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Crítica
Género de opinião que descreve, elogia ou censura, totalmente ou em parte, uma obra cultural ou de entretenimento. Deve sempre ser escrita por um expert na matéria

‘A Forma da Água’: Um ‘A Bela e a Fera’ sem bela e sem fera

Guillermo del Toro colhe um sucesso monstruoso com a estreia de seu novo filme

Cecilia Ballesteros
Cartaz de ‘A Forma da Água’.
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A estreia de A Forma da Água, o novo e premiado filme do mexicano Guillermo del Toro, forte candidato a várias estatuetas no próximo Oscar, foi um sucesso monstruoso no México (no Brasil, poderá ser visto a partir desta quinta-feira, dia 1º). Impossível conseguir entradas no México, embora em várias salas da capital mexicana haja sessões quase de hora em hora. Quando se consegue o disputado ingresso, o longa deixa o espectador grudado na poltrona durante duas horas que passam como um suspiro, em parte graças a uma magistral direção de arte, num filme que combina o gênero de espionagem, a ficção científica, o hiper-realismo, o romantismo, a comédia musical e os contos de fadas, tudo isso salpicado com referências a filmes antigos, séries de televisão da sua infância, HQs e inclusive um certo humor gore tarantinesco.

Del Toro resgata assim a quintessência do seu cinema (depois de Círculo de Fogo e A Colina Escarlate, mais hollywoodianos) e retoma o caminho de O Labirinto do Fauno, só que, em vez do pós-Guerra Civil Espanhola, situa a história na América do Norte do começo dos anos sessenta, em meio à histeria e ao paroxismo da Guerra Fria contra o inimigo soviético, num país em plena luta pelas liberdades civis, onde os gays e os diferentes não têm lugar numa sociedade aparentemente idílica, mas que, por baixo do pano, esconde a caça às bruxas, a intolerância e o ódio ao outro. Embora o filme tenha sido rodado antes que Donald Trump chegasse à presidência, isso tudo não soa familiar?

Diferentemente de Ofelia, que se emancipa quando conhece o fauno, aqui é o amor por uma criatura que não é extraterrestre, e sim um ser aquático encontrado na Amazônia (com o mesmo ator em ambos os casos, Doug Jones), o que redime Elisa (a magnética Sally Hawkins) da sua insignificante existência como faxineira em um centro secreto de pesquisas governamentais de Baltimore. Uma mulher muda, não só porque não fala, mas porque está sozinha no mundo, sem outra companhia além de um vizinho homossexual e solitário (o magnífico e tenro Richard Jenkins), sua amiga afro-americana e colega de trabalho Zelda e um cientista russo infiltrado que quer sabotar os planos dos norte-americanos, todos freaks em um mundo perfeito, minoritários em um país que não os admite. Elisa e O Ativo, como é chamado, protagonizam uma versão de A Bela e a Fera que representa uma transgressão moral nunca vista no cinema, na qual, além disso, a bela não é bela, e a fera não é fera, e sim muito mais humana que os humanos que a cercam.

O ponto de partida da história é, para a crítica, o clássico da Universal O Monstro da Lagoa Negra (1954), em que um grupo de expedicionários norte-americanos encontra na Amazônia uma criatura metade peixe e metade humana. Del Toro revira essa história e mostra esse ser como alvo da crueldade de um personagem odioso, interpretado por Michael Shannon, um grande vilão que cumpre ordens, longe de uma caricatura maniqueísta como ocorre em tantos filmes norte-americanos.

Denúncia de uma sociedade cheia de monstros reais como a que vivemos agora, A Forma da Água é talvez uma das histórias de amor mais emocionantes, insólitas e poéticas (às vezes quase muda, como O Artista, às vezes com toques de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain) já vistas na tela, e também propõe uma pergunta inquietante, que Del Toro deixa, como outras, sem resposta: Por que, como já ocorria na mexicana Camino a Marte, em vários filmes deste século as mulheres encontram o amor em seres de outro planeta, ou pelo menos em seres não humanos?

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