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Crônica
Texto informativo com interpretação

Não como carne e nunca comi carne, nasci vegano

Assim é crescer sentindo aversão por esse alimento em um mundo dominado por carnívoros

O autor do artigo, com um terno feito de grama por ele mesmo.
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Bela Gil, a “vegetariana que come carne”

Não como carne, nunca comi carne. Sei que tenho pinta de ter comido alguns bifes, mas não é verdade, e vou contar a vocês como foi crescer tendo nojo de carne em um mundo carnívoro. Onívoros, podem ficar sossegados, pois não quero convencê-los a não comer carne e não vou mudar o mundo. Vou contar-lhes uma série de histórias e fatos, mas não de forma traumática, sei que é melhor não brincar com comida, mas isso é, como diriam em qualquer programa, algo que vem do coração: “Minha verdade”.

Certamente, ao ler o título, já terá gente desejando ver uma falha para dizer “mas as batatas são feitas com gordura animal...” ou “as gelatinas são feitas com tutano...”. Quando você não come carne, parece que todo mundo te odeia e procura qualquer pretexto para te dizer: “Você é como nós, você é fraco e não pode viver sem matar animais”. Enfim, vamos começar com as histórias. Não me lembro de ter comido carne, com exceção das gorduras animais das batatas fritas e do tutano da gelatina. Minha mãe me dizia que desde que eu era pequeno cuspia o presunto cozido, aquele primeiro contato que você tem quando criança com a carne. E, por outro lado, fui pego bebendo detergente com aroma de pinho, parece que eu sempre tive atração pelo verde. Obviamente, não me lembro disso. O menino que não quer comer carne, que cospe e vomita e para quem toda hora da refeição é um desgosto... Passei a infância entre médicos, tinha saído esquisito e era preciso que me “consertassem”.

“Já era maior e não podia comer carne se não fosse moída. Morder, cheirar ou apenas tocar num simples bife me faz vomitar e ter náuseas”

Fui muito ao pediatra. Não tinha problemas de saúde e tinha um hálito excelente com cheiro de pinho, mas o drama diário de “o que vamos dar a ele para comer” era preocupante. Já era maior e não podia comer carne se não fosse moída. Morder, cheirar ou apenas tocar num simples bife me fazia e me faz vomitar e ter náuseas. Carregamos a minha estranheza em segredo, era coisa privada, mas houve momentos em que era impossível escapar: casamentos, batismos e primeiras comunhões. Eu era pequeno demais para não ir aos casamentos e ficar sozinho em casa, então toda a família ia e chegava o momento fatídico de comer.

Era a década de noventa, a era das aberrações gastronômicas, como melão com presunto cru. Nunca comi presunto cru, é uma perna, e não gosto de melão porque é uma fruta que transpira. Mas eu comia com muito nojo as partes do melão que não haviam encostado no presunto cru, com uma habilidade quase cirúrgica para fazer uma dissecção da fruta. A prova estava quase no fim quando vinha o pior: os camarões. Aqueles bichos que cheiram a urina e, como não têm pálpebras, continuam te olhando mesmo depois de mortos. Eu tinha de disfarçar, não entendia por que todos gostavam tanto deles e eu nem conseguia tocá-los, mas por causa da pressão social começava a descascá-los e a encher o prato com pedaços do corpo camarão que continuavam a secretar aquele líquido com o cheiro de uretra. Obviamente, eu não comia nenhum, apenas fingia, se pode dizer que comia camarão em playback. Jamais provei um.

E depois de uma ótima performance, não havia lugar para fingir: “Cordeiro ou peixe?” Eu não queria ver um filé no meu prato. Enquanto isso, os adultos explicavam aos garçons que o menino não queria comer carne porque estava em uma fase esquisita (fase de 33 anos). Então sempre me ofereciam o prato infantil, o qual, como vocês sabem, consiste na mesma coisa, mas empanada e em fatias. E me traziam o mesmo filé (acho que era o mesmo em todos os casamentos) triturado, refogado e coberto de farinha de rosca. Além de me servir carne, tinha milhões de calorias vazias. Obviamente, o prato ficava intacto e eu fugia da mesa para roubar sorvetes de limão (então aprendi a superar os traumas com uma pequena dose de alcoolismo).

Assim foram todos os compromissos familiares daquela época, comendo átomos de melão sem presunto cru e com o playback dos camarões à espera da minha carne empanada. Às vezes me diziam: “Não é carne, é frango”. Acho que até hoje há pessoas que dizem: “Sou vegetariano, só como carne de frango”. Enfim.

O único animal que comia eram o cordon bleu e as lulas, estas últimas porque não sabia o que eram. No tempo da Sonic [série norte-americana exibida na televisão espanhola], que recolhia anéis, as lulas eram anéis apanhados na água, inertes e inanimados e, como não serviam para nada, eram fritos, comidos e ponto final... Ainda me lembro do dia em que soube como realmente as lulas eram preparadas. Adolfo [o psicólogo], meus pais e a mulher dos congelados Marisa tinham me enganado durante anos. Um drama.

A coisa não regredia, estranhamente crescia grandona e saudável, não sei quantos exames me faziam todos os anos em busca de problemas, mas parece que a gordura animal que a Matutano, a Panrico e a Tosfrit [marcas espanholas de batatas fritas] tinham estava cheia de proteínas. De fato, meus níveis de ferro sempre estavam um tanto altos. Embora minha saúde fosse normal, eu ainda temia a hora da refeição e causava desgostos, não conseguia me controlar e, além disso, era um menino muito reservado (que, paradoxalmente, conta tudo isso agora). Então fomos a um psicólogo. Ele se chamava Adolfo, dizia que era preciso fazer da refeição algo divertido, que é uma teoria que parece excelente, mas que não soubemos colocar em prática.

Para que a carne me divertisse, me colocaram diante daquele erro humano e genético que era a Mortadela do Mickey. Lembro-me de dezenas de mickeys deformados em fatias num prato, sorridentes, rosados e suados que, obviamente, nem conseguia olhar. Como você quer que eu coma o meu ídolo? Chorava vendo o Mickey em pedaços. Ainda hoje não consigo entender se aquilo era a própria carne do Mickey que era feita de fibra óptica ou não sei o quê. Sério, não entendo como colocavam a cara do Mickey na mortadela.

“Embora minha saúde fosse normal, eu ainda temia a hora da refeição e causava desgostos, não conseguia me controlar e, além disso, era um menino muito reservado (que, paradoxalmente, conta tudo isso agora)”

Depois do primeiro fracasso do Adolfo, tentaram algo mais chocante. Lembro-me de ir à casa do psicólogo para colorir animais que ele imprimia naquelas impressoras antigas que faziam desenhos no código ASCII. Ele me colocava pressão dizendo que eu tinha de comer na primeira comunhão, que todos estariam me olhando e essa ideia realmente me assustava. Mas, além de ser um pouco esquisito, eu era um rebelde porque nem com o medo de palco conseguiriam me fazer comer o Mickey.

Ao sair a cada dia da consulta, meus pais iam me buscar. Eu mostrava a eles o meu animal ASCII do dia muito orgulhoso. E a minha mãe, coitada, com esperanças, me dizia: “Oh, que lindo... amanhã comeremos cozido...”. E eu: “É muito bonito, o Adolfo fez para mim e não vou comer cozido na vida”. Que pena, meus pais fazendo um teste todos os dias para ver se eu já estava “consertado”. Esse é o peso de tudo isso, sempre incomodei meus pais sem saber por quê. Mas num daqueles dias saí com meu desenho e minhas cores e não havia ninguém na sala, a mulher do Adolfo apareceu e disse: “Seus pais não estão, você fica conosco...”. Foi temporário e nada ilegal ou obscuro. Para o Adolfo, “mudar o ambiente da criança” era bom e fiquei morando na casa do psicólogo por alguns dias. Ainda penso como isso deve ter sido difícil para os meus pais, minha mãe era a mulher que não me deixava atravessar a estrada sem supervisão quando eu era menino, quase até quando já podia dirigir um carro para ela...

Mas tudo bem, lá estava eu com meus sete aninhos, meus óculos, meus desenhos coloridos e minha boquinha de menino estranho fechada, pensando por que afinal o Adolfo tinha um televisor se estava sempre desligado. Então só me lembro de ter dito: “Posso ver televisão?” E o Adolfo respondeu carinhosamente: “Depois que todos nós jantarmos.” Fomos à cozinha e me serviram um pedaço de frango. Frango que, embora todos os garçons dos casamentos e os veganos por um dia não saibam, também é carne. Frango com batata frita, pois o Adolfo tampouco era muito ligado em dieta mediterrânea. Peguei o garfo e segurei a vontade de vomitar olhando pela janela.

A mulher do Adolfo era loira, com o cabelo cacheado. Minha mente fez com que ela se transformasse na atriz [espanhola] Esther Arroyo – é assim que me lembro dela. Era muito carinhosa, até excessivamente, a clássica senhora que te chama de “meu amor”, “minha vida”, “querido” e você não sabe se ela realmente gosta tanto de você ou se te chama assim porque não se lembra do seu nome... Esther Arroyo me dizia: “Experimente, coração”. E Adolfo completava: “Olha, segura a faca assim...”. Acho que não entendiam muito bem que eu conhecia o mecanismo, mas que não o levaria à prática de jeito nenhum.

Não sei quanto tempo passou, mas foi o suficiente para que Esther Arroyo e o Adolfo fizessem a digestão, com seus pratos limpos na mesa e comendo as migalhas de pão. E o meu prato lá, intacto... Só sei que havia passado tempo o bastante para que já eu não fosse “sua vida” nem “querido”. Agora me chamavam pelo nome. Me disseram que em 10 minutos retirariam os pratos e que eu já não poderia comer até o dia seguinte. Não entendiam que isso era justamente o que eu queria. E só lhes disse outra vez: “E agora posso ver televisão?” Retiraram o meu prato já sem sorrisos e fomos à sala, os três, com a tevê desligada como um castigo.

Certamente estraguei a noite deles. Tinham mais vontade de assistir à TV do que eu. Ninguém compra um televisor tão grande se não quer assistir. Como estávamos castigados, nos limitávamos a buscar, em silêncio, formas na tinta espessa da parede, como quem vê formas nas nuvens, só que no plano doméstico.

No dia seguinte, foi a mesma mecânica. Para o café da manhã, colocaram diante de mim um bife mais duro e tenso que minha relação com a falsa Esther Arroyo e, claro, cansaram-se de me ver esperar... o Adolfo foi atender outros meninos esquisitos, e ela ficou comigo. Eu não dizia uma palavra porque ela não tinha impressora de animais ASCII. E, cada vez que dizia alguma coisa, era para me embromar e colocar o bife na minha frente. Chegou a hora da comida, o bife já estava mais duro que o próprio prato, e acharam que era uma boa ideia cozinhar para mim algo novo e mais macio. Ou pelo menos tentar...

Tiraram um espaguete da sacola (uau!) para misturá-lo com carne moída (não tão uau...). Lá estava eu colocando o macarrão, que sabia que jamais comeria, na água fervendo e aguentando a vontade de dizer a Esther: “Quando colocar a carne, sabe que você tampouco assistirá à televisão?” Dito e feito. Foi só a carne cair no meu prato – e acho que todos éramos conscientes de que não haveria TV de novo...

“Tiraram um espaguete da sacola (uau!) para misturá-lo com carne moída (não tão uau...). Lá estava eu colocando o macarrão, que sabia que jamais comeria, na água fervendo”

Após outros minutos olhando fixamente para a tinta da parede, lembro que comecei a chorar... Queria ver meus pais, meus irmãos e [a série da televisão espanhola] Los Trotamúsicos, que faziam sucesso na época. E acho que Adolfo e Esther também queriam ver os Trotamúsicos porque não insistiram muito mais. Pouco depois apareceram meus pais, e a cena foi como se a primeira pessoa tivesse deixado a casa do Big Brother, esse exagero de sentimentos em que você pensa “bem, você foi por uma semana” ou “você foi numa sexta e demorou mais a voltar para casa”. No final, tudo voltava à normalidade. Eu voltava para casa após minhas aproximadamente 20 intermináveis horas sem TV e, claro, continuava sem comer carne.

Continuei assim, e já faz 25 anos. Espero que Esther Arroyo tenha podido assistir à sua televisão e que tenha um aparelho ainda maior com tanta chateação que causei. Não posso me estender aqui muito mais porque isso não é minha autobiografia, é só a infância, a parte mais complicada de minha vida, em que provoquei mais problemas. Era outra época e as pessoas sabiam menos, minha saúde era ruim mas entendo como meu caso era preocupante: impossibilidade ou simplesmente algo sem importância?

Nem eu mesmo soube muito bem, mas agora temos mais pistas. É um caso especial e existem outros semelhantes. Crianças que não querem comer, ver nem sentir o cheiro de carne. Parece que é uma questão de integração sensorial, que pode parecer grego mas que é fácil de entender: sabe a diferença entre usar camisinha e não usar? Pois bem: isso é como não ter nunca um preservativo colocado nos sentidos tato e paladar. Uma espécie de hipersensibilidade.

Não brinco com o tema da comida e dos transtornos alimentares. Neste caso possivelmente sensorial, conto minha história com humor justamente porque ela é minha e pessoal. Tudo isso foi um trauma e um segredo durante muitos anos. Se você não entende o que te acontece, não espera que todos os demais também entendam. Quem me dera não ter tido nenhuma história desse tipo para contar, pois significaria que não gerei tanto tormento para meus pais. Mas, simplesmente, foi assim que aconteceu.

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