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Quando os filhos dos mais pobres chegaram à universidade, a Espanha mudou

Nos anos oitenta, jovens de todas as classes sociais encheram colégios e universidades

Antonio Jiménez Barca
Público no interior da sala Rock-ola de Madri em 26 de novembro de 1983.
Público no interior da sala Rock-ola de Madri em 26 de novembro de 1983.Bernardo Pérez

O colégio era público e novo e coube a nós estreá-lo. Também era frágil, construído a toque de caixa, sem muito planejamento, acredito que também sem muito orçamento. Por isso muitas coisas (quase todas as persianas, as barras do ginásio, o próprio ginásio, a máquina de slides que sempre enguiçava) não sobreviveram um ano letivo. A porta de um banheiro que se quebrou serviu de trenó aos mais velhos em uma semana de fevereiro que nevou. Terminou abandonada em um lixão próximo.

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Esse colégio recebeu um batalhão de adolescentes de La Elipa, Simancas e San Blas, três bairros da periferia de Madri que no começo dos anos oitenta, logo após a transição da ditadura franquista para a democracia, estavam povoados por famílias operárias com o pai muitas vezes desempregado ou prestes a perder o emprego e a mãe aflita perseguindo como um detetive ofertas de supermercado. Em algumas casas o filho mais velho tinha acabado de se viciar em heroína e então tudo era horrivelmente pior.

Na hora do recreio, no pátio, parecíamos delinquentes juvenis. No fundo, também éramos frágeis e corríamos o risco de reprovação na metade do ano letivo: tão quebrados como as persianas da sala de aula, tão abandonados como a porta-trenó. Mas, sem nos darmos muita conta, graças a um punhado de professores convencidos de sua tarefa fomos passando de ano até chegarmos ao vestibular. O pobre colégio parecia ter sido sacudido por um terremoto. Mas, apesar dos materiais aparentemente de segunda mão, aguentou. E serviu para o que serve um colégio: de trampolim, de porta de saída. Muitos de nós que fomos buscar as notas do vestibular naquela quente manhã de junho tantos anos atrás éramos os primeiros de nossas famílias a entrar em uma universidade.

A universidade. A primeira coisa que fiz ao chegar foi verificar a consistência das persianas. A segunda, perceber que lá existia muita gente. Ao longo dos anos sessenta, de acordo com dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), somente 6% dos espanhóis terminava o segundo grau e só outro 6% conseguia um título universitário. Nos setenta, essa porcentagem subiu a 9% e 10%, respectivamente. Mas nos oitenta, já 24% da população terminava o COU (Curso de Orientação Universitária) e 16% ia além e se formava na universidade. Algo estava acontecendo. A universidade ficou lotada de jovens da geração do baby boom, provenientes – pela primeira vez em grande quantidade – dos dois lados da trincheira econômica.

Abarrotamos as faculdades por razões demográficas: nunca fomos tantos e já havíamos lotado os colégios, deformaríamos depois o mercado de trabalho e arrasaremos o sistema previdenciário quando chegar a hora. Mas também as abarrotamos por razões políticas: os Governos da época fomentaram um sistema de bolsas que fizeram com que os cursos fossem muito mais acessíveis. Os especialistas denunciavam que essa enxurrada de alunos baixaria o nível da universidade. E eu pensava que sim, que era verdade, mas que o nível do meu bairro também subiria. Além disso, passou a funcionar com regularidade – e já sem retorno – o elevador social. Meu primeiro amigo universitário foi um rapaz de uma família burguesa do rico bairro de Moncloa, em Madri, que havia estudado no exclusivo colégio Base. Ainda é um dos meus melhores amigos.

Paralelamente, chegou a modernidade, abandonamos as jaquetas puídas e as calças justas e de noite íamos às festas da Movida (movimento de contracultura madrilenho dos anos setenta e oitenta) e de manhã às manifestações anti-OTAN (e anti-PSOE, que governava a Espanha e promovia a entrada do país na aliança militar). Mas a cada setembro preenchíamos, sem culpa na consciência e sem que nenhuma contradição nos atormentasse, o formulário da bolsa universitária anual do Governo de Felipe González.

Naqueles anos erros foram cometidos, coisas deram errado, outras não foram alcançadas, muito ficou por ser feito e abordado superficialmente. Após a embriaguez da liberdade retomada, espalhou-se um certo desânimo e uma ressaca de decepção e suponho que inevitável, como aquele que comprova no dia seguinte que a festa não foi tudo isso. As festas nunca são tudo isso.

Convém lembrar que, apesar de tudo, nessas décadas ocorreram pequenos milagres – produto de inúmeras causalidades, mas também de decisões políticas e de medidas orçamentárias – como o fato de meu amigo do colégio Base e eu nos sentarmos lado a lado em uma sala de aula da universidade, possuindo os dois (quase) as mesmas oportunidades para depois sair por aí, pela vida, que essa sim era tudo isso.

Em tempo: o velho colégio continua lá, no mesmo lugar, com a mesma forma de trampolim, de porta de saída.

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