Mas para os inquilinos a questão principal é exatamente a contrária. É como eles vão sair dessa. Afinal, perderam tudo. “E tudo é tudo mesmo”, alerta estoicamente Lorraine, de 37 anos, até ontem inquilina de um apartamento e que hoje está sentada entre sacos de lixo nas escadarias de uma igreja próxima. “Tudo é a casa, meus documentos, minhas coisas e a vida inteira.” Ainda não sabem até que ponto as autoridades vão se ocupar deles. “Agora vão nos levar para albergues, mas não sei até quando e nem como vamos nos recuperar”, insiste.

Essa recuperação é um caminho íngreme. Poucos moradores tinham seguro (alguns não tinham sequer emprego). O prédio era administrado pelo Movimento Luta por Moradia Digna (MLD), que cobrava das famílias um preço simbólico para morar ali: entre 80 e 250 reais, dependendo de quem se pergunte. Daí os carimbos no cartãozinho de Leandro. Mas o MLD não era dono do prédio, era a União, razão pela qual estão sozinhos diante do perigo. “Eu morava perto de onde o fogo começou, no sétimo andar, e saí tão rápido que fiquei sem nada”, explica Leandro. “A televisão, a geladeira, o rack, o fogão... Então aqui estou, esperando que me deem algo... Porque você não pode... Enfim...”. Enquanto diz isso, abaixa a cabeça até o rosto ficar paralelo ao chão. Então ele começa a chorar de novo.

A desolação dos moradores se vê melhor de longe. Ao redor deles, o Centro de São Paulo continua sua vida como num dia normal. Como se não tivesse desmoronado um de seus edifícios mais emblemáticos. Como se o mundo não tivesse acabado para 400 moradores. As lojas de música da Rua do Seminário, a 100 metros de distância, abriram. As barracas do Largo do Paissandu abriram. “No Centro de São Paulo, cada quarteirão é um mundo”, diz o vendedor de uma barraca, um jovem bastante alto de olhos verdes que aponta para a coluna de fumaça e para os moradores confusos. “Este é o meu e esse é o seu.”

E, no entanto, Aliane está perto da coluna de fumaça. Uma administradora do Butantã que, de fato, parece de outro planeta mais endinheirado a julgar pela pele bem cuidada, pelos gestos delicados e pelo preciso corte de suas roupas. Carrega três caixas cheias de roupas de marca usadas: ela as coletou entre seus vizinhos para doá-las às vítimas. “É o mínimo”, explica. “Antes eles não tinham nada e agora eles não têm nem onde cair mortos. Falando em português claro, estão em um estado de merda em uma cidade de merda.”

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