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O DNA de uma menina reescreve a história dos primeiros americanos

Restos de 11.500 anos encontrados no Alasca pertencem a um povo até agora desconhecido

Miguel Ángel Criado
Descoberta dos restos arqueológicos da menina em Upward Sun River, no Alasca.
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Uma menina está reescrevendo boa parte da história dos primeiros americanos. Seus restos, encontrados no Alasca, têm cerca de 11.500 anos. Um grupo de pesquisadores conseguiu obter seu genoma completo. Ao compará-lo com o de nativos americanos, tanto ancestrais como atuais, concluíram que pertencia a um povo desconhecido até agora. Mais importante: os genes da garota indicam que os primeiros americanos são mais antigos e vieram da Ásia antes do que se pensava.

A teoria mais aceita sobre os primeiros americanos é que atravessaram da Ásia para a América pela Beríngia, uma ponte terrestre que ficou submersa no final do último período glacial. O que não está tão claro é se aqueles primeiros colonos pertenciam ao mesmo grupo ou se vieram em diversas ondas migratórias. Tampouco se sabe ao certo quando atravessaram e o que aconteceu nos milênios seguintes até que se formou a enorme diversidade genética, linguística e cultural dos atuais nativos americanos.

“Em 2015, mostramos que os ancestrais dos nativos americanos entraram numa única onda vindos da Sibéria e que foi na América que se dividiram em dois grandes ramos”, afirma o pesquisador Víctor Moreno Mayar, do Museu de História Natural da Dinamarca, especialista em paleogenética. O trabalho, publicado na revista Science, apontava que a divisão americana ocorreu há cerca de 13.000 anos, quando os gelos do último período glacial estavam em retirada. Agora, um novo estudo liderado por Moreno revela que a menina do Alasca era uma nativa americana, “mas seu DNA nos diz que fazia parte de uma população externa, diferente dos outros dois ramos”.

Os pesquisadores puderam sequenciar o genoma completo da menina

A menina, batizada de Xach'itee'aanenh T'eede Gaay (Menina-Criança do Nascer do Sol), só viveu entre seis e 12 semanas e foi enterrada nos arredores do rio Upward Sun, na parte central do Alasca. O sítio arqueológico já deu alguns frutos, como o registro mais antigo do consumo de salmão em solo americano. Sua datação por radiocarbono a situa como um dos fósseis humanos mais antigos localizados mais ao norte. Mas são os seus genes que mais alegrias deram à ciência. Como os cientistas contam com os dados de todo o seu genoma, seu DNA se transforma num ponto de referência muito robusto na hora de compará-lo com o de outras populações do passado.

Considerando mecanismos de diferenciação como a deriva genética, o fluxo de genes entre grupos e a taxa de mutações, os pesquisadores conseguiram um relógio biológico muito preciso, cujos resultados foram publicados na revista Nature. Assim, a equipe confirmou que os ancestrais dos primeiros americanos começaram a se diferenciar de outros povos asiáticos há mais de 36.000 anos. Doze milênios depois, o isolamento era completo. E se fortaleceu porque foi quando a era do gelo mais recente atingiu o seu máximo glacial. Poucas regiões do Hemisfério Norte ficaram livres de gelo e com presença humana. “A menina nos diz também que, há 20.000 anos, os nativos americanos já eram americanos”, afirma Moreno. Estivessem onde estivessem (na Ásia, América ou entre os dois continentes), naquele momento já eram geneticamente diferentes dos asiáticos.

“O que não sabemos é onde se originou a linhagem americana”, reconhece o cientista. Mas a Menina-Criança do Nascer do Sol volta a dar pistas. Seus genes mostram que, depois de sua separação inicial, seus antepassados mantiveram contato (houve fluxo genético) com as outras populações americanas. E para isso deviam estar na mesma região, provavelmente ao norte da gigantesca camada de gelo que cobria quase todo o atual Canadá e boa parte dos EUA. Na época, a corrente do Pacífico Norte fazia do Alasca um lugar mais habitável e livre de gelo perpétuo.

Ilustração de como seria o povoado da Menina-Criança do Nascer do Sol.
Ilustração de como seria o povoado da Menina-Criança do Nascer do Sol.Eric S. Carlson y Ben Potter

Sobre a relevância do estudo, Eske Willerslev, pesquisador das universidades Cambridge (Reino Unido) e Copenhague (Dinamarca) e coautor do trabalho, afirma: “Foi possível mostrar que [os primeiros americanos] provavelmente entraram no Alasca há pouco mais de 20.000 anos. É a primeira vez que temos uma evidência genética direta de que todos os nativos americanos podem ser rastreados até uma única população de origem, por meio de uma única migração fundadora.”

As palavras de Willerslev, assim como toda a pesquisa, confirmam parte da conhecida hipótese do isolamento na Beríngia. Postulada em 2007, ela sustenta que os ancestrais dos primeiros americanos se isolaram de suas origens durante milênios e que aquela população fundacional encontrou refúgio numa zona desconhecida situada no encontro entre a Ásia e a América, hoje submersa sob o Estreito de Bering. O estudo da Nature confirma o isolamento durante milênios, mas não onde ele ocorreu.

Ainda não se sabe onde se formou a população fundacional dos primeiros americanos

“Onde viveu essa população isolada de ancestrais nativos americanos há mais de 15.000 anos? A questão se complica pelo fato de que esse período de isolamento ocorreu durante o último máximo glacial, quando as condições eram tão frias e secas no Hemisfério Norte que as populações humanas de muitos lugares, como a Sibéria, tiveram que abandoná-las devido ao clima extremo”, recorda o cientista John F. Hoffecker, do Instituto de Pesquisa Ártica e Alpina da Universidade do Colorado em Boulder (EUA).

Para Hoffecker, que não participou do estudo atual, a pesquisa, embora relevante, peca por não reconhecer a existência de pistas sobre a presença humana em diversas partes da Beríngia muito anteriores (de 30.000 a 25.000 anos atrás). “Como não temos DNA antigo dessas zonas, não sabemos se eram na verdade nativos americanos ancestrais, mas não é ilógico supor que fossem e, portanto, que se tratasse da população que ficou isolada de sua origem asiática na Beríngia durante o último máximo glacial”, afirma.

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