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Bancada evangélica converte proposta pró-mulher em projeto antiaborto

Comissão da Câmara aprovou texto para incluir na Constituição que a vida começa na concepção. Movimentos feministas temem que aborto passe a ser criminalizado nos casos hoje permitidos por lei

Manifestação pelo direito das mulheres ao aborto em dezembro de 2016.
Manifestação pelo direito das mulheres ao aborto em dezembro de 2016.Rovena Rosa/ (Agência Brasil)

Uma proposta que buscava ampliar o direito de mulheres à licença maternidade se transformou, após passar por uma comissão da Câmara liderada pela bancada evangélica, em uma pauta que pode restringir o acesso ao aborto. A medida aprovada pelo colegiado na última quarta-feira foi apelidada de "Cavalo de Troia" pelos movimentos feministas, que marcaram protestos. Ela quer introduzir na Constituição a noção de que a vida começa na concepção. Isso, segundo os movimentos feministas, pode levar à revogação do direito já pacificado à interrupção da gravidez: em casos de estupro, risco à gestante e quando o feto é anencéfalo. A medida segue para votação no plenário e, depois, ainda terá que passar pelo Senado e ser sancionada por Michel Temer.

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A comissão especial foi formada há um ano, logo depois de o Supremo Tribunal Federal decidir que o aborto durante o primeiro trimestre de gestação não configurava crime. Seu objetivo oficialmente era analisar duas propostas de emenda à Constituição, as PECs 181 e 58, ambas antigas (a primeira de 2015 e a segunda de 2011). Elas pretendiam ampliar de 120 para até 240 dias a licença maternidade de mães de bebês prematuros. Mas o texto do relator Tadeu Mudalen (DEM-SP), membro da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso, introduziu no texto final, aprovado na quarta-feira, outras propostas de mudanças constitucionais. O inciso III do artigo 1º da Constituição Federal incluirá entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito a "dignidade da pessoa humana, desde a concepção". E artigo 5º passará a afirmar que todos são iguais perante a lei "desde a concepção". Atualmente, o "desde a concepção" não aparece no texto em nenhum dos dois casos. A manobra tem o mesmo objetivo de propostas como o Estatuto do Nascituro, que também tramita na Câmara.

Os movimentos feministas afirmam que, se implementada, a mudança será o "primeiro passo para criminalizar o aborto em todos os casos". Ressaltam que, apesar de não modificar automaticamente a legislação relacionada ao direito ao aborto, abrirá uma insegurança jurídica porque iguala os direitos do embrião, que não tem atividades cerebrais, ao da mulher. Isso poderia fazer com que se considerasse que, mesmo em casos de estupro, por exemplo, ele teria direito à vida e esse direito se sobreporia ao direito da mulher. "Em caso de aprovação, mulheres vítimas de estupro, independentemente da idade, ou com gravidez de fetos anencéfalos correm o risco de não poderem mais recorrer aos serviços de aborto legal e seguro", afirmou a ONG Católicas pelo Direito de Decidir. "É inadmissível que 18 homens que alegam falar por Deus e por toda a população brasileira decidam sobre a vida e a autonomia de tantas mulheres", completou a entidade, que convocou dois atos, um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo, para o próximo dia 13, em protesto.

A aprovação da PEC na comissão especial nesta quarta-feira foi marcada por discussões, que incluíram, inclusive, parlamentares que não faziam parte do colegiado. Parlamentares contrários à medida argumentavam que ela não podia ser aprovada porque uma comissão não pode modificar radicalmente o conteúdo de uma PEC já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça, que avalia se ela tem validade jurídica ou não. Além disso, acusavam de "fraude" a medida porque, para ela começar a tramitar, precisou da assinatura de 171 deputados, que concordavam com a ampliação da licença maternidade e não, necessariamente, com as alterações inseridas posteriormente pela bancada evangélica. "É uma das mais profundas fraudes que esta Casa está em vias de efetivar", afirmou a deputada Erika Kokay (PT-DF), única parlamentar da comissão a votar contra a medida —18 foram favoráveis . "Estão usurpando de uma proposição importante para mães de bebês prematuros que guarda o mais profundo consenso nesta Casa", ressaltou ela.

O deputado Evandro Gussi (PV-SP), presidente da Comissão e também membro da Frente Parlamentar Evangélica, afirmou por sua vez que é possível introduzir em um texto que está sendo discutido uma outra questão, desde que ela seja da mesma natureza da que está no texto original. Durante a votação, muitos dos deputados presentes afirmavam que seus votos eram "favoráveis à vida". "Esta questão influencia o meu entendimento da Bíblia. Falo aqui claramente que esse meu entendimento cristão influenciou, sim, o meu voto", afirmou Leonardo Quintão (PMDB-MG), outro membro da bancada evangélica. "Ganhando o 'sim', ganha a vida (...) Vamos salvar milhões de vidas aqui no Brasil. Vidas que podem ser professores, taxistas, engenheiros, parlamentares também. E tenho a certeza de que estamos fazendo o certo nesta comissão", complementou ele.

Agora, a proposta segue para apreciação do plenário. Nesta quinta-feira, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), afirmou em seu Facebook que não passará na Casa proposta que proíba que mulheres façam aborto em caso de estupro.

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