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“Perder Evo Morales seria um suicídio político”, diz vice-presidente da Bolívia

García Linera afirma que o presidente é “a personificação da unificação do popular”

Álvaro García Linera, em 2015.
Álvaro García Linera, em 2015.ricardo gutiérrez

Inseparável companheiro de Evo Morales durante os últimos 12 anos, o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera (Cochabamba, 1962), não buscará uma nova reeleição em 2019, mas acredita que é imprescindível que Morales o faça, pois sua capacidade para “unificar os subalternos” — diz — não pode ser perdida “pelo apego morto à palavra institucional da democracia representativa”.

Pergunta. Diz que não há contradição entre o resultado do referendo de 2016, que não autorizou uma nova reeleição do presidente, e a recente sentença do Tribunal Constitucional, que a autorizou. Qual é seu argumento?

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Resposta. Em 2015 se pensou em modificar um artigo da Constituição, o 168, que estabelece um limite à reeleição de um candidato presidencial. O procedimento constitucional exige que a Assembleia Legislativa apresente um projeto de lei para modificar este artigo e o leve a referendo, o qual foi organizado em 2016, em 21 de fevereiro. Por uma margem mínima, de 51 contra 49%, as pessoas disseram não, que esse artigo não deveria ser modificado. Então, a Assembleia, que era a encarregada de aplicar o resultado do referendo, o que fez foi suspender a lei de modificação do citado artigo em cumprimento da decisão vinculante do soberano. O referendo foi realizado: por isso não se modificou o artigo 168 da Constituição.

Um ano e meio depois, surge outra iniciativa da bancada majoritária da Assembleia Legislativa que já não se refere ao artigo 168, mas que afirma que não se pode estabelecer limites ao direito político que as pessoas têm de participar de eleições. A Constituição estabelece a primazia dos acordos internacionais sobre a própria Constituição. Então, se levou ao [tribunal] Constitucional que não deveriam ser estabelecidos limites para que uma pessoa se candidate, em cumprimento ao Pacto de San José sobre direitos humanos. E o Constitucional, que é o único intérprete da Constituição, estabeleceu que isto é correto. Com base nessa consulta da Assembleia e desta resposta do Tribunal, várias autoridades atuais, entre as quais o presidente, se quiserem candidatar-se de novo podem fazê-lo em 2019. Desta maneira, o Tribunal Constitucional igualou a situação boliviana com o que estabelecem outras constituições do mundo, como a da Alemanha ou a da Espanha. O único limite é o voto, que decidirá se o povo aceita que uma autoridade volte ou não.

P. Como teórico social, o senhor esboçou uma polaridade entre um “poder constituinte”, que é o poder das pessoas de refazerem a sociedade, e um “poder constituído”, que é o aparato normativo e a institucionalidade estabelecida. Para habilitar o presidente, o MAS — o partido de Morales — recorreu ao Constitucional ao mesmo tempo que deixou de lado o dito pelo poder constituinte no referendo. Não vê uma contradição entre estes eventos e a primazia que antes o senhor conferia ao poder constituinte?

R. Não. O poder constituinte foi a sublevação do povo, em 2001, 2003, 2005, que se expressou na votação em Evo, em um índio, algo inédito. Foi eleito o que era considerado desqualificado, inepto, para ser autoridade. As classes dominantes estão no poder porque podem exercer um comando unificado e articulam em torno dele as classes subalternas, que por definição são classes fragmentadas. Então, uma revolução é o momento em que os subalternos abandonam sua subalternidade porque se unificam. O interessante é que a pessoa que permite a unificação e lhe dá corpo visível, palpável, é Evo. Um como eles, de seu mesmo sangue, de sua mesma cor... E então a pergunta que um revolucionário se faz é: aquele símbolo da Constituição do popular, aquele símbolo que expressa a ruptura da subalternidade, por que deixá-lo ir? Por que agora? Se a gente se apega estritamente às formas institucionais, corresponderia a deixá-lo ir. Mas se a gente se apega ao núcleo ígneo do popular em movimento, do popular unificando-se, é um grande erro perder aquilo que se consegue a cada 100 ou 200 anos, a unificação, em benefício de uma leitura digamos plana do institucional.

Em outras palavras: a lógica do poder constituinte continua prevalecendo na candidatura de Evo, porque Evo é a personificação da unificação do popular.

P. Isto se dará enquanto Morales viver?

R. Cuidado, não foi algo que nós tenhamos buscado. O ideal é uma renovação geracional e coletiva destas lideranças fortes. Mas pela adversidade em que nosso poder nasceu, nestes 10 anos não nos preocupamos com o assunto. Agora temos sete anos para isso. O objetivo é que em 2024, quando houver novas eleições, possamos ter líderes substitutos de Evo e uma estrutura coletiva muito mais sólida que a que temos.

P. As pesquisas indicam que o senhor é o melhor candidato do MAS depois de Morales. O que diz é uma renúncia?

R. Não. Simplesmente uma reafirmação de meu ser individual e intelectual. Eu lutei para que os índios chegassem ao poder. Não para que Álvaro García o faça, porque Álvaro García não é índio. Nunca buscou substituir, representar, nem quis se disfarçar. Ele sabe qual é sua condição social. Então não há renúncia pessoal. Álvaro García jamais imaginou, seria um contrassenso, seria uma espécie de traição a meu ser revolucionário, assumir um cargo presidencial.

P. O senhor escreveu o livro Democracia, Estado y Nación, onde diz que a democracia não são regras, que estas podem mudar desde que haja progressos na igualdade. Seus rivais são partidários da democracia como cumprimento de regras e por isso disseram que depois da sentença do Constitucional o país entrou em um momento não democrático. Alguns até falam de ditadura, totalitarismo...

R. A maioria dos que usam o conceito de totalitarismo nem sequer leu a primeira página do livro de Hannah Arendt sobre o tema [As Origens do Totalitarismo]. Usam a palavra como um clichê que não entendem. Outros têm um apego meramente procedimental ao democrático, como ensinam [Norberto] Bobbio e [Giovanni] Sartori. Nós sempre defendemos a democracia como algo mais, como a igualdade das oportunidades das pessoas para decidir, para participar nos assuntos comuns. Igualdade cultural e política, não só econômica, no acesso a bens e oportunidades. Adoro a definição de [Jacques] Rancière: ‘há democracia quando os que se considera que são incapazes de exercer os cargos sãos os que os exercem’. É fantástica. Por isso digo: como os subalternos vão deixar escapar seu símbolo de unificação? Seria um suicídio político. O subalterno passa 98% de sua história fragmentado: quando vive o 2% unificado, seria uma loucura que o deixe passar por um mero apego morto à palavra institucional da democracia representativa.

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