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Famílias postiças contra a sigilosa epidemia da solidão

Projeto de franciscanos na Espanha busca pessoas sozinhas para compartilhar alimentos, tarefas e companhia

Sonia Vizoso
Participantes no projeto para combater a solidão no convento de San Francisco de Betanzos (La Coruña)
Participantes no projeto para combater a solidão no convento de San Francisco de Betanzos (La Coruña)óscar corral

Rosa enviuvou em agosto e desde então carrega nos ombros um pesado silêncio. Só o telefonema de uma amiga todos os dias às nove da noite diminui um pouco o seu vazio. Rosa vive na Galícia, uma região chuvosa no norte da Espanha, onde impera o caráter introspectivo e estoico. Além disso, ela mora em uma aldeia, em Betanzos (província de A Coruña) que há anos não para de perder população. Esse telefonema é praticamente o único momento em que se comunica com alguém. “Conversamos durante meia hora. Não criticamos ninguém, mas comentamos coisas e a faço rir”, conta Pilar, a voz amiga de Rosa e uma das colaboradoras do projeto de iniciativa da ordem religiosa dos franciscanos na Galícia para combater a epidemia silenciosa da solidão, que se estende sem freio nos lares ocidentais.

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Enquanto no Reino Unido o Governo acaba de criar uma Secretaria de Estado contra a Solidão, em Betanzos foi colocado à disposição o convento de San Francisco de Betanzos – sem vida desde que há dois anos as últimas freiras residentes cruzaram a porta – para criar uma família com pessoas “que estejam ou se sintam sozinhas”. Os participantes passariam o dia nas instalações, tomando café da manhã, almoçando e jantando, compartilhando a lavanderia e os gastos, fazendo companhia uns aos outros.

“Não se trata de uma unidade de atendimento à terceira idade nem de beneficência, nem de um local social, mas de um espaço de autogestão que não se financia com subvenções e no qual queremos imitar o ambiente de uma família qualquer, com liberdade para entrar e sair sem compromisso e sem exigências de vínculo religioso”, explica o frei Enrique Roberto Lista sobre um projeto aberto a moradores de qualquer prefeitura e cujos responsáveis gostariam de estender no futuro a outros edifícios eclesiásticos vazios, como as casas sacerdotais das paróquias.

Adela, de 80 anos, passava o tempo “fechadinha num canto” em sua casa, “chorando sozinha”, mas agora deu o passo de entrar no projeto: “Estou há 15 anos sem minha mãe e 38 sem meu pai. Participar deste projeto me encanta, porque nos faz trabalhar e nos distrai. Estou com companheiros que passam pelo mesmo que eu”.

Se no Brasil o número de pessoas que vivem sós duplicou entre 2005 e 2015, sobretudo entre as com mais de 60 anos, segundo o IBGE, na Espanha a situação não é melhor. Ali vivem sozinhas cerca de 4,5 milhões de pessoas, segundo os dados apresentados pelos franciscanos. Mais de 70% das almas que habitam esses lares sofrem de solidão, um mal que afeta igualmente mais da metade de quem tem companhia em suas casas.

O projeto começou a ser posto em prática em Betanzos com nove mulheres e, conforme explica a trabalhadora social Antía Leira, vem enfrentando dificuldades para superar “o estigma da solidão, a vergonha”. “É difícil para as pessoas que a sofrem reconhecer a situação e até mesmo identificá-la porque muitas vezes convivem com alguém”, afirma Leira. “É uma necessidade oculta: todo mundo admite o problema, e as notícias de idosos que morrem sem que ninguém fique sabendo se multiplicam, mas custa dar o passo para combatê-la.”

Uma solidão mais uma solidão é companhia, o remédio para o problema está nas pessoas que sofrem esse mal”, observa o frei Lista, criador do projeto, enquanto no refeitório deste convento do século XIV os primeiros membros passam um ao outro a cafeteira e as bandejas de biscoitos e bolos. A amiga de Pilar que se sente tão sozinha ainda não deu o passo para se integrar a essa família postiça: “É desconfiada e retraída, e isso lhe custa, mas eu lhe digo que isto seria fantástico para ela se oxigenar.”

Entre os sofredores de solidão, o que preocupa é o grupo dos homens recém-divorciados, especialmente refratários a pedir ajuda. Ramón, de 67 anos, enfrentou há cinco anos seu terceiro rompimento matrimonial e desde então luta diariamente para preencher o tempo livre de modo a se esquivar do vazio. “Os humanos foram pensados para viver em sociedade, precisamos de alguém a quem dar afeto. Mas ao mesmo tempo relutam em compartilhar experiências como esta porque acreditam que não têm por que contar sua vida aos outros”, afirma.

A tristeza pelo isolamento social não é um achaque só da idade. “Há pessoas muito jovens que também estão sós”, diz Adriana García, colaboradora do projeto. “Esta sociedade te empurra para a solidão. Há menos filhos, a família se dispersa, por um lado as tecnologias te conectam, mas por outro te levam a se fechar... E há jornadas de trabalho que não te deixam tempo para a amizade e a família. Racionalizar os horários seria uma grande contribuição para combater este mal.”

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