_
_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Comportamento inadequado

Durante muitos séculos, as mulheres foram vítimas pelo simples fato de serem mulheres. Finalmente, as coisas começam a mudar

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Desde que cheguei os Estados Unidos, há uma semana, vejo em jornais e noticiários televisivos o uso do delicado eufemismo “comportamento inadequado” para os abusos sexuais de todo tipo cometidos por produtores, artistas e políticos, a quem o testemunho de suas vítimas está levando à ruína financeira, ao desprestígio social e poderia até mesmo enterrá-los na prisão.

Essa explosão começou com o caso de Harvey Weinstein, eminente e multimilionário produtor de cinema, ganhador de todos os prêmios existentes e por existir, que foi acusado por cerca de meia centena de mulheres, muitas delas jovens atrizes tentando abrir caminho em Hollywood, de ter se aproveitado de seu poder nessa indústria para estuprá-las ou submetê-las a práticas indignas. Quando algumas de suas vítimas ameaçaram denunciá-lo, o libidinoso magnata usou seus advogados para aplacá-las com somas de dinheiro às vezes muito altas. Agora Weinstein se refugiou em uma clínica na Escócia para seguir um tratamento destinado a atenuar sua libido desmedida, mas a polícia e os promotores de Nova York anunciaram que será preso e julgado assim que voltar. Enquanto isso, foi expulso de inúmeras associações, foi convidado a devolver muitos prêmios e, segundo a imprensa, sua ruína financeira já é um fato.

Desventura semelhante viveu o ator Kevin Spacey, o malvado presidente de House of Cards –Frank Underwood– e ex-diretor do Old Vic, em Londres, que assediou e apalpou os rapazes que se colocavam ao seu alcance. Mais de dez denúncias de atores ou colaboradores de suas montagens teatrais, dos quais abusou, o colocaram no pelourinho. A Netflix cancelou aquela série de sucesso, ele foi expulso de sindicatos e associações profissionais, seus prêmios foram retirados, contratos foram cancelados e uma chuva de denúncias judiciais que podem arruiná-lo financeiramente cai sobre sua cabeça. Ele também, como Weinstein, está agora naquela clínica escocesa que acalma as libidos fora de órbita. Outros atores famosos, como Dustin Hoffman, apareceram nos últimos dias entre as celebridades com “comportamento inadequado”.

Uma pessoa pode aplaudir os filmes de Polanski e desejar ao mesmo tempo que a Justiça lhe persiga
Mais informações
“Adeus, abusador”: o mundo repudia Harvey Weinstein
Kevin Spacey pede desculpas após ser acusado de abuso e se declara gay
Sexta mulher acusa George Bush pai de assédio sexual

Um interessante debate surgiu por ocasião dessas denúncias e revelações apoiadas por muitas associações feministas e de defesa dos direitos humanos. A celebridade é um fator atenuante ou agravante da falta cometida? Cita-se o caso de Roman Polanski, o grande cineasta polonês que, há dezenas de anos, drogou e estuprou uma garota de treze anos em uma casa em Hollywood –emprestada por outro ator famoso, Jack Nicholson– com a qual havia marcado um encontro ali sob o pretexto de fotografá-la para um filme. Descoberto, fugiu para a França –que não possui acordo de extradição com os Estados Unidos–, onde deu prosseguimento a uma muito bem-sucedida carreira de diretor de cinema, coroada com muitos prêmios e celebrada pelos críticos, muitos dos quais recriminam a Justiça norte-americana por prosseguir com sua vingança, depois de anos, contra tão célebre criador.

Eu, da minha parte, acredito que não devemos misturar a água e o óleo e que possamos aplaudir e apreciar os bons filmes do cineasta polonês e, ao mesmo tempo, desejar que a Justiça dos Estados Unidos persiga o fugitivo que, além de ter cometido um crime horrendo, como drogar e estuprar uma menina abusando do prestígio e do poder que ganhara com seu talento, fugiu covardemente de sua responsabilidade, como se fazer bons filmes lhe conferisse um estatuto especial e lhe permitisse os abusos pelos quais são punidos todos os demais, esses seres anônimos sem rosto e sem glória que são o resto da humanidade. É possível ser um grande criador, como Louis-Ferdinand Céline, ou como o marquês de Sade, ou como o próprio Polanski, e uma imundície humana que atropela e maltrata o próximo acreditando que seu talento o exime de respeitar as leis e o comportamento que se exige das “pessoas comuns”. Mas também é verdade que às vezes ser muito conhecido e aparecer muito na imprensa desperta um curioso rancor, um ressentimento invejoso que pode levar certos juízes ou policiais a se enfurecerem especialmente contra aqueles que, apanhados em falta, podem ser humilhados e castigados mais duramente do que o comum dos mortais.

Por essa razão, o talento e/ou a celebridade, que, nunca é demais lembrar, nem sempre vão juntos, devem exigir maior prudência na conduta daqueles que, com justiça ou sem ela, merecem ou simplesmente conseguiram ser exaltados e admirados pela opinião pública. É um assunto delicado e difícil, porque a popularidade cega muito rapidamente aqueles a quem favorece –a vaidade humana, já sabemos, não tem limites– e faz com que eles acreditem que desse privilégio também derivam outros, como uma moral e leis que não lhes dizem respeito nem devem ser aplicadas a eles do mesmo modo que a essa coletividade anônima, composta de vultos mais que de seres humanos específicos, que os admira e ama e deveria portanto perdoar seus excessos. A verdade é que acontece o contrário. Esses seres semidivinos, adorados ontem, amanhã estão sob as patas dos cavalos, e as pessoas os desprezam com a mesma paixão com que na véspera os invejavam e adoravam.

Em muitas partes do mundo a condição da mulher continua sendo muito inferior à do homem

Há poucas horas ouvi, na televisão, uma senhora que há quarenta anos, quando tinha 14, era garçonete em uma pequena cidade no Alabama. Um cliente, que era juiz e tinha 34 anos –chamado Roy Moore– ofereceu-se para levá-la para casa em seu carro. Ela aceitou. No veículo, o cavalheiro virou uma fera, tomou a mão da menina e forçou-a a masturbá-lo, dizendo que, se mais tarde ousasse protestar e denunciá-lo, ninguém acreditaria nela, precisamente porque ele era um juiz e um cidadão muito respeitado na localidade. A jovem nunca ousou contar essa história até agora, mas não esqueceu e, dizia sem se atrever a levantar os olhos, o caso tinha sido como um verme que conviveu dia e noite com ela, roendo sua vida. Agora, aquele juiz é nada menos do que candidato a senador pelo Partido Republicano no Alabama, e pelo menos cinco mulheres apareceram na televisão para lembrar abusos similares que sofreram na juventude ou na infância cometidos pelo juiz desavergonhado. Pelo menos nesse caso, parece que os crimes não ficarão impunes. O próprio Partido Republicano pediu ao ex-juiz que retirasse sua candidatura e, se não o fizer, as pesquisas preveem que perderia a eleição.

Durante muitos séculos, as mulheres, em praticamente todas as culturas, foram vítimas pelo simples fato de serem mulheres, um sexo que, em alguns casos por razões religiosas e, em outros, por sua fraqueza física diante do homem, eram vítimas naturais da discriminação, da marginalização e do “comportamento impróprio” dos homens, especialmente em questões sexuais. Finalmente as coisas estão começando a mudar, especialmente no mundo ocidental, embora em muitas partes dele, como na América Latina, a condição das mulheres ainda continue sendo, devido ao machismo reinante, muito inferior à dos homens. Em outros mundos, por exemplo, no muçulmano ou no africano mais primitivo, as mulheres continuam sendo cidadãos de segunda classe, objetos ou animais mais do que seres humanos, que podem ser encerrados em um harém ou submetidos a mutilações rituais para garantir que terão um comportamento sexual “adequado”. Um horror que leva séculos para desaparecer.

Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a Edições EL PAÍS, SL, 2017.

© Mario Vargas Llosa, 2017

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_