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Fé evangélica abraça as urnas na América Latina

Doutrina se transformou em um ator político determinante em muitos países da região, impondo valores ultraconservadores e fazendo retroceder as liberdades, escassas em muitos lugares

Deputados evangélicos brasileiros rezam no Congresso.
Deputados evangélicos brasileiros rezam no Congresso.Lalo de Almeida (Folhapress)

Nos próximos meses, com a proximidade das eleições no Brasil, as igrejas evangélicas devem se tornar um dos principais pontos de peregrinação política. É um dos efeitos da dependência do apoio evangélico, que migrou do PT às vésperas do impeachment, e hoje está livre para o candidato que conseguir convencer que está apto a atender os anseios de uma comunidade que já representa mais de dois em cada dez brasileiros. Feito isso, poderá levar um palanque que o expõe a uma atenta multidão e que não tem os custos de um programa eleitoral. Em janeiro, o à época ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, provável candidato à presidência pelo partido de Michel Temer, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), deu a largada do ano: visitou a Igreja Sara Nossa Terra, em Brasília, onde foi apresentado como o responsável pelo “maravilhoso milagre da economia brasileira”.

A aproximação entre a política e a religião evangélica é uma constante que se estendeu por toda a América Latina, onde a doutrina se expande a um ritmo vertiginoso. Em uma região onde existem 425 milhões de católicos (40% da população católica mundial), em um contexto em que a Igreja Católica é liderada pelo primeiro papa latino-americano, os evangélicos somam 20%, quando há seis décadas mal chegavam a 3%, de acordo com dados do Pew Research Center, um fact tank norte-americano que conduz pesquisas sobre temas sociais.

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A ascensão fez com que estes grupos religiosos se transformassem em um ator político determinante, à custa de impor na agenda valores retrógrados e com o risco de fazer retroceder liberdades que, na maioria dos países, mal começavam a ser implementadas. O Brasil, a Colômbia e o México, as três grandes potências que nesse ano realizam eleições, serão o termômetro para avaliar o poder da doutrina além dos centros onde é praticada. Se nos dois primeiros esse poder já é notável, no México, encravado entre um país (os Estados Unidos) e uma região (América Central) onde os evangélicos a cada dia têm mais poder, é um enigma o papel que desempenharão. Nos três casos, os candidatos, de esquerda e conservadores, fizeram sinais, quando não alianças, para garantir seu voto.

Os grupos evangélicos foram capazes de abrir de maneira intermitente o debate sobre o que é família e atacar qualquer vislumbre de legalização do aborto e de casamentos igualitários. E mais, esses grupos apelam à fé para erigir-se como ativos na luta contra a corrupção, a mácula que carcome a região de norte a sul. Com essa premissa Fabricio Alvarado quase chegou ao poder na Costa Rica há duas semanas. A fulgurante ascensão do pastor evangélico no pequeno país centro-americano também evidenciou como esses grupos contam, a seu favor, com um fator que os partidos tradicionais não têm, especialmente os mais conservadores: a proximidade com classes populares, fartas das elites, e que tradicionalmente optavam por partidos de esquerda.

Luiz Inácio Lula da Silva foi talvez quem melhor soube entender esse fenômeno. O Brasil é o exemplo mais claro de como os evangélicos permearam a política. No final da década de 80 os representantes dessa religião conseguiram eleger 32 parlamentares com a campanha “irmão vota em irmão”. Nas últimas eleições o número chegou a 77 (incluindo três senadores). O PT de Lula se beneficiou durante os últimos anos desse apoio improvável, muitas vezes à custa de políticas públicas caras à esquerda. A chegada de Dilma Rousseff, primeira presidenta do Brasil, por exemplo, trouxe esperança às feministas de que assuntos de saúde pública importantes ao movimento, como o aborto, fossem finalmente tratados pelo Governo. Mas a dependência do apoio evangélico no Congresso impediu que isso ocorresse.

O caso do PT se repete no México. O favorito em todas as pesquisas, o duas vezes candidato presidencial Andrés Manuel López Obrador, decidiu unir seu partido, o Morena, considerado de esquerda, a um partido ultraconservador, o Encontro Social, que defende a família como um pilar. A aparente aliança antinatural inquietou boa parte dos potenciais eleitores e as bases do Morena, mas ainda não teve consequências nas pesquisas. Como Lula, López Obrador é consciente de que pode chegar a precisar do apoio da comunidade evangélica, apesar de não ser tão numerosa como no Brasil. O líder do Morena em meio ano passou de dizer que nunca estaria ao lado do Encontro Social a propor, no dia em que foi escolhido como candidato pelos ultraconservadores, uma Constituição moral ao país.

O poder dos evangélicos não será determinante no México a não ser que a votação seja muito apertada e contar com seu apoio se torne crucial. O caso mais recente é o da Colômbia. Na noite de 2 de outubro de 2016, os colombianos recusaram em plebiscito, por uma pequena diferença, o acordo de paz negociado com à época guerrilha das FARC. Naquele dia, a comunidade evangélica, sobre a qual poucos haviam colocado os refletores, saiu para comemorar. Haviam conseguido com que dois milhões de fiéis, de acordo com cálculos das principais igrejas dessa doutrina, votassem não. Lembraram ao país que são capazes de fazer frente à cifra de 70% de pessoas que se dizem católicas e mudar uma eleição. As autoridades avaliam que existem seis milhões de evangélicos, mas os pastores sobem a aposta com cálculos de 8 a 12 em uma população de 48 milhões de habitantes. É o credo que mais cresce, não só em número, também em repercussão. Contam com um poderoso alto-falante: 145 emissoras e 15.000 centros religiosos, de acordo com dados do Conselho Evangélico.

Na noite de 27 de maio as urnas demonstrarão se seu poder também é determinante para colocar e retirar presidentes. O resultado na disputa legislativa de março demonstrou que a força demonstrada durante o plebiscito se dilui quando não há um inimigo único a combater. O voto evangélico se divide no mesmo número de candidatos de sua crença. A priori, Iván Duque, candidato do Centro Democrático, o partido criado pelo ex-presidente Álvaro Uribe, é quem está mais próximo de ganhar o apoio evangélico, já que é apoiado por Alejandro Ordóñez, o ex-procurador da Colômbia, que defende que “a restauração da pátria passa pela restauração da família”. Um único modelo de família formada por um homem e uma mulher. O candidato Duque, por enquanto, não se pronunciou sobre esse assunto em um aparente exercício de neutralidade.

Os principais pastores evangélicos da Colômbia sempre manifestaram, assim como os do Brasil, que não orientam seus fiéis a escolher algum candidato, mas a votar conscientemente para defender seu modelo de família. Ainda que ao mesmo tempo mandem uma mensagem clara ao país: “Estamos presentes nos setores políticos, culturais, econômicos e sociais”.

O fato dos evangélicos serem mais fiéis ao poder do que a uma tendência política ficou claro no Brasil. O processo que levou ao impeachment de Dilma diluiu o poder político do PT e, com isso, os apoios evangélicos ficaram pelo caminho. A dúvida, agora, é para onde migrarão esses apoios nas eleições presidenciais de outubro. Por ter posições semelhantes às defendidas por boa parte dos evangélicos, Jair Bolsonaro, o candidato da extrema direita, se coloca como o que pode ter mais oportunidades de atrair seu apoio. Bolsonaro, um militar da reserva que defendeu publicamente torturadores da ditadura e quer que a população tenha o direito de portar armas, foi até batizado por um pastor, em 2016, nas águas do Rio Jordão, em Israel.

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