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Uma análise dos livros escritos na era Trump

No aniversário da sua eleição, repassamos o mais interessante entre a avalanche de livros que analisam o ideário do presidente norte-americano

Donald Trump durante comício na Flórida, em outubro de 2016.
Donald Trump durante comício na Flórida, em outubro de 2016.Joe Raedle (Getty Images)
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Trump não usa metáforas. Atira. No Twitter, nos seus comícios, nas entrevistas e em seus discursos na Casa Branca, emprega a linguagem como uma metralhadora. Observa, aperta o gatilho e depois olha quem caiu. Não é verdade, como pensam muitos, que viva alheio ao poder da linguagem. Utiliza-o maciçamente e os usa para seus fins. Principalmente um: sua própria glória.

E não se trata só de falar em público. Há 30 anos, Trump é um prolífico produtor de best-sellers (escritos pelos outros) e nunca se envergonhou em tornar públicas as suas recomendações de leitura. Uma lista que oferece uma radiografia bastante exata de seu pensamento. Além das recorrentes A Arte da Guerra, de Sun Tzu, e O Príncipe, de Maquiavel, abertos a qualquer interpretação, entre seus conselhos figuram The Amateur, uma destrutiva obra de Edward Klein contra Barack Obama; Iacocca, a autobiografia do bem-sucedido executivo automobilístico Lee Iacocca, e o suculento manual Desafiando o Talento, de Geoff Colvin, cujo subtítulo em inglês (O que realmente separa os líderes de primeiro nível do resto do mundo) destila a essência ideológica do presidente dos Estados Unidos.

Na lista não há literatura nem poesia. Não é algo estranho em se tratando de alguém que durante anos mediu seus rivais pelo tamanho da conta corrente. Afinal de contas, a eficácia empresarial (e agora eleitoral) é o grande cânone de Trump. O mundo da cultura lhe é alheio e, embora evite exteriorizar isso, o despreza.

O sentimento é recíproco. Enormes massas de escritores, pensadores, historiadores e poetas o rejeitam. Essa polaridade teve um efeito prático. Desatou uma reação em cadeia que, muito antes de sua vitória eleitoral em 8 de novembro do ano passado, já encheu as livrarias de ensaios sobre sua vida e pensamento. Haviam sido escritos, em sua maioria, sob o signo da advertência, e acabavam quase irremediavelmente tratando de antever o futuro.

Agora, a ponto cumprir um ano de seu triunfo, o futuro já está aqui. O fenômeno Trump superou a fase larval. A transformação se completou. Ele tem o botão nuclear ao seu alcance, e sua figura se move a uma velocidade constante. Viaja, fala e governa. Não é uma enteléquia, e sim um presidente que tanto pode acordar atacando a imprensa como ir dormir lançando um aterrador desafio à Coreia do Norte.

A produção gerada para explicar esse Trump real ainda é incipiente, embora já surjam pequenas obras-primas do descontentamento. No topo figura Sobre a Tirania (Companhia das Letras), do historiador e catedrático de Yale Timothy Snyder (Ohio, 1969). Seu opúsculo é rápido e direto. Toma o passado como uma lição e alerta sobre Vladimir Putin, o Brexit, a Frente Nacional e, obviamente, Trump. Para esse discípulo de Tony Judt, todos eles são “demagogos que aproveitam a liberdade de expressão para se tornarem tiranos”. Uma experiência bem conhecida no Velho Continente. E que nunca deve ser esquecida: “A história europeia do século XX nos ensina que as sociedades podem quebrar-se, as democracias podem cair, a ética pode vir abaixo, e um homem qualquer pode acabar plantado à beira de uma fossa com uma pistola na mão”.

É o terror da fossa. Mas também do muro. A grande metáfora da era Trump. A obra que separa e colocar em compartimentos. O ódio à globalização e, portanto, à diferença. O nacionalismo em estado puro. “Quando Trump fala de muçulmanos ou imigrantes, aproxima-se da política praticada na Alemanha em 1933. A ideia básica é que não são seus vizinhos, mas parte de uma ameaça internacional. Para Trump, a globalização não é um desafio objetivo, e sim um inimigo externo, uma conspiração à qual ele deu rosto e que está dentro de casa”, disse Snyder ao EL PAÍS.

Timothy Snyder tenta vacinar o leitor contra a tentação de achar que o legado democrático basta para protegê-lo

Frente a tal ameaça, o historiador norte-americano tenta vacinar o leitor contra a tentação de achar que o legado democrático basta para protegê-lo. Pelo contrário, a história recorda que é preciso sair em sua defesa. “Não ser obediente, não permitir que o excepcional se torne normal.” Passar à ação. “Não somos mais sábios que os europeus que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo durante o século XX. Nossa única vantagem é que poderíamos aprender com a sua experiência. Agora é um bom momento para isso”, conclui Snyder em seu livro.

E, se na era Trump o autoritarismo se tornou um poderoso estímulo à desobediência, também o supremacismo o é. Crimes de ódio como o de Charlottesville, em agosto passado, e a ambivalente postura do mandatário republicano abonaram a tese da Presidência Branca. Ta-nehisi Coates (Baltimore, 1975) denuncia isso com precisão. Em We Were Eight Years in Power – An American Tragedy (Passamos oito anos no poder – uma tragédia americana, editora Large Print / Random House), este conhecido escritor e jornalista negro oferece uma compilação de oito artigos que dissecam o mandato de Barack Obama sob o ponto de vista racial.

Coates constrói uma tese, bastante clara. Obama ganhou as eleições porque parecia o bom negro. Seu aspecto, suas maneiras, sua educação eram “um anúncio ambulante do modo como os negros podem se integrar sem ameaçar a cultura, a política e o mito americanos”. E esse foi o problema. Se há algo que o racista teme mais que um mau governo negro é um bom governo negro. A reação foi a vitória de Donald Trump, “um homem branco que não seria presidente se não fosse por esse fato”.

“O poder simbólico da presidência de Obama e sua demonstração de que a brancura não era já suficientemente forte para evitar que os criados ocupassem o castelo atacaram as mais enraizadas noções do supremacismo branco e instalaram o medo entre seus defensores. E foi este medo que deu a Donald Trump os símbolos que o transformaram em presidente”, escreve Coates.

Sua obra, como a de Snyder, não se reduz a um posicionamento intelectual. A análise busca a mobilização. Mais que um presidente, Trump é visto por esses pensadores como uma aberração do sistema. Um colapso democrático ao qual é preciso colocar freio.

Não é um fenômeno meramente livresco. Depois das eleições, os Estados Unidos começaram a viver um excepcional ressurgimento dos movimentos sociais. Dispersos durante décadas, formaram uma frente comum chamada A Resistência. Coletivos feministas, operários e raciais se uniram contra a Casa Branca, e surgiram obras coletivas como What We Do Now (O que fazemos agora, editado por Dennis Johnson e Valerie Merians), em que 27 pensadores e políticos progressistas de primeira linha dão sua receita para “defender os valores” na América de Trump. Inclusive virou best-seller o Guia para Sobreviver a Trump (editora Dey St.), obra de Gene Stone, que explica com calma pedagógica quais medidas deve tomar alguém que se sinta afetado pelas decisões presidenciais em educação, finanças, migração, segurança…

É um universo em ebulição, do qual Coates, correspondente nacional da The Atlantic, é consciente, e ao qual não hesita em apelar. “A eleição de Trump não foi inevitável e, embora tenha causado um grande dano, não é o fim da história. O necessário agora é uma resistência intolerante à autocomiseração e que não perca o mal de vista”, clama ao final de seu livro.

Esse chamado contra a presidência, embora se refira ao universo norte-americano, transcende as fronteiras. Populista e patriota, Trump pisoteou não só os negros, mas também os imigrantes. O de fora não tem lugar em seu mundo. A América em primeiro. O resto é preciso frear. Expulsar os sem-documentos, limitar os refugiados. Nas terras que durante séculos acolheram os perseguidos e pobres do mundo, Trump se transformou no senhor da fazenda e, segundo esses autores, triunfou açulando os medos dos brancos. Ele é a ordem, ele construirá a grande muralha contra os bárbaros. O muro com o México.

“Não acho que Trump será bem-sucedido. O multiculturalismo é mais forte do que o isolacionismo, diz Jorge Volpi

A humilhação se fez sentir ao sul do rio Bravo. O vendaval uniu forças díspares. Foi criada uma enorme frente de repúdio e ira no caleidoscópio mexicano. “Provocou uma resistência cultural. Em uma sociedade tão dividida como a mexicana, pelo menos artistas e escritores compartilham a mesma luta”, explica ao EL PAÍS Jorge Volpi (Cidade do México, 1968), autor de Contra Trump (editora Debate), um “panfleto urgente” que reúne 30 artigos escritos após a vitória do republicano e que termina, como Snyder e Coates, conclamando à ação.

“Enquanto estiver na Casa Branca, o Rei Cenoura continuará sendo quem é: um apresentador de televisão cujo principal objetivo é conservar os refletores a todo custo. Existirão, certamente, mais grosserias, mais tuitadas insultantes, mais descalabros, mais provocações e mais contradições de sua parte. E também, para nossa desgraça, mais violações aos direitos humanos, mais racismo, mais autoritarismo, mais sexismo e mais demagogia. Mais possibilidades de guerra”, escreve o autor de Em Busca de Klingsor.

Escrever na era Trump

A batalha, concordam esses pensadores progressistas, será longa. Por enquanto, o mandato do republicano está só no começo. Os elementos contra ele ainda estão se agrupando e o resultado é incerto. “Não acho que Trump será bem-sucedido, a força do multiculturalismo é muito superior ao isolacionismo. Isso não quer dizer que não conseguirá vitórias importantes; entre elas, marginalizar a cultura mexicana e latino-americana, e o espanhol como língua”, explica Volpi.

Mas ganhando ou perdendo, Trump já mudou a história americana. Sua vitória catalisou forças que muitos acreditavam enterradas. A direita radical é mais forte do que nunca e até as tochas da Ku Klux Klan marcham orgulhosas outra vez. Neste cenário obscuro, o fantasma da desconfiança despertou. Uma maioria começou a temer o futuro. Para eles, a Terra voltou a ser plana com Trump. E ninguém sabe o que está à espera no final do caminho.

O processo não foi imediato. Começou paradoxalmente há quase 10 anos, quando o país experimentou com Obama a esperança de uma mudança profunda. Mas com o passar do tempo a esperança se desvaneceu e a terra do Yes, we can acabou votando em um showman catódico, populista e xenófobo. Essa viagem ao longo de um decênio vertiginoso tem em Outono Americano (editora Elba), de Marc Bassets (Barcelona, 1974), uma crônica de exceção. Profundo conhecedor dos EUA, como correspondente entre 2007 e 2017 de La Vanguardia e posteriormente do EL PAÍS, sua obra percorre a medula de uma nação perplexa. Suas histórias, feitas a partir do jornalismo de qualidade, situam o leitor diante de fazendeiros cristãos, drogados e carcereiros, diante de Obama e Trump; o levam do solo escuro de Ciudad Juárez às luzes de Nova York; desentranham o barulho e a fúria de uma campanha eleitoral que entrará na história. O resultado de um magnífico olhar ao interior dos Estados Unidos. Uma “crônica íntima” na qual afloram os sinais de decadência, mas também de vitalidade.

Talvez essa seja a melhor forma de responder às perguntas que a era Trump suscita. Ir e olhar. Entender que os Estados Unidos são muito mais do que seu presidente. Inesgotável, vital, pungente e visionária, a nação que liderou o século XX ainda mantém sua capacidade para se reconstruir e escapar de suas próprias armadilhas. Os poderes de oposição funcionam, a imprensa denuncia, os intelectuais criticam. Da mesma forma que aconteceu na guerra do Vietnã, a América entrou em um formidável debate consigo mesma. Ninguém sabe como esse embate interior terminará. Mas não há dúvidas de que marcará o século XXI.

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