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“Não tenho medo da ‘República de Curitiba’, mas da que matou Marielle”

Em novo romance, Cristovão Tezza entrelaça a crise do Brasil com a crise pessoal de seu protagonista

O escritor Cristóvão Tezza
O escritor Cristóvão TezzaGuilherme Pupo

Verdadeira calculadora ambulante, Otávio Espinhosa, protagonista do novo romance de Cristóvão Tezza, A Tirania do Amor, publicado pela Todavia, não sabe explicar como, mas desde pequeno consegue solucionar qualquer equação de cabeça. Extrai as raízes quadradas mais impensáveis, faz multiplicações altíssimas e divide números indivisíveis. O talento genial fez com que o pai lhe chamasse a infância inteira de “meu Mozart” e, apesar de uma criação algo turbulenta, parecia, realmente, destinado a um futuro estelar. Sua nascente carreira acadêmica de economista, contudo, foi abortada após uma primeira recusa da banca avaliadora de doutorado. Fato que o fez trocar sua tese “Os Funcionários da Coroa” por “A Matemática da Vida”, um livro de autoajuda que escreveu sob pseudônimo, meio na brincadeira, mas que atingiu relativo sucesso. Passados alguns anos, o leitor o encontra em uma manhã, aos 56 anos, enquanto divaga sobre a possibilidade de um voto de abstêmia sexual depois de descobrir que seu casamento acabou.

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Para o protagonista do novo romance, é um momento de crise em que sua história profissional e pessoal se desfaz no curso de 24 horas. A separação iminente do personagem, a descoberta de que era traído por sua mulher, mãe de seus dois filhos, as lembranças sobre sua formação, entremeiam-se com outra crise, a brasileira, vivida no poder, mas também no cotidiano. No talvez pior dia de sua vida, Espinhosa encontra seu trabalho, uma consultoria financeira, sacudido por uma operação policial. Assim, o retrato que emerge do livro é atualíssimo, mas específico: são duas crises, pessoal e do país, sentidas na pele da elite econômica e social do Brasil. Na entrevista abaixo, Cristóvão Tezza, um dos escritores brasileiros mais premiados da atualidade, autor, entre outros, de O Filho Eterno – em que narra a história, comum ao próprio autor de um pai e seu filho com síndrome de Down –, fala sobre a trama e o pano de fundo do novo romance.

Pergunta. Há um frescor muito forte no livro, como é trabalhar ficcionalmente com acontecimentos tão recentes da realidade brasileira?

Resposta. O romance é um gênero que não teme o que é imediatamente contemporâneo, a vida concreta em torno, nem suas referências sociais, políticas, culturais. Como escritor, nunca tive problemas em tratar de fatos da vida brasileira. O perigo é a linguagem resvalar ou para o panfleto (em que o narrador diz a “verdade”) ou para o ensaio, em que se pretende demonstrar uma tese qualquer, o que é chatíssimo. A ficção não é nada disso; ela é uma hipótese de existência. Eu queria trabalhar em torno do ano de 2017, do clima brasileiro do momento, mas sem mergulhar na polarização mecânica que nos marcou. É um dia na vida do Otávio Espinhosa, o personagem central, mas as referências históricas que aparecem são de diferentes momentos do ano – não marquei um dia exato. Ao mesmo tempo, ficcionalizei as referências, de modo a não datá-las. O que me interessava como pano de fundo era a atmosfera do país. Mas o centro literário são sempre as pessoas, não os fatos. É a cabeça do Otávio que interessa à narração.

P. A realidade política do Brasil tem sido tão turbulenta que não deixa escapatórias nem para o romancista?

R. Todas as pessoas vivem o tempo todo imersas na realidade em torno; somos parte dela, não espectadores distantes. Otávio é um economista brilhante de uma importante financeira vivendo um dia de crise pessoal e de crise profissional. Impossível falar dele sem falar da realidade política e social. Mas o centro narrativo está nele, no seu olhar para o mundo. No romance ele está obviamente muito mais preocupado com as consequências da separação da mulher, com os problemas do filho e a eventual perda do emprego do que com a queda do presidente ou com o destino do Brasil. Mas tudo ressoa na sua cabeça.

P. No seu último romance, A Tradutora, você tinha trabalhado uma personagem feminina. Neste, o protagonista, quase narrador, é um matemático, lógico, racionalíssimo, algo cínico, talvez. Como foi lidar com Otávio Espinhosa?

R. Quando começo um romance, nunca sei exatamente o que vou escrever. Começo com a criação de um personagem em uma situação específica, sempre bastante visual (Otávio caminhando para o trabalho de manhã, depois de descobrir algo que vai detonar seu casamento), um ponto de vista (neste caso, um narrador que sabe apenas o que o Otávio sabe), e o ato de escrever vai criando ramificações biográficas e emocionais. A primeira ideia era escrever sobre um economista que tinha escrito, quase que de brincadeira, um livro de autoajuda, “A Matemática da Vida” (que era o título original do romance), e uma narrativa que pegasse o clima do Brasil de hoje. Daí para a frente, a inspiração e a intuição foram tomando conta. Eu quis dar algum lastro acadêmico a ele, mas também a frustração pessoal nesta área. Enfim, vou escrevendo pelo “faro narrativo”, digamos assim.

Pagamos o preço da nossa arcaica tradição rural, em que uma elite cultural urbanizada, em torno de 20% da população, se tanto, observava a imobilidade dos 80% restantes, para os quais se elaboravam teorias explicadoras ou supostamente libertadoras

P. Do romance, sai um quadro da elite econômica e social do país: branca, que se assusta e se constrange na presença de negros, que vive entre catracas giratórias, que educa os filhos com cortes e aumentos de mesada. Você acredita que a classe média e classe média alta brasileira vivem desconectadas de seu próprio país?

R. Acho que em boa medida, sim. Imagino que pagamos o preço da nossa arcaica tradição rural, em que uma elite cultural urbanizada, em torno de 20% da população, se tanto, observava a imobilidade dos 80% restantes, para os quais se elaboravam teorias explicadoras ou supostamente libertadoras. A agressiva urbanização do país dos últimos 40 ou 50 anos, o inchaço das cidades, o aumento geométrico da violência, mais o advento da internet e a modernização capitalista, tudo isso mudou radicalmente as referências. É como se um Brasil real, duro de engolir, viesse subitamente à tona. O arsenal teórico, político e cultural de que dispõem a esquerda e a direita para darem conta do estrago parece miseravelmente pobre, limitado, tacanho. Mas já fui mais pessimista; apesar desta angustiante desconexão, pode-se dizer do Brasil real o que Galileu disse dos planetas: E pur si muove. Temos o caso único de um país praticamente sem governo que, no entanto, para nossa felicidade, mantém suas instituições com relativa solidez. Não parece, mas isso é uma dádiva. Pelo menos para quem cresceu e viveu durante os anos da ditadura, como eu.

P. O Espinhosa é alguém que se quer muito racional em meio ao caos da vida pessoal e nacional. Não é esse um pouco o quadro atual do Brasil: um discurso frio, supostamente amparado na lei, racional, e, do outro lado, uma realidade caótica, emocional?

R. Acho que isso é inescapável. Por natureza, o Estado é gelado, uma gigantesca abstração jurídica, em que podemos ver tanto o horror incompreensível do processo de Kafka até o monstro devorador, o Leviatã absolutista preconizado por Hobbes. Entretanto, sem ele a complexidade do mundo moderno é insustentável ou inviável. Pensando simplesmente, o Estado é uma organização que, em troca de impostos, teoricamente oferece a consulta no SUS, a escola do filho, a segurança cotidiana e um salário de aposentado. Fui anarquista quando jovem e sonhava com uma comunidade alternativa natural sobrevivendo longe deste insensato mundo, numa redoma de pureza, o que é uma síntese do sonho escapista burguês. Nós somos emocionais e a realidade é sempre caótica; o Estado é que não pode ser nem uma coisa, nem outra.

P. Espinhosa – tataraneto do filósofo Espinoza, na brincadeira do próprio protagonista – impõe-se ser um abstêmio para, no final, descobrir que a Ética não vale nada?

R. O romance não conclui nada nem fecha com um laço moral qualquer – o leitor acompanha uma hipótese de existência em que estão todas as variáveis que nos movem, mas não há tempo para nenhuma conclusão fechada. É apenas um dia de crise. Entretanto, pressentimos “boas qualidades” no Otávio, por assim dizer; mas também sabemos que todo narrador é suspeito. Ele se vê envolto na névoa ética do país, não como quem se imagina personagem heróico de uma teoria, mas como alguém preocupado comezinhamente com a fidelidade da mulher, a ambivalência dos filhos e a eventual corrupção dos chefes. Ele mesmo nunca foi exatamente um santo. Há o tempo todo um certo contraste entre sua obsessão lógica (é um matemático com traços quase autistas) e o caos emocional da vida.

Capa do novo livro
Capa do novo livroDivulgação

P. Você vive em Curitiba faz muitos anos, como tem sido escrever sobre Brasil e viver na agora chamada “República de Curitiba”? A cidade mudou?

R. “A República de Curitiba” foi uma expressão criada pela verve de Lula para denunciar uma suposta conspiração jurídica que, curiosamente, teve um efeito contrário: em geral, o curitibano se orgulha de sua “república”. Há complexas variáveis sociológicas a considerar, mas basta frisar que Curitiba – o “Brasil diferente” de que falava o escritor Wilson Martins – é uma cidade marcada na origem pela imigração europeia, que legou traços culturais predominantemente conservadores, um espírito que vem resistindo a todas as transformações demográficas e modernizantes que a cidade viveu nas últimas décadas. Nesse sentido, a Operação Lava Jato e a prisão de Lula não mudaram absolutamente nada na cidade. Mas já ouvi reclamações do “transtorno” nas quadras próximas à sede da Polícia Federal em função dos acampamentos. Gosto muito de Curitiba, onde vivo há mais de cinquenta anos. Sinto que é uma cidade maravilhosa para quem escreve. Do ponto de vista institucional, não tenho medo da tal “República de Curitiba”, que, afinal, só é daqui por acaso da jurisdição. Tenho muito mais medo, por exemplo, da poderosa república paralela que matou Marielle. Esta sim, é verdadeiramente assustadora, e tem de ser desmantelada com urgência total.

P. Recentemente, você publicou um livro de poesias pela microeditora Quelônio. Como foi essa experiência?

R. Como quase todo escritor, na juventude comecei poeta. Depois, a prosa foi tomando conta da minha vida e nunca mais escrevi poesias. Há três ou quatro anos, me aconteceram alguns poemas súbitos, por assim dizer. Para mim, poesia é coisa de inspiração mesmo, completamente diferente do trabalho braçal da prosa, em que eu me sento no escritório todos os dias, de segunda a sexta, das 9h às 12h, durante um ano e meio, para escrever um romance. A poesia não tem hora, não tem lugar, não tem planejamento. Acontece. Claro que depois você lapida os versos, às vezes durante semanas, mas o poema já aconteceu. Bem, de repente o Bruno Zeni, editor da Quelônio, que produz livros artesanais em linotipo, leu um poema meu, gostou, e perguntou se eu não queria fazer um livro em edição limitada. Aceitei e assim saiu Eu, prosador, me confesso, uma coletânea pequena de 34 poesias. Foi uma experiência ótima, e a recepção tem sido generosa.

P. Falando em microeditora, apesar de todas as crises brasileiras, há certo ar renovado no cenário literário e editorial brasileiro. Novas editoras, novos autores. Você tem sentido isso também?

R. A virada dos anos 2000 marcou o início de uma profunda renovação da prosa brasileira, depois de uma ou duas décadas de relativo apagamento, quando o ciclo dos grandes clássicos do século 20 chegava ao fim. Apareceu toda uma nova geração que está amadurecendo agora, sob uma perspectiva muito diferente daquela que marcou a geração dos anos 1970 e 1980, ainda sob a memória dos anos 1960 e da ditadura militar que se seguiu. Sempre que posso, acompanho a produção atual, que me agrada bastante. Acabei de ler, por exemplo, dois livros maravilhosos de contos: A Cidade Dorme, de Luiz Ruffato, e Reserva Natural, de Rodrigo Lacerda [ambos editados pela Companhia das letras].

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