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Cruzada conservadora contra a discussão de gênero nas escolas, agora também no Paraguai

Ministério da Educação proíbe textos que promovam a igualdade sexual no sistema público do país

Marcha LGTBI no centro de Assunção em julho de 2015
Marcha LGTBI no centro de Assunção em julho de 2015Santi Carneri
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Funcionárias da área social do Governo paraguaio criavam folhetos para a apresentação de um relatório sobre como frear a violência de gênero quando sua chefia as advertiu: “Tenham cuidado com a palavra gênero”. Depois as obrigou a apagá-la da convocatória, segundo contou ao EL PAÍS uma das trabalhadoras, que pediu o anonimato. Alguns dias antes, representantes de igrejas católicas e evangélicas exigiram do ministro da Educação do Paraguai, Enrique Riera, que eliminasse um guia para docentes sobre como promover a igualdade de gênero nas escolas. O ministro, que dirige um sistema educacional que ficou em último lugar tanto no ensino fundamental como na educação superior em uma lista de 140 países elaborada pelo Fórum Econômico Mundial, aceitou o pedido dos religiosos e lhes prometeu que, se fosse necessário, iria “queimar os livros” sobre “ideologia de gênero” em público para que confiassem nele. Riera, que rechaçou durante mais de um mês os pedidos de entrevista, suavizou mais tarde suas palavras em uma declaração por rádio e afirmou que exagerara. Mas 24 horas depois proibiu “a difusão e a utilização de materiais impressos ou digitais referentes à teoria e/ou ideologia de gênero” em todo o sistema educacional público do país.

Era o início de outubro e a campanha pelas disputas internas partidárias no Paraguai já tomava conta das manchetes. Dois grupos lutavam para ser candidatos à presidência do país nas próximas eleições gerais, em abril, pelo conservador e governista Partido Colorado. Riera, um cacique de família rica, formado no colégio particular mais exclusivo do Paraguai, queria mostrar seu apoio ao candidato do presidente Horacio Cartes, Santi Peña, em contraposição a Mario Abdo Benítez, um senador defensor da ditadura e sobrinho do secretário particular do ditador Alfredo Stroessner.

Assim como no Brasil, uma onda conservadora invade o Paraguai. Um deputado se declarou abertamente contra as organizações LGBTI e prometeu “lutar a favor das famílias em sua constituição original”. Seu lema de campanha foi “Deus, Pátria e Família”. O slogan foi usado em redes sociais pelo candidato governista, Peña. Outra ala do Partido Colorado apresentou um projeto de lei de “proteção à família” que diz que as pessoas não casadas não poderiam adotar porque seu “estilo de vida” não é adequado para criar filhos.

Em poucas horas, Cartes falou com o papa Francisco por videoconferência para promover “a importância da família” e o ministro da Educação viajou para um encontro pessoal no Vaticano. Até o Governo de um dos maiores municípios da região metropolitana de Assunção, Mariano Roque Alonso, decidiu declarar a cidade como “pró-vida” para “preservar e difundir os valores que sustentam a família”.

Ao mesmo tempo em que Assunção e todo o país eram tomados pela propaganda política e atos partidários, o Arcebispado de Assunção criava uma equipe especial dedicada ao exorcismo para “casos de possuídos pelo diabo” ou “forças obscuras”. Enquanto isso, a Conferência Episcopal Paraguaia avisava que iria também enviar representante a Roma para falar com o papa Francisco sobre a situação da “ideologia de gênero” no país.

A cruzada contra essa discussão encontra paralelo no Brasil. Em 2015, o Congresso conseguiu banir o termo "gênero" do Plano Nacional de Educação, por considerar que a palavra se referia a uma questão de ideologia. E agora se espalham pelo país iniciativas espelhadas no movimento "Escola Sem Partido", que prega o "fim da doutrinação" nas escolas. Entre os artigos do projeto, há a determinação de que o poder público vede, especialmente, "a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero" e diz que entre os deveres do professor está o respeito "ao direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções". O âmbito das questões "morais" se refere especialmente à sexualidade e isso inviabilizaria, por exemplo, as aulas de educação sexual nas escolas.

Perseguição

“É uma clara perseguição ao ensino da perspectiva de gênero. Têm pânico dessa palavra por pura ignorância. Inventaram a “ideologia de gênero” como instrumento contra o qual lutar para que os direitos LGBTI e da mulher não avancem”, diz a pesquisadora de políticas sociais Lilian Soto. Ela também é presidenta do Kuña Pyrenda, o primeiro partido político socialista, feminista e ecologista do Paraguai, que teve em 2013 duas mulheres como candidatas à presidência e vice-presidência do país.

Organizações internacionais como o Comitê da América Latina e do Caribe pela Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem), a Anistia Internacional e a Católicas pelo Direito de Decidir, entre muitas outras, clamaram contra a proibição do Governo paraguaio. Até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) manifestou sua preocupação pela proibição e a considerou “um retrocesso para os direitos das mulheres”. A Comissão também rejeitou que a perspectiva de gênero seja pejorativamente tachada de “ideologia de gênero”.

“Os programas educacionais com perspectiva de gênero e de diversidade sexual são indispensáveis para erradicar os estereótipos negativos, para combater a discriminação e para proteger os direitos de todas as pessoas”, disse a relatora da CIDH sobre os Direitos das Mulheres, Margarette Macaulay.

Enquanto acontecia tudo isso, a titular do Ministério da Mulher do Paraguai, Ana María Baiardi, viajava para Genebra, na Suíça, para representar o país no Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (Cedaw). Ali, Baiardi, que liderou avanços institucionais importantes nessa matéria, foi sincera: “Sou a primeira preocupada com essa questão. Estamos muito preocupados com o avanço regional desta má informação que chamaram de “ideologia de gênero”. A secretária de Estado afirmou que a resolução do Ministério da Educação deveria ser anulada. “Infelizmente, esse poder o Ministério da Mulher nunca teve”, acrescentou.

No Paraguai, organizações civis ultraconservadoras e religiosas nem sequer esperaram seu regresso para reivindicar sua demissão. Mas até agora não conseguiram.

A origem da intolerância

A intolerância em relação aos coletivos LGTBI não é novidade nesse país que viveu uma das mais férreas e longas ditaduras militares do Cone Sul, a de Alfredo Stroessner entre 1954 e1989. Em 1958, quando o locutor Bernardo Aranda apareceu assassinado e carbonizado num quarto alugado de Assunção a polícia atribuiu o crime a “um ajuste de contas entre homossexuais” e confeccionou uma lista de 108 homens a serem presos. Todos foram levados à delegacia e torturados sem ter relação alguma com o ocorrido. Desde então se usa no Paraguai a expressão "Pea ha'e 108", 'Esse é um 108', em idioma guarani, para se referirem depreciativamente a homens homossexuais.

Em 2013, durante a campanha presidencial, o atual presidente, Horacio Cartes, afirmou no rádio que daria um tiro nos próprios testículos se seu filho fosse homossexual. Em 2015, sendo o Paraguai o anfitrião da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), foi um dos poucos países da América que evitou aderir a uma resolução que condena a discriminação contra pessoas por sua orientação sexual. Além disso, o Paraguai é o único país da região que não possui uma legislação contra toda forma de discriminação.

Uma proposta de lei foi rejeitada no Congresso em 2014 sob o argumento dos legisladores mais conservadores de que uma norma assim abriria a porta à aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Um dogma repetido nos comunicados da Igreja católica paraguaia, que conseguiu incutir em grande parte da opinião pública a ideia de que esse tipo de lei atenta contra suas crenças. No entanto, o texto dispõe o mesmo que as leis já aprovadas em países como Chile, Bolívia e Argentina. Sem menção alguma à união entre pessoas.

A influência da religião

Embora o Brasil seja o país do mundo com mais católicos, o Paraguai é o país com a maior proporção de pessoas que professam essa fé em toda a América. Assim o faz 86,2% de sua população, segundo uma pesquisa realizada pelo projeto de Opinião Pública do Barômetro das Américas de 2012.

“A maioria católica do Paraguai é também um elemento central neste assunto. Melhor dizendo, a hierarquia eclesiástica que é profundamente conservadora com os direitos das mulheres. Uma Igreja católica que na ditadura era diferente, era onde nós que lutávamos por direitos podíamos nos refugiar”, lembrou Soto. Este ano foram registrados 49 feminicídios, dez a mais que no ano anterior, e quase o mesmo número que na Espanha, com uma população quase sete vezes maior.

Um padre paraguaio foi condenado este ano por abusar de dois meninos aos quais ensinava o catecismo, e pelo menos cinco sacerdotes argentinos denunciados por abuso sexual estiveram escondidos em território paraguaio, amparados pela Igreja local. Além disso, 54 transexuais foram assassinados desde 1989 sem que os casos fossem investigados, de acordo com denúncia da organização trans Panambi.

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