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Adoniran e mais quatro filmes para não perder no É Tudo Verdade

Cinebiografia do sambista busca desmistificar sua figura. EL PAÍS recomenda outros filmes da lista

Adoniran Barbosa na década de 1970
Adoniran Barbosa na década de 1970Reprodução

Conta-se que no final da década de 1970, Adoniran Barbosa, depois de fazer uma ronda pelo Bixiga e centro de São Paulo, chegava-se a um sofá da Rádio Eldorado, sediada na Rua Major Quedinho, tapava o rosto com seu inseparável chapéu e dormia. Mais tarde, quando acordava, desandava a pedir favores para quem estivesse por lá. Queria um café, uma ligação e a execução de um LP de tango, quando estava de tango. Não trabalhava lá, mas usava aquele sofá como um náufrago que se agarra a uma tábua em alto mar. O sambista paulista havia brilhado na era de ouro do rádio, e, no final da vida – Adoniran morreria em 1982, poucos anos depois de adotar a Rádio Eldorado como lugar preferencial de suas sestas –, tinha dificuldades de se encontrar em uma cidade e em um meio profissional que havia mudado radicalmente.

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O que se conhece hoje do sambista é a caricatura, o personagem com que ele se confundiu: o homem do sotaque engraçado, que fez sucesso na rádio e na TV, que compôs Trem das Onze e umas outras canções que têm uma São Paulo, hoje histórica e algo romântica, como pano de fundo. Adoniran – Meu Nome é João Rubinato, documentário que abriu a 23ª edição do Festival Tudo É Verdade, busca, a partir de entrevistas e farta pesquisa musical e de imagens de arquivo, desvendar o mito Adoniran. “O filme é bem tradicional do ponto de vista de apresentação, mas busca retratar as diferentes facetas do artista, sem cair no lugar comum que às vezes sua figura inspira”, disse Pedro Serrano, diretor do filme, durante a abertura do festival, dedicado apenas a documentários, que vai até dia 22 de abril no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Do retrato traçado pelo filme, surge João Rubinato, nome de batismo do sambista, um artista múltiplo, que circulou com desenvoltura pela comédia em programas de rádio e televisão, que retratou São Paulo como poucos e que conciliava alegria e tristeza, com mesma intensidade. Indissociável do nome Adoniran Barbosa, o artista é quem melhor captou um momento de mudanças intensas na capital paulistana, seja no modo de falar – uma mescla de sotaques italianos, portugueses e caipiras, que ele emulou tanto em seus sambas, quanto nos programas de rádio –, seja no desalojamento de uma população pobre que vivia em cortiços na região central da cidade e foi expulsa para a periferia.

Se Adoniran foi capaz de absorver a cidade vibrante, que mais crescia na América Latina, em algum momento deixou de se reconhecer nela. A história dos cochilos no sofá da rádio Eldorado é bem simbólica disso. Em determinado momento do documentário, o sambista se queixa que já não sabe andar no Bixiga, seu próprio bairro, pois ele foi inteiro entrecortado por viadutos e novas ruas. Para a imagem de Adoniran Barbosa como apenas um personagem curioso – chapéu, gravata borboleta, sotaque de outros tempos –, o documentário de Pedro Serrano faz emergir uma figura complexa, que se mistura com a cidade e que usa do humor para tratar dos assuntos mais duros da sociedade paulistana: os despejos, a pobreza das ruas, o progresso que não levou em conta os marginalizados.

Talvez João Rubinato não exista, porque quem existe é o mágico Adoniran Barbosa, vindo dos carreadores de café para inventar no plano da arte a permanência da sua cidade e depois fugir, com ela e conosco

No final do documentário, o artista gráfico Elifas Andreato, lembra-se do retrato que fez para o LP em comemoração aos 70 anos de Adoniran. No desenho, o sambista aparece fantasiado de palhaço com um semblante triste e uma lágrima escorrendo no rosto. Logo depois de deixar a sugestão de capa na gravadora, recebeu a ligação de um executivo que trabalhava lá: “Elifas, você acha que o Adoniran vai entender esse negócio de palhaço chorando?”. Indeciso, o artista resolveu fazer outro desenho. Agora, com um Adoniran Barbosa altivo e sóbrio. Um tempo depois, Elifas conta em um dos depoimentos mais tocantes do documentário, o sambista ficou sabendo da história e quis ver o desenho original. Logo em seguida ligou para o artista e disse, meio a sério, meio na brincadeira: “Sou muito grato a você, mas por que você trocou de desenho, seu filha da puta? Eu sou aquele palhaço”.

Envergonhado, Elifas confessa que subestimou a sensibilidade de um dos maiores artistas do cancioneiro brasileiro. Para não restar dúvida da profundidade sempre colocada em dúvida de Adoniran, o documentário é finalizado com uma elegia assinada por Antonio Candido, em 1975: “Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua anti-voz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade. Talvez a borboleta seja mágica; talvez seja a mariposa que senta no prato das lâmpadas e se transforma na carne noturna das mulheres perdidas. Talvez João Rubinato não exista, porque quem existe é o mágico Adoniran Barbosa, vindo dos carreadores de café para inventar no plano da arte a permanência da sua cidade e depois fugir, com ela e conosco”.

Mais quatro indicações do Tudo É Verdade

Um pouco mais enxuto de que em edições anteriores, o festival de documentários este ano tem cerca de 50 filmes selecionados, entre brasileiros e estrangeiros. Na abertura desta quarta-feira, 12, Amir Labaki, idealizador da mostra, falou um pouco sobre as dificuldades para se colocar de pé o evento este ano. Com a crise, os patrocínios e fontes de renda minguaram, em um cenário comum a todo o meio de gestão cultural no Brasil. Apesar das dificuldades, os filmes selecionados para esta 23ª edição do festival têm títulos muito interessantes, graças, segundo Labaki, a uma safra espetacular de documentaristas brasileiros. O EL PAÍS selecionou quatro títulos da lista para você ter por onde começar a partir desta quinta-feira, 12.

Quando as Luzes das Marquises se Apagam

Dirigido por Renato Brandão, o documentário conta a história dos cinemas de rua de São Paulo, na década de 1950, a partir do depoimento de antigos frequentadores e imagens de arquivo.

O Processo

Dirigido por Maria Augusta Ramos, o documentário mostra uma perspectiva sobre o julgamento que culminou no processo de impeachment de Dilma Rousseff. Ramos filmou cerca de 450 horas durante meses de trabalho em que teve acesso exclusivo a reuniões e discussões a portas fechadas.

Che, Memórias de Um Ano Secreto

Dirigido por Margarita Hernández, o filme retrata o ano de 1966, quando Che Guevara viveu entre Dar es Salaam, na Tanzânia, e Praga, na então Tchecoslováquia, depois de tentar instalar um foco guerrilheiro (sem sucesso) no Congo.

Elegia de Um Crime

Dirigido por Cristiano Burlan, documentário finaliza a Trilogia do Luto, em que o diretor faz um retrato cru das violências de sua família, uma história bem comum no Brasil. Em Construção, de 2007, abordou a morte do pai, que morreu de forma pouco esclarecida, em Mataram Meu Irmão, de 2013, reconstitui o assassinato do irmão, Rafael Burlan, e agora trata do assassinato da mãe pelo parceiro.

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