_
_
_
_
_

“O aborto e a sodomia tiraram o lugar da vida”: por que o velho sul americano deu as costas aos republicanos

Derrota de candidato radical acusado de abusos sexuais no conservador Alabama serviu de alerta para Trump. O resultado, no entanto, foi apertado

Amanda Mars
Partidários do democrata Doug Jones comemoram a vitória do senador eleito, na terça-feira, em Birmingham, a cidade mais populosa do Alabama
Partidários do democrata Doug Jones comemoram a vitória do senador eleito, na terça-feira, em Birmingham, a cidade mais populosa do AlabamaBill Clark (CQ-Roll Call,Inc.)

O juiz Roy Moore ganhou o apelido de Rochedo por volta de 2003. Dois anos antes, ao tomar posse como presidente da Suprema Corte do Alabama, Estados Unidos, instalou no saguão do edifício um monumento de granito de 2,5 toneladas contendo o texto dos Dez Mandamentos. Quando a Justiça Federal ameaçou retirá-lo por violar da separação entre Igreja e Estado, o magistrado preferiu renunciar. Depois voltou. Havia sido novamente escolhido para o cargo em 2013, mas a legalização do casamento gay em nível nacional foi demais para Roy Rochedo Moore, que proibiu os juízes subordinados a ele de emitirem as licenças matrimoniais a casais do mesmo sexo. O comitê de ética acabou por expulsá-lo da corte.

Mais informações
Trump sofre uma derrota crucial em Alabama pelas acusações de acosso a seu candidato ultra ao Senado
Vitória de Trump ressuscita velhos medos
Casamento igualitário conquista o conservador Sul dos Estados Unidos
Uma ponte de Selma a Ferguson

Na terça-feira passada, como candidato republicano ao Senado pelo Alabama, chegou a cavalo para votar, usando chapéu de caubói. Preparava-se em grande estilo para um novo regresso à arena pública. À noite, quando viu que tinha perdido a eleição para o democrata Doug Jones, recusou-se a aceitar a derrota e conclamou seus eleitores a deixarem o desenlace “nas mãos de Deus”. E, no dia seguinte, decidiu acompanhar a ação divina com algo mais tangível: começou a arrecadar recursos para bancar uma recontagem dos votos. Na mensagem aos seus correligionários, Moore deixou claro: “Hoje em dia já não reconhecemos mais a verdade universal de que Deus é o autor de nossa vida e da nossa liberdade. O aborto, a sodomia e o materialismo tiraram o lugar da vida, da liberdade e da busca pela felicidade”.

Moore se considera um cavaleiro da fé, e se há algo a reconhecer nele nesta semana é a sua capacidade de operar algo semelhante a um milagre: que o Alabama, reduto do conservadorismo religioso nos EUA, tenha elegido um senador democrata pela primeira vez em 25 anos. O último, Richard Shelby, em 1992, era tão descafeinado que dois anos depois passou às fileiras republicanas. Mas nesta terça-feira as placas tectônicas se moveram no velho sul: Jeff Plain, de 57 anos, votou em um político democrata pela primeira vez na sua vida; a republicana Madison Harvey, de 20, ficou em sua casa; Patricia Mokolo, de 45, viu uma das maiores mobilizações de eleitores afro-americanos de que tem lembrança, e até um senador republicano fez campanha pelo voto nulo. Esse senador, aliás, é o famoso Shelby de 1992.

O Alabama é um Estado de quatro milhões de habitantes, cheio de velhos conhecidos. Doug Jones, o democrata que acaba de se tornar senador, é um sujeito moderado, conhecido na sua terra por ter processado dois membros da Ku Klux Klan que perpetraram um atentado contra uma igreja batista de Birmingham em 1963, matando quatro meninas negras. “É que Jones era melhor, mas, sobretudo, eu não queria votar em Roy Moore”, explica Plain, diretor de projetos de uma fábrica de Huntsville. “Sou cristão e agradeço a sua fé, mas não estou de acordo com a postura que ele adota em muitas coisas, é um sujeito que não cumpre a Constituição. Por exemplo, é muito radical com os homossexuais, ao passo que eu não tenho problemas com o modo de vida deles.”

Roy Moore chega a cavalo para votar em Gallant, Alabama, na terça-feira passada
Roy Moore chega a cavalo para votar em Gallant, Alabama, na terça-feira passadaCARLO ALLEGRI (REUTERS)

Moore, de 70 anos, prega algo parecido com uma teocracia: defende que os Estados Unidos foram fundados com base no cristianismo e, portanto, que a Bíblia prevalece sobre a lei laica. Partindo desse princípio, afirma que a homossexualidade em si deveria ser punida judicialmente, como o bestialismo, acredita que um muçulmano não deveria poder ocupar um cargo público nos Estados Unidos, e que os atentados de 11 de setembro de 2001 tiveram algo a ver com o distanciamento dos norte-americanos em relação a Deus.

No começo de novembro, a imagem de Moore, também conhecido como o aiatolá do Alabama, sofreu um golpe inesperado: várias mulheres o acusaram de cometer assédio sexual contra elas décadas atrás, quando ele estava na faixa dos 30 anos, e elas eram menores de idade. Em Gadsen, seu povoado natal, alguns moradores começaram a relatar à imprensa que, de fato, naquela época ele foi barrado em um shopping center porque se dedicava a molestar adolescentes. Foi o golpe de misericórdia para a universitária Madison Harvey, que nas quatro vezes anteriores em que pôde votar optara pelos republicanos – inclusive em Donald Trump no ano passado. “Com essas acusações eu não podia votar nele, embora já não estivesse de acordo com o que ele pensa em outros assuntos, como o aborto”, contou.

Moore perdeu a disputa especialmente entre as mulheres. Cerca de 35% das eleitoras brancas que foram às urnas apoiaram o democrata, um bom resultado nesta parte do velho sul. No caso das afro-americanas, o apoio a Jones chegou a 98%. Patricia Mokolo, que trabalha na NAACP, a histórica organização de defesa dos direitos civis, diz que a mobilização de voto que obtiveram nessa comunidade foi assombrosa. “Acompanhei os resultados como se fosse um jogo de futebol, e quando Jones ganhou acordei todas as crianças, foi demais. Moore tinha muitos problemas, também raciais, como aquilo que disse sobre a escravidão.”

Ela se refere a um comício de setembro, quando um afro-americano perguntou a Moore o que ele entendia ser a “América grande” que Trump promete recuperar. O candidato respondeu que, para ele, a América grande era aquela dos pais fundadores, “na qual as famílias estavam unidas, embora houvesse escravidão”.

Palavras assim inflamaram os negros do Alabama, onde o trauma racial aflora literalmente a cada esquina da sua capital. Montgomery foi um dos principais mercados de escravos da América, com 164 intermediários registrados que compravam e vendiam homens, mulheres e crianças que viviam confinados em depósitos até que chegasse a hora de serem leiloados. Havia tantos depósitos de escravos como hotéis e bancos. Um dos principais ficava na rua Dexter (antiga rua do Comércio), a mesma onde Roy Moore promoveu na noite de terça a festa eleitoral que terminou como velório. A poucos quarteirões, um cartaz marca o ponto de ônibus onde Rosa Parks começou a luta contra a segregação dos negros.

O contabilista Daren Freeman, de 45 anos, republicano a vida toda, já havia decidido votar no democrata Jones antes mesmo que o escândalo eclodisse. “Moore dizia coisas com muita carga racial, ele representa uma relíquia do passado do Alabama, de um passado feio, quando disse aquilo do escravagismo”.

O resultado eleitoral da terça-feira disparou os alarmes para os republicanos com vistas à eleição legislativa geral de 2018, além de injetar um pouco de otimismo nos democratas, atualmente submetidos à maioria conservadora no Congresso e na Suprema Corte. Gordon E. Harvey, professor de História da Universidade de Jacksonville, diz que “se um democrata pode ganhar no hiperconservador Alabama, pode ganhar em qualquer lugar”, mas alerta que as coisas não mudam tão facilmente neste Estado sulista, e que “será muito difícil renovar essa vitória”. “Moore era um artigo defeituoso, e na próxima vez os republicanos não colocarão um candidato com tantas fraquezas”, observa Harvey.

Apenas 20.000 votos de diferença evitaram a vitória de Moore, que havia derrotado um republicano mais moderado, Luther Strange, nas eleições primárias. “O Alabama arrasta um longo e vergonhoso histórico de falta de apoio à educação pública, o que resulta numa postura reacionária e desinformada quanto às políticas raciais, de gênero ou de bem-estar social e, obviamente, persiste um racismo branco que cai muito facilmente na demagogia de políticos como [o ex-governador] George Wallace, Donald Trump ou Roy Moore”, afirma Allen Tullos, historiador da Universidade Emory.

Tullos é autor de Alabama Getaway, um livro muito crítico sobre o imaginário político do Estado e o conservadorismo radical. Na sua avaliação, “o fundamentalismo branco está vinculado historicamente a juízos de valor que se formam na infância”. “Os valores patriarcais, a teologia punitiva, o racismo, o sexismo e a homofobia se aprendem desde cedo na escola, na família e na igreja, e, uma vez aprendidos, passam de geração em geração, é muito difícil erradicá-los”, afirma.

Há quem tenha votado no juiz apesar de tudo isso, como é o caso de Barry, um ex-militar de 55 anos que discorda do seu fundamentalismo religioso, mas confiava em que a lei limitaria seus excessos, e preferia ver um republicano representando seu Estado em Washington. Há, por outro lado, quem o tenha apoiado justamente por suas ideias ultraconservadoras, porque, como dizia a aposentada Brenda em sua festa eleitoral, “nunca se é radical demais quando se está no lado certo”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_