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‘Cura gay’ na China usa de hipnose a eletrochoques

HRW relata “terapias” oferecidas em hospitais públicos e privados da segunda maior potência mundial

Macarena Vidal Liy
Manifestação do Orgulho Gay em Hong Kong, no dia 26 de novembro de 2016
Manifestação do Orgulho Gay em Hong Kong, no dia 26 de novembro de 2016Getty Images

“A homossexualidade é como qualquer outra doença mental, como a depressão, a ansiedade ou o transtorno bipolar. Pode ser curada… Confie em mim, deixe-o aqui, ficará em boas mãos”. Com essas palavras, o psiquiatra convenceu a mãe de Wen Qi (nome fictício) a deixar seu filho na clínica. Para esse jovem gay chinês começava um longo calvário de tratamentos destinados a “curá-lo” e transformá-lo em heterossexual.

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A homossexualidade não é crime na China nem é oficialmente considerada uma doença. Em 2001, o Colégio de Psiquiatras a retirou da lista de problemas mentais. Duas pessoas que levaram a julgamento clínicas que ofereciam “tratamentos” para a suposta cura ganharam nos tribunais. Mas, como denuncia um novo relatório da organização não governamental Human Rights Watch, continuam sendo oferecidas no país as chamadas “terapias de conversão”, que procuram mudar a orientação sexual dos pacientes. Não é o único país em que são feitos esses pseudotratamentos, proibidos expressamente só em três países do mundo – Brasil, Equador e Malta. Mas, na China, são oferecidos também em hospitais públicos, além de estabelecimentos privados.

A popularidade dessas pseudoterapias tem origem na arraigada convenção social que estabelece a forte preferência por filhos que perpetuem o sobrenome familiar. Os filhos de orientação gay ou lésbica sofrem forte pressão, especialmente dos familiares mais velhos, para se casarem com uma pessoa do sexo oposto e produzirem descendência; uma situação que pode ser agravada se – como ocorre com frequência devido a anos de política de filho único – não têm irmãos e todas as esperanças das gerações anteriores se depositam neles. A terapia é vista como uma solução para os casos “renitentes”.

Esse tipo de pseudotratamento, pelo qual os pacientes ou seus familiares pagam altas somas de dinheiro, abrange múltiplas técnicas, da hipnose aos fármacos. Passando pelos eletrochoques.

Nem Wen Qi nem nenhum dos outros 17 entrevistados pela Human Rights Watch para o relatório “Você pensou na felicidade de seus pais?” mudou de orientação sexual apesar dos “tratamentos”. Todos eles insistiram que, se não fosse pela forte pressão de seu entorno, jamais teriam se submetido à “terapia de conversão”.

“Meu pai se ajoelhou na minha frente, chorando, implorando para que eu fosse. Dizia que não sabia como poderia continuar vivendo se as pessoas descobrissem que sou gay. Suplicava que eu fosse para que ele conseguisse viver… Tendo chegado a esse ponto, o que mais eu podia fazer? Não havia alternativa”, conta no relatório um dos pacientes, sob o pseudônimo Xu Zhen.

Na maioria dos casos —14—, o tratamento foi administrado em hospitais públicos. Nos demais, ocorreu em clínicas psiquiátricas ou psicológicas autorizadas a operar pela Comissão Nacional de Saúde. Algumas instituições oferecem esses serviços de maneira muito discreta. Outras fazem publicidade abertamente.

Durante o tratamento, quase todos os entrevistados foram vítimas de insultos e de abuso verbal por parte dos próprios médicos, que se dirigiam a eles com palavras como “pervertido”, “anormal” ou “sujo”. Três tentaram escapar. Um conseguiu, mas assim que chegou em casa seus pais o mandaram de volta à clínica.

Onze dos 17 tomaram ou foram forçados a tomar, por via oral ou injeções, medicamentos sobre os quais não receberam nenhum tipo de informação. “O médico e a enfermeira se recusaram a dizer que comprimidos eram aqueles. Só falaram que devia tomá-los e que ajudariam no tratamento. Depois de tomar, normalmente me sentia hiper-energético durante algumas horas, mas depois começava a me sentir muito cansado e deprimido”, conta Li Zhi, da cidade de Nanping.

Cinco deles receberam eletrochoques enquanto pensavam no ato sexual ou viam pornografia, para que associassem a homossexualidade a algo doloroso.

“Taparam meus olhos e me falaram para relaxar e pensar no sexo com meu namorado. Amarraram minhas pernas na cama, com umas presilhas de metal por baixo. Também amarraram minhas mãos na cama… Quando ligaram a corrente, comecei a sentir a eletricidade nas pernas… Pensei que seria algo curto, mas deixaram ligado por um momento, que foi muito longo para mim. Comecei a tremer na cama. As presilhas estavam ardendo. Pedi para desligarem aquilo, mas acredito que não me escutaram”, conta Xu Zhen, da província de Sichuan, no centro da China.

Segundo a HRW, as autoridades chinesas não tomaram medidas decisivas para impedir esse tipo de terapia, como inspeções ou diretrizes que as proíbam de forma clara. O país não tem uma legislação específica contra a discriminação por orientação sexual.

“Mais de vinte anos se passaram desde que a China deixou de considerar a homossexualidade um crime, mas as pessoas LGBTI+ ainda são submetidas a internações, medicação forçada e até eletrochoques para tentar mudar sua orientação sexual”, diz Graeme Reid, diretor de direitos LGBT da HRW.

“É hora de a China se unir ao consenso global: reconhecer que a terapia de conversão forçada é abusiva e discriminatória, e proibi-la”.

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