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A madeira matriz de Santidio Pereira

Natural do Piauí, o artista que trabalha com xilogravura busca sua voz nas artes plásticas

Santídio Pereira prepara sua nova exposição
Santídio Pereira prepara sua nova exposiçãoMarco Estrella

Até uns sete anos, o único quadro que o Santidio Pereira conhecia era o de uma serena e calma Nossa Senhora trajando um manto verde que ficava pendurado na parede de sua casa. Na primeira infância, cercado pela caatinga do sertão do Piauí, ele desconhecia muita coisa. Mal sabia o que era energia elétrica ou água encanada, ignorava o advento alemão do fusca – “no ônibus de vinda para São Paulo, lembro de um menino falando pra gente contar os fuscas que passavam, mas eu nem sabia o que eram fuscas” – e, claro, não tinha a menor ideia do que fosse artes plásticas. Só que Curral Cumprido, o bairro rural do minúsculo município piauiense de Isaías Coelho, de onde saiu com a família em 1996, está presente em tudo o que faz.

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No pequeno ateliê recém-construído em Vila Tiradentes, zona oeste da capital paulista, Santidio vai manuseando umas palafitas de mais de um metro e meio. Esculpidas, elas são a matriz de suas xilogravuras em grande formato. O novo trabalho, uma série de 16 aves da caatinga – caburé, garrincha, lambu, juriti etc –, está sendo preparado para uma exposição que acontecerá na Galeria Estação, no começo de 2018. Por enquanto, o artista está testando cores, composições. As xilos despertam atenção imediata por dois motivos: o tamanho das impressões e a sobreposição de cores e formas que resulta em imagens fugidias.

Em 2016, estreou com sucesso no circuito artístico paulistano na mesma galeria Estação, onde agora é artista da casa. O debute teve curadoria do crítico Rodrigo Naves, que também escreveu o catálogo da exposição. Os dois se conheceram durante um curso de História da Arte e, logo depois, surgiu a ideia da mostra. "Para o crítico que defronta pela primeira vez com um trabalho tão promissor, torna-se quase impossível não projetar sobre trabalhos iniciais uma trajetória longa e grandiosa", escreveu à época Naves. "Muitas vezes esse entusiasmo se revela ilusório, então agora só nos resta esperar que esse jovem e talentoso artista não se esqueça das dificuldades do início de sua caminhada, quando chegar – e se chegar – o momento de o canto das sereias tocar seus ouvidos", concluiu.

E ele está animado. Aos 21 anos, Santidio conseguiu montar seu ateliê, comprar ferramentas, casar, ter uma filhinha, entrar em um cursinho vestibular e pá-pum. Enquanto vai falando de seu trabalho e decisões, a gíria aparece em sua boca o tempo todo. É quase como se ela resumisse o momento de novas possibilidades que vive. Comprou ferramentas melhores e pá-pum. Optou pelo vermelho e amarelo, cores quentes que o remetem aos vestidos coloridos que a avó usava em Curral Cumprido – e que, talvez não por acaso, são as colorações encontradas majoritariamente na paisagem da caatinga e por isso também em seu trabalho –, e pá-pum. Agora, com o ateliê a sua disposição, quer testar novas ideias, talvez abandonar o figurativo, arriscar imagens mais oníricas e pá-pum.

“Desde pequeno, o Santidio faz poesia. Ele tem esse olhar sensível para o mundo, nas escolhas das imagens, sempre teve uma preocupação artística”, conta Fabrício Lopez, que foi professor de xilogravura do artista no Instituto Acaia, a ONG em que ele começou seus estudos assim que chegou a São Paulo. A xilo, explica Lopez, tem tudo a ver com o local em que a instituição está situada: entre as favelas do nove, da linha e do Cingapura madeirite, três comunidades vizinhas do Ceasa, centro de abastecimento da cidade, na Vila Leopoldina. Santidio, que antes de estudar xilogravura, passou por oficinas de marcenaria e desenho, assim que descobriu a técnica, aos 12 anos, saiu gravando as paredes de palafita da casa em que vivia com a família.

O xilo do Ceasa, como ficou conhecido o grupo de estudos plásticos do Instituto, atraiu uma geração inteira de meninos que, como Santidio, se viravam como carregadores e ajudantes no Ceasa para levantar um dinheiro extra. “O contato com a madeira que a xilogravura exige pressupõe um embate franco com o material, por isso é uma coisa que tem muito a ver com os meninos que estudaram no Acaia e viviam essa rotina de trabalho no Ceasa. E o Santidio tinha isso de sobra”, diz Lopez, que é artista e também trabalha com xilos em grande formato. Alguns dos meninos levaram as aulas da ONG para a vida profissional, como designers ou técnicos. Santidio, contudo, sempre teve um olhar mais artístico.

Santidio fala sobre a construção de seu ateliê
Santidio fala sobre a construção de seu ateliêMarco Estrella

“Ele é puro Brasil. É um rapaz que está aí. Veio do Piauí, mora na favela. Sua história é pura desigualdade e superação. O sujeito para conseguir ter esse prumo e autoestima precisa ter muita força e coragem”, diz Lopez. “Agora, o caminho dele está aberto. Ele pode fazer o que quiser, ir pra onde quiser”, resume. Por enquanto, Santidio vai testando as possibilidades da xilo, dando aulas em centros culturais, e criando suas referências. Tem predileção pelo trabalho das gravuras japonesas ukiyo-e. Cita os artistas do século 19, Hiroshige, Hokusai e Utamaro, mas diz que adoraria que suas obras fossem confundidas com pinturas. Tem buscado abolir o preto, tão típico da xilogravura, para trabalhar apenas com cores. É obcecado por elas e, por isso, gostaria de descobrir todos os segredos de Matisse.

Outro dia deu início a uma série que chamou de “vistas do mar”. Contudo, o mar em questão é o tanque – espécie de açude comum em regiões muito secas – em que brincava quando criança. Ainda não acertou na composição, mas, colorida, ela passa longe do figurativo, apontando para o que Santidio começou a buscar recentemente. O trabalho é esse, diz, e ele espera que a vida o conduza de volta para o Piauí em seis anos. Em São Paulo não há nada para ele. Todas as suas referências estão nas histórias de Nasrudin – espécies de fábulas – de seu bisavô. E, claro, na caatinga e seu horizonte vermelho, amarelo, queimado de sol.

— Faço a xilo porque gosto, não espero ficar rico com isso, agora já estou feliz que ela se paga. O que ganho com a xilo, uso na própria xilo. Não preciso de Camaro, não preciso de luxo. Quero fazer uma faculdade de História ou Artes Plásticas, voltar para o Piauí, dar aulas lá, construir um ateliê e pá-pum.

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