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Mulher de um jihadista decidido a viajar para a Síria: “Como é isso que você vai morrer, meu amor?”

Conversas das esposas espanholas de terroristas que decidiram ir combater até a morte na Síria refletem frustrações

José María Irujo
Lahcen Ikasrrien, no momento da sua prisão em 2014, em Madri.
Lahcen Ikasrrien, no momento da sua prisão em 2014, em Madri.Álvaro García

- “Quando cito o assunto ele me diz que já está resolvido. E quando ele cita, eu respondo: ‘se você tem coragem vai (para a Síria), mas eu quero saber a minha situação agora mesmo’. Um amigo dele já foi, com os filhos e a esposa”.

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- “Se eu estivesse em seu lugar nem deixaria que falasse sobre o tema. Ele traz o assunto à tona para incomodá-la. Se isso acontecer, quando ele disser isso você fala: ‘pode ir embora, mas deixa o documento de divórcio’. Dessa maneira, nos adiantamos aos acontecimentos”.

Em 16 de abril de 2014, às 19h28, Samira El Hallaoui confessou com sua tia Ikram e explicou que seu marido Mohamed Bouyakhlef, de 32 anos, queria forçá-la a viajar para a Síria para que toda a família se unisse às fileiras do Estado Islâmico (EI) e participasse na criação do novo Califado. Catorze famílias espanholas já tinham feito o caminho para a morte. Em Alepo recebiam 20.000 euros, uma casa e uma metralhadora Kalashnikov para o pai da família.

Medo, frustração e angústia são os sentimentos refletidos nas conversas íntimas, gravadas pela polícia, das mulheres espanholas dos oito jihadistas marroquinos que integravam a Brigada Al Andalus, uma célula terrorista desmantelada em Madri e dirigida por um antigo preso de Guantánamo. Seus membros sonhavam em morrer na Síria fazendo a jihad. Dois conseguiram. O resto está na prisão onde cumprem sentenças de oito anos.

Diante da resistência de sua esposa, Mohammed, o marido de Samira, pediu conselhos por telefone a um suposto sábio chamado Sheik Abderrazak, residente em Nador (Marrocos).

- “Decidi ir por causa de Deus e tenho uma mulher que não quer ir. Se eu a deixar e for sozinho, é lícito ou não?

- Por que não quer ir?

- Tem medo.

- Continue tentando e se no final não quiser, pode ir porque você tentou.”

Mohammed disse que um irmão dele tinha o mesmo problema com a esposa e o “sábio” encorajou-os a partir. “Deus é e será responsável. Será o tutor e cuidará de vocês”, ele previu.

“Se tiver coragem, pode ir, mas deixa o documento de divórcio”

Mohamed era chamado de Mohamed O Grande e frequentava uma propriedade em Santa Cruz de Pinares (Ávila), onde membros da célula se reuniam com suas esposas. Sua determinação para fazer a jihad era tão firme que até tinha viajado para Melilla para se encontrar com Mustafá Maya, um salafista barbudo que, sentado em sua cadeira de rodas e com a ajuda de um laptop, tinha enviado 200 combatentes de oito países para lutar ao lado do EI na Síria e no Iraque.

Em maio de 2014 o marido de Samira contou seus sentimentos mais íntimos a Nabil Benazzou, outro membro da célula marroquina. “Você acorda animado quando diz: ‘faltam poucos dias para morrer pela causa de Alá. Quando você está na jihad sabe que pode morrer shahid (mártir)’”.

Dias depois foi Nabil, de 49 anos, que ligou para seu telefone celular e se abriu com ele. Informa que está pronto e não está mais interessado em ouvir música. “Isso é normal neste ponto do misticismo”, responde Mohammed.

Raquel Alonso, a mulher espanhola de Nabil vivia naquele momento a mesma angústia e incerteza que Samira. Às 19h12 de 1º de maio os agentes que monitoravam suas conversas gravaram um diálogo eloquente com a irmã de seu marido que morava no Marrocos. “(Nabil) está me assustando. Tenho a sensação de que pode ir (para a Síria) a qualquer momento. Não é a pessoa com quem me casei. É outra pessoa. Há pessoas que entram em um estado radical muito forte e seu irmão está nesse ponto. Eu não sei até onde pode chegar. Quando fica obcecado com algo vai até o final. Tenho certeza de que a viagem ao Marrocos tem um objetivo. Não acho que quatro amigos de repente decidem ir ao Marrocos”.

“Não aguento mais, é uma violência psicológica”

Naquela época, as reuniões do grupo em seus centros de encontro mais íntimos se intensificaram: a casa de chá Isla Verde de Torrejón de Ardoz (Madri) na represa de El Atazar e na propriedade de Ávila cujo dono era o sogro de Nabil onde iam nos fins de semana com suas esposas.

Nabil anunciava há um ano sua morte para a esposa. “Eu, amor, vou morrer jovem, amor, não vou chegar à aposentadoria, minha vida, querida”. “Mas quem disse que você vai morrer jovem? Mas o que é isso de que vai morrer, meu amor? Que besteira é essa? Fez algum exame médico que eu não sei? Porque está há duas semanas dizendo que vai morrer. Então me conta agora!”, ela respondia.

Nabil, natural de Casablanca, tinha uma vida confortável. Mas sua obsessão era alimentar sua conta no Facebook com vídeos da Al Qaeda e procurar na Internet material militar. Nem sua mulher nem seus dois filhos eram um empecilho para seus planos. Para uma vendedora da American Express, que informou que o cartão ouro que estava oferecendo vinha com um seguro de vida, ele respondeu: “Minha religião me proíbe aceitar porque a morte é um jogo de azar”.

Marta Trabado, a esposa de Abdeslam El Haddouti, um dos membros da célula, foi discreta em suas conversas telefônicas, mas desabafou em seu diário. “Não aguento mais, é uma violência psicológica tão grande que não posso continuar...” Abdeslam não deixava que fosse sozinha à feira, proibiu que tivesse fotos em casa e, às vezes, a insultava: “Você é um lixo”.

Seus filhos iam à escola do bairro e nos fins de semana davam aulas de árabe na mesquita da M30, a maior de Madri. Para proteger seu marido, Marta disse aos juízes que aqueles sentimentos refletidos em seu diário eram apenas discussões do casal.

Um pai para seu filho, menor de idade: “não posso confiar em você. Os jovens de sua idade já estão lutando contra os infiéis”

Abdeslam tentou convencer Elias, seu filho e mostrou seu lado mais sombrio e a manipulação da qual era capaz. “Elias, fico chateado ao saber que meus filhos desde pequenos mentem para mim e me escondem coisas. Não posso confiar em você, parece que você tem dois anos, enquanto outros jovens da sua idade já estão na jihad lutando contra os infiéis. Seja homem e tenha força, queremos que vocês sejam homens. Não pode continuar assim. Você precisa ser homem! Está ouvindo?”.

Nem todas resistiram. Yolanda Martínez, esposa de Omar El Harchi, escreveu uma carta de despedida na qual afirmava que diante do conflito sírio era preciso recorrer à ação.

Que homens são esses que vão lutar?

Lahcen Ikasrrien, de 50 anos, um marroquino residente na Espanha há várias décadas, reuniu a célula que enviou dois de seus membros a uma morte certa. Abdellatif El Morabet e Bilal El Helka viajaram em 2012 de Madri a Istambul (Turquia) e dali para Alepo (Síria), onde morreram lutando em uma katiba (brigada) da Frente Al-Nusra, afiliada da Al Qaeda.

Por seu passado no Afeganistão, onde foi preso após a invasão dos EUA em 2001 e seus cinco anos de prisão e torturas em Guantánamo, os membros do grupo o tratavam como emir (chefe). O próprio Lahcen escreveu uma carta em árabe a um mufti, jurista muçulmano com autoridade pública, para consultar sobre sua decisão de viajar para a Síria.

Um vídeo interceptado enviado a um dos membros mostrou aos investigadores que eles realizaram exercícios de treinamento antes de sua frustrada viagem à Síria para se juntar às fileiras do Estado Islâmico. Nas imagens aparecem membros do grupo cruzando um rio. Quem está gravando anima os outros e diz: “mujahid 2 mujahid 3, número 3 venha, sejam homens...” E um deles responde: “preferimos ser mulheres, ha ha ha”. “Que homens são esses que vão lutar!”, reprova quem está segurando a câmera.

Lahcen sempre negou a este jornal estar relacionado com a jihad, mesmo nas conversas poucos meses antes de sua prisão. Mas as evidências o levaram à prisão. A polícia encontrou um diário com suas façanhas no Afeganistão e em 22 de janeiro de 2014 ligou para um dos enviados à Síria, Omar El Harchi, e desejou “um bom casamento”, referindo-se a seus planos de suicídio. Está cumprindo uma sentença de 11 anos e seis meses por integrar um grupo terrorista e falsificação de documentos.

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