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Ex-caçador de milícias: “A estrutura desses grupos está mais forte do que nunca”

Delegado aposentado, Claudio Ferraz diz que organizações criminosas só operam ‘com a anuência do Estado’

Junião
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As milícias do Rio voltaram para o centro do debate da segurança pública no Rio de Janeiro após as mortes da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes. Marielle atuou como assessora do deputado Marcelo Freixo na elaboração do relatório da CPI das Milícias, feita pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que agora completa dez anos.

A CPI trouxe um mapeamento dos grupos criminosos que resultaria no pedido de indiciamento de mais de 200 pessoas, entre elas 67 policiais militares, nove policiais civis, dois cabos do Exército, bombeiros e agentes penitenciários, além de 130 civis, boa parte dos quais ex-policiais. Entre os citados nas conclusões da CPI, estão o Coronel Jairo (MDB), que ainda tem mandato de deputado estadual e em 2006 chegou a ser o parlamentar mais votado da zona oeste do Rio, além dos vereadores Zico Bacana (PHS) e Chiquinho Brazão (MDB).

Um dos responsáveis pela investigação sobre as milícias, que ganharia força com a CPI, é o delegado aposentado Claudio Ferraz, conhecido como “o caçador de milícias”, à época titular da Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas), de onde saiu em 2011. “Não voltaria para lá”, afirma. Franco e direto, em entrevista à Ponte, Ferraz afirma que as milícias nunca saíram de cena. “Elas não reapareceram. Elas sempre estiveram aí. O leão sempre esteve aí. Talvez agora mais forte ainda, com dentes saudáveis e afiados, unhas feitas”, dispara. “Podem até mudar os nomes, os atores, mas o núcleo, as estruturas que as sustentam [as milícias] continuam intactas”.

Sobre a prisão de 159 pessoas numa operação contra as milícias, em Santa Cruz, na zona oeste da capital, o delegado aposentado diz que tem acompanhado apenas pela imprensa e avalia que é preciso ser cuidadoso. “Investigação de milícia leva tempo, é preciso identificar as pessoas, entender como operam. Isso não é do dia para a noite”, afirma. “De qualquer forma foi uma ação ousada, dentro de uma área considerada de domínio dos milicianos e que quase culminou na prisão de seu líder máximo [Wellington da Silva Braga, o Ecko]”.

Para o delegado, a CPI deveria ter gerado um trabalho permanente de investigação e repressão. “Não existe organização criminosa que opere sem a anuência do Estado. Isso te falo sem medo algum. De um ou de vários atores do Estado em suas mais diversas esferas”, afirma. Ferraz alerta que, para entender as milícias, é preciso voltar os olhos para o transporte alternativo no Rio de Janeiro: “É a grande fonte de renda”. Quando saiu da delegacia especializada, Ferraz passou a integrar a coordenação de transporte complementar na Secretaria dos Transportes justamente para identificar as possíveis atividades criminosas que pudessem estar ocorrendo na clandestinidade. Aposentou-se há 60 dias.

Ponte – A CPI das milícias completa dez anos. Por que justamente voltaram a falar do tema agora? Elas reapareceram na cena?

Claudio Ferraz – Elas sempre estiveram aqui. Mas atribuo isso a uma falta de continuidade do trabalho. Houve um momento de enfrentamento deles. Passaram anos por aí esquecidos e estão fortes. Era necessário um trabalho permanente de repressão, de acompanhamento. Isso não foi feito. Nós continuamos hoje como éramos em 2006. Para enfrentar esse inimigo, esse adversário, essas estratégias usadas em 2008 já estão superadas. Eu vi, na experiência que eu tive e também no fato de estudar práticas do mundo inteiro, que não adianta: tem que ter um grupo especializado, mantendo constante vigilância. O que aconteceu é que existiu uma evolução desses grupos, sempre dando apoio aos políticos profissionais, políticos mal intencionados. Houve um período em que eles [os milicianos] tinham o interesse em financiar candidaturas. Até que chegou uma hora em que perceberam que não haveria necessidade de ter intermediários e passaram eles mesmos a entrar na vida política. Começaram a visualizar a penetração deles na vida política. Esses grupos tiveram um incremento financeiro muito grande quando surgiu o transporte de vans, o tal do transporte alternativo. Além dos outros serviços que já são conhecidos e seguem como fonte de renda, como o sinal de internet, de TV a cabo, o gás, até água potável, em algumas localidades. Havia no passado uma tese de legitimação da atividade deles: surgem como um elemento que combatia o tráfico. A origem desses grupos, as primeiras formações, contavam com os ditos “justiceiros”, o segurança de rua, policiais. O alvo desse grupo era o cara que rouba na comunidade, o cara que cria problema na comunidade. Nada tinha a ver com tráfico. O tráfico não incomoda a comunidade. O que incomoda é a troca de tiros.

Ponte – Como você avaliou os resultados da CPI?

Ferraz – Acredito que foi um trabalho que gerou resultados excelentes. A gente trocou muita informação naquela época, a ponto de chegarmos de fato ao indiciamento e prisão de pessoas. Só que ela se encerrou. O que eu acho é que a CPI deveria ser permanente. De nada adianta ter uma ação como aquela e, de repente, acabou. Porque aí volta tudo mesmo. E as organizações estão mais fortes e vigorosas do que nunca. O que as pessoas precisam entender é que tratar de crime organizado é investigação. E trabalho de investigação, de inteligência da polícia, é algo de meses, leva tempo. Não são dias, não é um mês. O caso mesmo da Marielle agora. Um mês é pouco. Quando a gente detectou, na minha época, a Liga da Justiça, foi fruto de um trabalho de 8 meses. E tem que vir de um sistema especializado. Caso contrário, não adianta nada.

Claudio Ferraz quando trabalhava no setor de fiscalização do transporte complementar da Prefeitura do RJ
Claudio Ferraz quando trabalhava no setor de fiscalização do transporte complementar da Prefeitura do RJReprodução/Facebook

Ponte – Alguns ainda estão presos. Mas figuras como o ex-vereador Cristiano Girão, já estão na rua. O que acha disso? A punição foi falha?

Ferraz – Eles foram responsabilizados pela legislação vigente na época. Não havia uma legislação específica, por exemplo, para tratar de organização criminosa. Nós utilizávamos o que era possível. Então, o que eu acho que é preciso ser feito para resolver a questão é que a gente precisa realmente rever a legislação. Tornar a punição mais rígida e parar de tratar chefe de organização criminosa como criminoso comum, porque não é. Basta lembrar do Fernandinho Beira Mar. Você lembra? O avião que ele estava foi abatido na Colômbia [em 2001]. O sujeito se arrebentou, mas, quando soube que voltaria ao Brasil, abriu um sorriso de orelha a orelha. Porque aqui, no sistema prisional que temos, o cara continua reinando. E, aliás, isso também precisava ser revisto. A maioria dos presos está no sistema por tráfico, grande parte sem ter cometido crime violento. É claro que, se analisarmos a questão da droga, entraremos na esfera da saúde pública e tudo mais. Mas essa lógica de encarceramento desse tipo de pessoa, muitas vezes usuária, que faz o corre para sustentar o próprio vício ou mesmo por falta de oportunidade, tem que acabar. Tem que punir o chefe da quadrilha. Agora, com relação aos que cumpriram penas e já saíram, é o que eu disse: rever a legislação. Se cumpriu e saiu, é porque estava previsto na lei, não tem o que fazer. É o respeito ao estado democrático de direito.

Ponte – Foi a milícia que matou Marielle?

Ferraz – Sobre isso acho que não quero falar. Não me sinto confortável de opinar em um trabalho de investigação com o qual não estou inteirado. Pode ser que tenha sido? Pode ser. Mas isso é a investigação que vai dizer. E acho correto o que a polícia do Rio está fazendo de manter tudo em sigilo.

Ponte – Como as milícias operam?

Ferraz – Basicamente, essas organizações surgem em locais onde há falta de serviços básicos: saúde, transporte, o tal do gatonet, TV a cabo. Elas visam lucro. Se há um local onde há possibilidade de ganhar dinheiro com a oferta desses serviços, elas lá se estabelecerão. E quando ela surge, cria-se o mito do sujeito miliciano que é o cuidador da comunidade. A Globo inclusive fez uma novela sobre isso, em que o Antonio Fagundes era o dono da comunidade [novela Duas Caras, veiculada em 2008, em que o ator interpretava o personagem Juvenal Antena]. As pessoas levavam problemas pra ele, que resolvia tudo. Foi uma forma de romantizar essa relação de milicianos com a comunidade. Eles não mostraram as mortes, as disputas, as trocas de tiros. Eles mostraram só a parte do sujeito provendo a comunidade daquilo que faltava. Quando as milícias começaram a aparecer, existia uma aceitação enorme desse grupo, porque existia uma sensação de que ali nas favelas onde não havia Estado, alguém estava olhando por aquele lugar, algo estava sendo feito. E é nesse contexto de tranquilidade, ali em 2007, que a Liga da Justiça se fortalece de tal forma que passa a aparecer. E aí a imprensa vai atrás. Até o momento em que sequestraram e torturaram no Batan repórteres do jornal O Dia. O Freixo naquela época estava querendo emplacar a CPI das milícias e havia uma resistência na Câmara, claro. Quando acontece isso com os jornalistas, foi a deixa para tudo acontecer.

Ponte – O senhor foi pessoalmente responsável pela prisão dos principais líderes da chamada Liga da Justiça [irmãos Natalino e Jerônimo Guimarães]. E essa organização hoje?

Ferraz – Certamente cada vez mais forte, capilarizada. Inclusive há informações que dão conta de que outros grupos de milícias, que surgiram posteriormente ou mesmo a partir da Liga da Justiça, hoje pagam parte dos lucros à Liga.

Ponte – A zona oeste acabou virando um reduto das milícias. Por quê? Muita gente fala do Gardênia Azul, por exemplo…

Ferraz – Botijão de gás é um insumo essencial para a comunidade, por exemplo. Mas não só. Há outras coisas necessárias para o dia a dia do sujeito. Se eu domino transporte de massa, se eu ofereço à população sinal de TV a cabo, internet, se eu vendo a água potável, se eu vendo o terreno que o cara vai construir o barraco dele em locais geralmente de ocupação irregular, eu ali crio um curral eleitoral. Se eu tenho esse domínio todo, eu vou me estabelecer ali. Você falou do Gardênia Azul, ali é um pouco diferente, assim como o  Rio das Pedras… mas para usar de exemplo, o Cristiano Girão tem várias kitnets que ele aluga e embolsa, numa conta rápida, uns R$ 200 mil por mês. Além de empresas de material de construção. Como a administração federal, municipal, estadual é bastante incompetente e omissa, o que acontece é que a criação de condomínios em áreas remotas, sem qualquer infraestrutura, virou terreno fértil para a ação de milícias. Não é difícil entender. E, como visão empresarial, aquilo não vai encher o olho de ninguém pra ter um investimento. Mas, para a milícia, virou oportunidade de negócio. Por exemplo, Rocinha e Maré são estratégicas para o tráfico pela localização. O cara não vai querer montar um ponto de tráfico em um local remoto. E os locais onde o Estado está ausente viram terra de ninguém e aí você vai se impor, primeiro pela necessidade das pessoas que moram ali e depois pela força.

Ponte – Por que Gardênia Azul e Rio das Pedras é diferente?

Ferraz – Porque eles se organizaram de uma forma diferente. As comunidades surgiram para a construção da Barra da Tijuca, ou seja, eram trabalhadores que se instalaram ali para trabalhar na construção do bairro. Quando me refiro a locais abandonados da zona oeste, estou falando sobre Seropédica e Santa Cruz, onde não tem nada disso mesmo, nenhum serviço. Ou seja, Gardênia Azul e Rio das Pedras não é forte para tráfico, não apenas porque as milícias controlaram toda a operação da comunidade, mas porque ela surge em um contexto especifico. O tráfico da zona oeste é na Cidade de Deus. Mas estava pensando aqui sobre isso e sabe qual a boca de fumo mais lucrativa de todas? A do sistema prisional. Está tudo ali, operando, crime organizado, compra e venda, usuário e um hotel com 200% de ocupação.

Ponte – E sobre a composição das milícias, a maioria são policiais, ex-policiais, bombeiros mesmo?

Ferraz – Não mais. Na minha época, nós registramos que os policiais diziam abertamente que prestavam serviço na milícia, como se fosse uma segurança privada. E tinham inclusive orgulho desse título. Quando a própria imprensa passou a fazer o papel de divulgar os desmandos e o que estava por trás desse poder paralelo, o sujeito que estava só querendo complementar renda, que não era do crime, deixou de querer fazer parte daquilo. E aí o que começou a acontecer é que os milicianos iam buscar na casa dele o policial que não queria mais estar naquele trabalho. Com relação a ex-policiais, ex-bombeiros, aí o que acontece é que cooptar esse tipo de gente acaba sendo mais fácil, porque se ele saiu da corporação porque deu um mau passo, continuar operando no crime é quase natural. Hoje em dia, o recrutamento de civis, de gente que mora mesmo na comunidade e passa a trabalhar para a milícia, é maior.

Ponte – O negócio das milícias não é droga. Mas como se estabelecem essas relações com os traficantes? E a questão das armas?

Ferraz – Se assumir a tese de Hélio Luz [chefe da Polícia Civil fluminense entre 1995 e 1997], a história da “banda podre” da polícia, chegamos ao seguinte: eu tenho acesso a uma arma, eu desvio essa arma, eu vendo essa arma para eles [traficantes]. Ainda nessa mesma lógica do período do Hélio Luz, da banda podre, o policial extorque o traficante. Não mata o traficante. Você não vai conseguir entrar numa área de traficantes e se impor por causa dos seus belos olhos. A gente está falando de domínio territorial. Existe o poder e ele vai ser naturalmente imposto pela força. Só que o miliciano não ocupa território de tráfico. Isso é falácia. O tráfico expulsou os milicianos em Jacarepaguá, por exemplo. O miliciano quer se estabelecer e vender seus serviços. Ele não se interessa por fazer isso em um local que é reduto forte de tráfico. Mesmo porque há situações, como na própria Ilha do Governador, em que o tráfico tem comportamento de milícia. Domina gás, transporte, água, internet, acabou com todos os terreiros de umbanda e candomblé na comunidade. Tudo é do tráfico. E tinha uma história de uma cooperativa de transportes que era do tráfico e a gente chamava de CNPJ do tráfico, porque eles legalizavam na cooperativa o recebimento de dinheiro das vans. Existe um problema seríssimo hoje no Rio que é o fato de a Secretaria de Transportes ter liberado irrestritamente a circulação do transporte complementar, o transporte alternativo. Tudo voltou ao que era antes e o pau tá comendo. É o Rio de Janeiro de ontem, de anteontem e de hoje. O transporte alternativo é altamente lucrativo. É muito dinheiro que circula nessa área.

Ponte – O que poderia ser feito no curto prazo para acabar com as milícias?

Ferraz – Eu vejo dois pilares: a regulamentação e a fiscalização das atividades que trazem a lucratividade desses grupos, que são crimes de aceitação social. É o gatonet, por exemplo, é o jogo do bicho, é a questão do transporte. Você vai falar com uma senhora na rua e ela vai dizer: “Eu uso essa van mesmo que não tem condição, não tem ônibus, não tem outro meio de transporte, a prefeitura não oferece meio de transporte”. Essas atividades têm uma aceitação social, o que já causa uma certa dificuldade na repressão. Isso exigirá uma repressão mais qualificada. Por exemplo, se eu sou delegado de um determinado distrito e o comandante do batalhão é de uma determinada área, qual é o sonho de consumo desses profissionais? É que tenha a maior tranquilidade possível naquela área. Inclusive eles são premiados. Quanto menos incidência criminal, maior a competência dele para fins de análise. Mas, para quem trabalha em crime organizado, o momento mais tenso é o momento da tranquilidade. A maior alegria da minha vida é quando começa a porrada a comer, porque é aí que eles colocam a cabeça para fora e você tem condições de atuar. Porque, enquanto eles estão faturando, lucrando com demandas que eu com minha inteligência tenho obrigação de detectar, quando está tudo tranquilo e eu sei que existe uma demanda reprimida, existe uma extorsão, existe um trabalho de domínio por organizações criminosas, o que eu tenho que fazer? Eu tenho que fazer a repressão de uma atividade que a própria população aprova. Se você chegar na rua, alguém vai dizer: “Não, está tudo bem, está tudo tranquilo, por que problema?”. Isso exige uma profissionalização e uma estrutura diferenciada. Você não pode tratar a repressão à organização criminosa da mesma forma que você trata a repressão e a atividade de segurança pública do crime comum. Crime comum é uma coisa. O crime que trata de organização criminosa é outra coisa. O maior lucro, o maior objetivo, a maior felicidade de quem comanda organização criminosa é que os crimes praticados durante a atividade dele, que geram o grande lucro, sejam tratados de forma isolada.

Ponte – Como assim?

Ferraz – Um fato aconteceu. A Polícia Militar atua, aí vai na delegacia, registra, faz a perícia e tudo e chega, quando chega, à autoria do João da Silva. Você pega o João e joga no sistema prisional e ótimo. A organização criminosa agradece também. O sistema prisional é uma das maiores fontes de renda e recrutamento do crime. Então você está trabalhando para o crime, para o fortalecimento do crime. Nós temos que estabelecer, identificar, ter uma inteligência proativa para que se identifique as fontes de renda e informe as autoridades que tem poder de regulamentar as atividades que estão dando lucro, as atividades que estão sendo exploradas, as atividades que poderão ser exploradas. Tem que estar o tempo inteiro produzindo essa informação e provocando as unidades de repressão especializada para atuar sobre essas organizações. E, quando eu digo unidade especializada, eu digo uma unidade que tenha capacidade de atuar interinstitucionalmente. Porque é impossível, considerando a complexidade desse fenômeno, considerando a variedade de matizes de faturamento de envolvimento, você não terá condições nunca de atuar especificamente com um único grupo. Isso tem que ser feito nos moldes de força-tarefa para o caso concreto, com foco centralizado no problema. Não é caso que, em decorrência da ação criminosa tem um homicídio, eu vou lá e atuo na investigação dessa morte. Isso aí não serve para absolutamente nada. Isso tem que ser visto de uma forma sistêmica e desenvolver uma ação com todos os envolvidos, que são grupos, estruturas, entes estatais que não são necessariamente da polícia. A ANP é fundamental, a secretaria dos transportes, departamento de trânsito, as empresas privadas de energia, água, TV a cabo, internet. A solução para esse problema complexo não pode ser dado simplesmente por uma delegacia apurando um caso de um homicídio por causa da disputa de um gatonet. Você vai descobrir quem matou o Joãozinho, você conclui a sua missão, mas não serve pra nada.

Ponte – E você acha que o Rio de Janeiro sob intervenção terá essa capacidade?

Ferraz – Depende. Se o interventor [general Walter Souza Braga Netto] tiver visão, sim. Se não tiver visão, vai continuar insistindo na presença armada na rua, na apuração e prisão de Joãozinho, Manoel, Pedrinho e Mariazinha.

Ponte – Como você avalia a intervenção?

Ferraz – Eu acho que alguma coisa tinha que ser feita. É igual aquela terra de vaso que já esta socada, sabe? Já não tem mais oxigênio, a raiz não consegue trabalhar.

Ponte – E melhorou?

Ferraz – Sinceramente, não melhorou coisa nenhuma. Eu comentei com pessoas ligadas ao secretário de segurança [general Richard Fernandez Nunes] que a primeira ação que tinha que ser feita é mexer no sistema prisional. Para resolver o problema da segurança pública, não precisa ir em favela nenhuma. Tem que ir no presidio. Não tenho a menor dúvida. Presídios e agências de inteligência. Se você conseguir estabelecer agências de inteligência que passem a ser proativas, que têm essa visão do crime organizado, que estabelecem ferramentas para combate ao crime organizado, proteção de testemunhas, busca de réus colaboradores do sistema prisional…. está tudo dentro do presídio. Eu como delegado de polícia, hoje, se ainda estivesse na ativa, e recebo essa orientação: “Escolhe pra onde você quer ir?”. Eu quero ir para dentro do presídio. É a única chance para criar ferramentas específicas de combate ao crime organizado, porque nós não temos absolutamente nada.

Ponte – Haveria uma possibilidade de reeditar todo aquele processo de investigação hoje em dia?

Ferraz – Nós atuamos naquela época e quem era o secretário? Dr. Mariano Beltrame. O governador era o Sérgio Cabral. Eu prendi elementos que tinham fotos, eu prendi o Natalino e Jerominho, por exemplo, que é um caso emblemático. Eles davam apoio aberto ao governador. O governador nunca me fez uma ligação pedindo isso, aquilo, aquilo lá. Sempre me deu apoio. Nunca recebi nada. Não é de se estranhar? Liberdade total de trabalho. Por isso que eu consegui fazer o que tinha que ser feito. Ninguém incomodava. Eu quis fazer, eu queria reunir informações de combate ao crime organizado, procurei Alerj, procurei Secretaria de Segurança, fizemos um seminário com especialistas internacionais e tudo foi financiado por eles. E hoje estão presos [Cabral, Natalino e Jerominho]. Era de se imaginar que eles não queriam isso. Por que eles apoiaram e investiram e justamente quando eu saí parou?

Ponte – Por quê?

Ferraz – Por que eu tive apoio? Talvez por que queriam eliminar a concorrência? São questões interessantes de serem analisadas.

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