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Caso Marielle Franco
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O assassinato de Marielle Franco no radar da ONU

Relatora de Direitos Humanos da ONU tem recebido inúmeros pedidos para acompanhar caso de Marielle

Protesto dia 15 de março
Protesto dia 15 de marçoMarcelo Sayao (EFE)
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Com menos de um mês de intervenção militar federal no Rio de Janeiro, o assassinato de Marielle Franco arrastou para dentro do já intrincado tabuleiro político novos atores – agora internacionais. A Organização das Nações Unidas (ONU), que já vinha dando sinais de preocupação deve agora entrar de vez na história. O caso de Marielle atende a todos os critérios para isso. Politicamente, devido à grande comoção gerada, a história adquiriu relevância internacional e chamou a atenção da organização, que estrategicamente escolhe casos emblemáticos que possam servir de exemplo da luta pelos direitos humanos ao redor do mundo. Tecnicamente, além do histórico de outros casos recentes no Brasil, o perfil da vítima, as circunstâncias do crime, seu modus operandi e as alegações de pessoas próximas seriam suficientes para que o caso fosse selecionado.

Tragédias costumam unir pessoas, e foi isso que o mundo inteiro parou para ver na manhã de quinta-feira: um país dividido momentaneamente unido pelo luto de Marielle. Da Presidência da República aos maiores meios de comunicação; das redes sociais aos principais partidos políticos; todos falaram, inclusive o silêncio dos que não se pronunciaram. A mídia internacional, governos e ativistas ao redor do mundo reagiram retransmitindo a mensagem em solidariedade. Por um momento, Marielle uniu o Brasil aos olhos do mundo.

Em menos de 24 horas, o caso da vereadora do Rio de Janeiro já havia dado uma volta completa na Terra. A ONU e a Organização dos Estados Americanos (OEA) emitiram comunicados. A Anista Internacional e Human Rights Watch, ONGs internacionais com sedes no Brasil, emitiram notas condenatórias. Parlamentares Europeus politizaram o caso no âmbito das negociações com o Mercosul; e manifestações públicas foram organizadas em várias capitais ao redor do globo. Em Nova York, prestou-se homenagem a Marielle em evento da ONU. A história agora é global. É nosso dever entender a dimensão que o caso está tomando; e como ele poderá se desenvolver de agora em diante, dentro e fora do Brasil.

Marielle também chamou a atenção do órgão da ONU sediado em Genebra que monitora a situação dos direitos humanos ao redor do mundo e, se necessário, procura atuar sobre elas. O Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, como é chamado, conta hoje com 51 Relatorias Especiais - as quais trabalham de maneira autônomia, porém complementar. As relatorias atuam sobre os mais diversos temas, tais como liberdade de expressão, defensores de direitos humanos, racismo, violência contra a mulher e execuções extrajudiciárias. Com frequência, as relatorias trabalham conjuntamente sobre um mesmo caso. Por limitação de recursos financeiros, de equipe e tempo, seus pesquisadores buscam selecionar com critério os casos sobre os quais irão trabalhar. Logo, é natural que se pergunte: de tantos temas e relatorias, como definir quem acompanha o quê? No caso da Relatoria Especial para Execuções Arbitrárias, Sumárias ou Extrajudiciárias, chefiada por Agnès Callamard, há uma resposta, e nela há pistas para pensar se e como se encaixa o caso Marielle.

De acordo com Callamard, “assassinatos que possam ter tido motivação política ou cujo mentor possa estar próximo de agentes públicos” encaixam-se na definição de assassinatos extrajudiciais. Uma execução extrajudicial é um assassinato cometido por um agente público fora de qualquer processo legal mas motivado por uma agenda de estado.

O mandato da relatoria cresceu em escopo nos últimos 20 anos, e atualmente tem por objetivo monitorar e relatar situações onde haja alegações ou evidências de privação arbitrária da vida. Relatórios temáticos são apresentados ao Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, e ao 3º Comitê da Assembléia Geral da ONU, em Nova York. Ademais, sem necessariamente visitar o país, a Relatoria Especial pode emitir comunicados aos governos expressando preocupação sobre as situações identificadas, e transmitir suas recomendações.

O resultado esperado desta atuação é estabelecer o diálogo com o Estado em suas múltiplas esferas, assim como com atores da sociedade civil, de quem também se espera uma participação ativa no processo de adoção das medidas preventivas acordadas. Tem-se, portanto, o aumento da transparência, da legitimidade e, por conseguinte, da eficácia das políticas de direitos humanos e segurança pública.

De todo modo, ainda que haja uma definição bem delimitada para os casos em que a relatoria da ONU pode atuar, isto não basta para explicar o crescente interesse na morte de Marielle.

Com efeito, Callamard é enfática ao dizer que não pode comentar sobre o caso específico de Marielle Franco e Anderson Gomes. Por um lado, porque ainda é cedo para emitir qualquer julgamento uma vez que as peças do quebra-cabeças continuam chegando a Nova York. Por outro lado, o protocolo interno da ONU é claro: a Relatora deve comunicar o país em questão antes de emitir qualquer opinião pública.

Dito isso, o que faz casos similares ao de Marielle entrarem no radar da Relatora? Basicamente duas coisas: a repercussão global e a reação da opinião pública. Tomemos por exemplo os dois recentes assassinatos de jornalistas na Europa, um na Eslováquia e outro em Malta. Em ambos os casos, a imensa comoção internacional resultou num grande número de pedidos para que o Alto-Comissariado entrasse em cena, o que, embora não fosse necessariamente decisivo, certamente contribuiu para criar a pressão que levou ao desfecho com a punição dos envolvidos – e no caso eslovaco, a renúncia do Presidente.

Ainda assim resta perguntar por que também não levar em consideração outros casos de assassinatos que ocorreram na mesma noite em que Marielle foi morta? “Acho que não se pode negligenciar essa crítica” responde Callamard, “mas é preciso lembrar a história e a natureza do meu mandato. Isto é, crimes que foram cometidos em nome do Estado, por agentes do Estado para implementar uma política de Estado. Em segundo lugar, uma leitura tradicional dos direitos humanos nos leva a priorizar assassinatos onde a responsabilidade do Estado e sua falha ao respeitar o direito à vida podem ser claramente demonstrados. Não estou dizendo que é isso o que aconteceu neste caso [Marielle]. Terceiro, é preciso considerar a identidade da vítima e entender por que aquele assassinato em particular teria sido priorizado. Isso não significa que a vida de algumas pessoas são mais importantes do que de outras, mas que a morte de uns podem ter mais impacto social do que de outros; particularmente quando indivíduos ocupam posições públicas, quando eles representam um grande número de constituintes, ou quando representam aqueles que estiveram historicamente ausentes do espaço público, quando foram eleitos, quando são jornalistas, quando são ativistas de direitos humanos. Em suma, todos esses indivíduos presentes na esfera pública que exercem o papel social de informar o público, defendê-lo e se reportar a ele, se esses indivíduos forem mortos muito provavelmente isso irá chamar minha atenção e de outras pessoas de direitos humanos.”, encerra Callamard.

Infelizmente, se for comprovado que este é o caso de Marielle, ele entrará para uma perversa estatística de assassinatos de ativistas de direitos humanos. Conforme o relatório da Front Line Defenders, somente em 2017, 312 ativistas foram assassinados em 27 países. Em 84% dos casos as vítimas receberam ao menos uma ameaça de morte. Até janeiro passado, apenas 12% dos casos resultaram na prisão dos suspeitos. Mais alarmente é a informação de que 80% desses assassinatos ocorreram no Brasil, Colômbia, México e Filipinas.

Dentro dos próximos dias é provável que o governo brasileiro receba um comunicado oficial do escritório de Callamard e outros relatores do Alto-Comissariado. Se isso ocorrer, não será uma excepcionalidade. Nos últimos 16 meses, somente a relatoria de Callamard já enviou cinco comunicados ao governo brasileiro referente a episódios em praticamente todo o território nacional. Uma carta refere-se à onda de assassinatos que assolaram o Estado do Espirito Santo durante o fevereiro de 2017. As demais cartas, assinadas com outros relatores da ONU, dizem respeito ao assassinato de 11 camponeses no Pará, o alerta sobre situações de ameaça a ativistas ao redor do Brasil, o assassinato de 5 menores nas favelas do Rio de Janeiro no contexto de uma operação militar anti-drogas, e as ameaças de morte de ao menos 6 ativistas em Minas Gerais.

Diferentemente da maioria dos países com os quais se comunica, a Relatora reconhece que “o Brasil tende a responder todas as cartas que envio; e costuma sempre prover maiores informação sobre os casos, além de explicar o que está sendo feito a respeito do mesmo. Nem todos os governos são tão diligentes”.

Fato é que a crise dos direitos humanos é global. De acordo com a base de dados da ONU, nos últimos 16 meses, período em que Agnès Callamard ocupa o posto, foram 133 comunicados para 50 países em todos os continentes. Dos cinco países que mais receberam comunicados além de Irã, Filipinas, Barein e Paquistão, destacam-se os Estados Unidos, em terceiro lugar. Questionada sobre um critério de seletividade ou se também atua sobre os chamados países desenvolvidos, a relatora rebate: “Absolutamente (...) enviei comunicados aos Estados Unidos, Reino Unido e França sobre assassinatos cometidos pelas polícias ou cometidos durante custódia. Assim como meus antecessores, também enviei cartas aos Estados Unidos referentes ao uso de drones para ‘assassinatos seletivos’. Esses assassinatos são extraterritoriais, mas a responsabilidade é geralmente de países do Norte Global. (...) Estive recentemente na Itália e na Bélgica discutindo o assassinato de migrantes.”

Uma coisa é certa. O sucesso da investigação sobre o caso Marielle vai depender da pressão doméstica e internacional; e exigirá o diálogo de diversos setores do Estado e da sociedade brasileira. O caso ganhou projeção internacional e provavelmente será politizado, como é natural a todas as questões de direitos humanos. Governos, organizações e a opinião pública internacional foram cativados pela história desta jovem ativista negra, de origem humilde e que foi, muito provavelmente por causa de sua atividade política, brutalmente assassinada. Se toda crise é uma oportunidade, esta é a oportunidade de o Brasil mostrar a que veio. Graças à Marielle, o mundo todo acompanha agora o drama da intervenção militar federal no Rio de Janeiro. Hoje, Marielle é do tamanho do mundo.

Gustavo Macedo é doutorando em Ciência Política pela USP, e atualmente pesquisador no Instituto de Guerra e Paz da Universidade de Columbia em Nova York

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