_
_
_
_
_

Donald Trump: o dia a dia de um presidente em chamas

Desmedido e ególatra, presidente dos EUA transforma seu mandato em espetáculo global

Jan Martínez Ahrens
Donald Trump dança com a esposa, Melania.
Donald Trump dança com a esposa, Melania.REUTERS

Donald Trump é direto. Entra em qualquer discussão sem preliminares. Curto e grosso. As apresentações o aborrecem. Odeia os relatórios longos. Nada de circunlóquios. Tudo tem de ser metabolizado rapidamente. Uma estratégia política cabe em um tuite; um acordo, em uma conversa. Não existe nada que não possa ser reduzido, compactado, exibido. Por isso ele adora o Twitter. E mais ainda a televisão. Segundo os relatos mais rigorosos, Trump passa pelo menos quatro horas por dia diante de alguma tela. Aprecia, em especial, a TV de tela plana que mandou instalar na copa, e todas as manhãs a primeira coisa que assiste é o programa conservador Fox and Friends. A partir daí, começa a esquadrinhar, não ainda o que acontece no mundo, mas sim o que o mundo pensa dele. E, se não gosta de alguma coisa, esbraveja. E, quando esbraveja, ninguém escapa. Seu gabinete, seus generais, seus adversários, todos ficam sabendo na mesma hora.

Mais informações
Trump dispensa Steve Bannon, seu estrategista de extrema direita
Ivanka e Jared, o casal mais poderoso da nova Washington
Trump sobre imigrantes de El Salvador e Haiti: “Por que recebemos pessoas de países de merda?”

Já se tornou uma liturgia. De segunda-feira a sexta-feira, por volta das seis horas da manhã, às vezes com um Big Mac na mão e uma Coca-Cola light à espera, Donald Trump dispara a sua metralhadora no Twitter. Segundo a imprensa norte-americana, ele o faz ainda na cama, de pijama e quase sempre sozinho. A intimidade é uma coisa sagrada para ele. Não divide quarto com a esposa, Melania; e, desde que chegou ao número 1600 da Pennsylvania Avenue, exigiu, em vez do serviço de segurança, que se instalasse uma fechadura na sua porta. Ali dentro, com o televisor ligado e o celular na mão, o ex-rei dos reality shows exibe seus músculos.

Pode ser uma ameaça ao juiz que sustou o seu veto migratório, um ataque aos veículos de comunicação críticos a ele, uma acusação de espionagem dirigida a Barack Obama, um insulto contundente lançado contra a apresentadora Mika Brzezinski, um outro contra um jogador de futebol americano negro, um perdão ao xerife racista Joe Arpaio, uma invectiva contra o prefeito muçulmano de Londres em pleno atentado terrorista... O presidente dispara tuites como se estivesse em uma barraca de feira livre. Incansável, apertou o gatilho 2.300 vezes em apenas um ano. Os fake news (notícias falsas), a Coreia do Norte, a Rússia, Hillary Clinton e o México ocupam os primeiros lugares. São suas obsessões e também uma amostra aberta que o reflete com toda nitidez.

Antes de qualquer coisa, Trump acredita em si próprio. Pouco importa o fato de que nunca tenha ocupado antes nenhum cargo político. Se questionam o seu equilíbrio mental ou sua forma de se expressar, reage dizendo ser “um gênio”. Se tripudiam sobre sua idade, fulmina o interlocutor, como fez com o líder norte-coreano Kim Jong-un chamando-o de “gordo e baixote”. É um mecanismo previsível. Não hesita, não silencia, não transige. E, quando sente alguma ameaça, ataca. “Se alguém ataca você, ataque-o de volta dez vezes. Assim, pelo menos você se sente bem”, defendia Trump quando dava aulas sobre como vencer no mundo dos negócios.

Pode ser que essa forma feroz de atuação lhe tenha rendido muito sucesso em sua época de tubarão do setor imobiliário. Mas, desde que atravessou o portão da Casa Branca, em 20 de janeiro de 2017, ela faz o mundo estremecer. “Sua autoestima é um perigo. Quando se sente ofendido, reage impulsivamente, construindo uma narrativa de autojustificativa que independe dos fatos e que é sempre voltada para responsabilizar terceiros”, escreveu Toni Schwartz, o homem que atuou como sua sombra durante mais de um ano e que escreveu A arte da negociação, best-seller autobiográfico de Trump.

Essa tendência se acentuou. Aqueles que achavam que sua chegada à Casa Branca o domesticaria se enganaram. Aos 71 anos de idade, com cinco filhos, nove netos, 500 empresas e uma fortuna superior a 3,5 bilhões de dólares, Trump continua a agir de forma selvagem e totalmente à solta.

“Ele é perigosamente instável para alguém que tem a responsabilidade nuclear. Não suporta uma crítica banal, e muitas de suas respostas tendem a expressar um comportamento violento”, explica Bandy X. Lee, professora da Faculdade de Medicina de Yale, que fez um enorme barulho nos EUA ao pedir, juntamente com outros 27 psiquiatras, que Trump seja submetido urgentemente a um exame psicológico. Trata-se de um pedido que, embora minoritário e carente de apoio por parte da Sociedade Americana de Psiquiatria, levou um grupo de parlamentares --todos eles democratas, com apenas uma exceção— a se encontrar com a professora Lee. Por trás dessa reunião estava o desejo da oposição de atacar Trump, mas também a perplexidade provocada pelo seu comportamento.

Educado por um pai implacável, Trump vive sob uma tensão permanente. Diferentemente de seu irmão mais velho, que morreu de coma alcoólico aos 42 anos, ele resistiu. “Fui colocado nos negócios muito jovem; meu pai me intimidava, como fazia com todos, mas eu continuei ao lado dele e conquistei o seu respeito. Nossa relação era quase profissional”, afirma em A arte da negociação.

Forjado sob uma rigidez total, a vida se tornou, para ele, um puro combate. Um sistema binário em que só se ganha ou se perde. “Ele está em guerra com o mundo e só enxerga uma saída: dominar. É na conquista que Trump adquire sentido para si mesmo”, observa Schwartz.

A consequência de tal atitude é que, longe de adotar a postura olímpica de certos presidentes uma vez vencidas as eleições, o bilionário continua em campanha. Não há um só dia em que não distribua agrados a seus apoiadores e deprecie os opositores. Os mexicanos, os democratas, os republicanos fracos. Tem uma bala na agulha voltada para todos eles. Como mostra uma enquete do The Washington Post, em seu mandato a polarização social atingiu o mesmo nível registrado durante a Guerra do Vietnã. Essa fratura constitui, até o momento, o seu maior legado e o abismo do qual, previsivelmente, emergirá a sua Nêmesis.

Um outro efeito disso tudo é de ordem interna. Segundo relatos jornalísticos, a Casa Branca virou uma panela de pressão. Homem educado na busca de rentabilidade imediata, ele engole seus colaboradores. Grita com eles nas reuniões e fulmina aqueles que falham. Tombaram neste ano vertiginoso o conselheiro de Segurança Nacional, Michael Flynn; o chefe de gabinete, Reince Priebus; o porta-voz, Sean Spicer; o diretor de Comunicações, Anthony Scaramucci; e o estrategista-chefe, Steve Bannon. Outras figuras tão poderosas quanto essas, como o procurador geral, Jeff Sessions, e o secretário de Estado, Rex Tillerson, se encontram na corda bamba e já foram atacadas publicamente pelo presidente.

Dos que estão sob sua égide direta, encontram-se a salvo apenas um pequeno grupo de militares (Trump é apaixonado pelos galardões), sua filha mais velha, Ivanka, e seu genro, Jared Kushner. O restante sabe que pode cair a qualquer momento. E o motivo pode ser inconfessável. O diplomara John Bolton, segundo o polêmico livro Fogo e Fúria, do jornalista Michael Wolff, foi descartado para o posto de conselheiro de Segurança porque Trump não gostava do seu bigode. Colaboradores mais próximos, por seu lado, foram tripudiados abertamente: ele odiava o fato de Priebus ser baixinho, a forma de vestir de Spicer e de Bannon, o “constante choramingo” da conselheira Kellyanne Conway e até mesmo a adulação pegajosa do próprio Kushner.

“Mais cedo ou mais tarde, todos que estão com Trump acabarão enxergando um lado de si mesmos que os levará a se perguntar por que optaram por trabalhar com ele”, escrevem no substancioso livro Deixe Trump ser Trump dois antigos (e demitidos) assessores de campanha, Corey Lewandowski e David Bossie.

Diante de características como essas, a pergunta que ocorre é óbvia. Como Trump conseguiu ganhar as eleições e se conectar com seus quase 63 milhões de eleitores? Seus defensores enaltecem a sua transparência. Dizem que Trump não esconde o seu lado humano e que é sincero em suas manifestações. Odeia e ama. Grita e aplaude. Segundo essa visão, ele não aspira a uma imagem edulcorada, mas exibe as suas entranhas ao público como ninguém jamais havia feito antes.

Isso gera entusiasmo entre os seus eleitores mais radicais. E afasta seus detratores. “Não mudou quase nada em relação ao que era na campanha. Provoca divisões, e seu objetivo é manter a sua base”, afirma o presidente do Comitê Nacional Democrata, Tom Pérez.

Indo contra toda a tradição presidencial norte-americana, Trump deixou de lado o objetivo de governar para todos. Venceu como uma figura marginal e continua agindo, ao menos na superfície, como tal. Essa heterodoxia o ajuda perante seu núcleo duro, que não o enxerga como aquele monstro descrito pela imprensa progressista. Ao contrário, a agitação excessiva de uma certa esquerda irrita muitos conservadores. “A maioria das pessoas que o detestam não conhece ninguém que trabalha com ele ou que o apoia. Tira informações de outros que também o detestam, o que é uma fórmula perfeita para a clausura epistêmica”, escreveu o comentarista conservador David Brooks.

Para os seus, o presidente é basicamente um sujeito simpático e resoluto. Imagem que ele procura aprimorar abrindo, vez por outra, o seu coração. Por exemplo, quando está com crianças, momento em que se mostra como um avô brincalhão, ou ao recordar seu irmão falecido. Mas o que excita realmente a sua base é quando ele mostra a cara.

Trump se vangloria de não fugir de entrevistas, nem mesmo com jornalistas críticos. A vibração pública o excita. Pode se reunir com uma dezena de parlamentares democratas decididos a lhe arrancar a pele e, sem aviso prévio, determinar que o encontro seja transmitido ao vivo para que o país inteiro o acompanhe. Quando se soube na Casa Branca que o procurador especial do caso da trama russa poderia querer interrogá-lo, manifestou seu desejo de fazer o depoimento em público e não por escrito.

Showman consumado, possivelmente busque através das câmaras a absolvição. E em muitas ocasiões a obtém. Mas a agitação jamais o abandona, tampouco o tubarão que carrega dentro de si. Vive em permanente competição consigo mesmo. Imune ao escândalo, tudo o que lhe importa é ganhar. Se Wall Street registra um dia histórico, faz questão de alardear aos quatro ventos que o mérito é dele; se o desemprego diminui, é a mesma coisa. Nesse sentido, tem mais abjeção pela derrota do que pela mentira. E prefere qualquer polêmica à admissão de um fracasso. Tanto é assim que, se um candidato que ele apoiara perde, Trump apaga os tuites que escrevera em sua defesa. Da mesma maneira, continua a não admitir que Hillary Clinton ganhou dele no voto popular, atribuindo esse fato a uma impossível fraude eleitoral.

Em ebulição constante, contou em um ano, segundo o The Washington Post, mais de 2.000 mentiras ou meias verdades. Um festival de irrealidade diante do qual uma parcela da população já deu o braço a torcer. “É incrível como o público se acomodou ao que ele faz. É o que mais chama a atenção na presidência”, comenta Julian E. Zelizer, professor de História e Questões Públicas da Universidade de Princeton.

Além disso, Trump pode entrar em erupção a qualquer momento. A incerteza é a marca de sua presidência. Nunca se sabe qual passo dará nem quais dentes irá mostrar. Pode participar de uma homenagem às minorias raciais e no dia seguinte chamar o Haiti, El Salvador e as nações africanas mais pobres de “países de merda”. “E ele não vai mudar. É um homem de 71 anos que passou a vida ludibriando as pessoas. A única coisa que pode acontecer é que se torne mais errático”, afirma o biógrafo e Prêmio Pulitzer David Cay Johnson.

Tampouco na intimidade as coisas se alteram. São conhecidas as broncas que dá em colaboradores e até mesmo o serviço de limpeza teme as suas manias. Germófobo reprimido, não permite que toquem nos objetos pessoais nem em seus controles remotos de televisão ou na sua escova de dentes, e ele mesmo arruma sua cama e decide quando os lençóis devem ser lavados. “Se minha camisa estiver no chão, é porque eu quero que ela esteja no chão”, chegou a dizer a funcionários da Casa Branca.

A residência oficial não o comove. Até agora, passou um terço do mandato em mansões particulares, seja na luxuosa Mar-a-Lago (Flórida), no seu clube de golfe em Nova Jersey ou em um complexo hoteleiro de sua propriedade em Virgínia. Quando decide ficar em Washington, foge da vida social e, diferentemente de Obama, quase nunca sai para comer fora.

Na Casa Branca, seu cardápio predileto varia entre um belo filé com fritas e um Big Mac com milk shake de chocolate. Coisa rápida e sem complicações. Em geral, odeia as refeições longas: detesta perder tempo com elas. Tempo é ouro, e ele é o seu ourives. Talvez por causa disso Trump tenha encurtado a sua jornada de trabalho na Casa Branca. Enquanto George Bush filho entrava no trabalho no comecinho da manhã e Obama a partir das nove, ele decidiu chegar às onze. “Às vezes parece que continua agindo como se não fosse governante e estivesse em um estúdio de televisão”, observa o comentarista Walter Shapiro.

A agenda é organizada por seu chefe de gabinete, o general John Kelly. Um mariner reconhecido por seu patriotismo, que conseguiu colocar alguma ordem em seu entorno caótico. O presidente lida com relatórios, reuniões e declarações em contato permanente com Kelly e sempre bebendo Coca-Cola light (são 12 por dia).

Não há unanimidade em relação às suas qualidades. Em Fogo e fúria, ele é pintado como um “garotão”, ignorante, e com uma capacidade de concentração tão pequena que, quando um assessor quis lhe explicar a Constituição, não conseguiu ir além da quarta emenda. Outros depoimentos falam de uma pessoa que, na verdade, cobra brevidade e argumentos claros. Lembram que, no primeiro semestre do ano passado, quando decidiu abandonar o Tratado de Livre Comércio do Norte, seu secretário da Agricultura conseguiu convencê-lo a não dar esse passo com um mapa que mostrava as regiões que tinham votado majoritariamente nele e que sofreriam com essa decisão. “Não podemos fazer isso com os produtores rurais”, concluiu o presidente.

Concluída a jornada de trabalho oficial, o jantar costuma ser servido às sete da noite com convidados filtrados por Kelly. Embora o cardápio possa ser amplo, o filé com batatas fritas está sempre à disposição. Depois disso vêm as horas mais incertas.

Mantém-se ativo até a meia-noite. Sempre sobram telefonemas, reuniões ou conversas, mas pouco a pouco os funcionários mais próximos vão se retirando e o mandatário fica sozinho. As telas ligadas, os tuites cada vez mais constantes. O mundo gira e Trump se prende à televisão. Para assistir ao seu próprio show.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_