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Ocupação de São Bernardo, o grupo para quem Caetano foi proibido de cantar

8.000 famílias do MTST ocupam há dois meses um terreno abandonado há 40 anos para cobrar moradia

Caetano Veloso e outros artistas no palco da Ocupação de São Bernardo.
Caetano Veloso e outros artistas no palco da Ocupação de São Bernardo.Mídia Ninja

Nem a lama, a barreira policial, a localização complicada ou a decisão judicial impediram uma procissão de subir o morro da Ocupação Povo Sem Medo de São Bernardo, região metropolitana de São Paulo, para ouvir Caetano Veloso cantar na noite de segunda-feira. Munidos de saquinhos plásticos com alimentos perecíveis, a serem doados para o acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), a multidão se reuniu em frente a um palco improvisado em uma colina, uma espécie de clareira ao lado dos milhares de barracos de lona preta, azul e amarela perfeitamente enfileirados por toda a extensão do terreno.

Não era o cenário esperado para um show de Caetano. Sem o equipamento de som, proibido pela polícia de entrar no local, pouco se ouvia do palco. As lanternas de celulares faziam vezes das luzes. Visitantes, em número menor do que se imaginava, se misturavam aos moradores da ocupação. Todos cantavam animados: "Aqui... Está... O povo sem medo... Sem medo de lutar!".

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Mas Caetano não cantou. Foi a primeira vez desde a ditadura militar que o cantor e compositor foi impedido de fazer uma apresentação, segundo ele mesmo frisou. O artista, de 75 anos, havia marcado o show para as 19h como forma de prestar apoio às 8.000 famílias que há 45 dias cobram moradia naquele local. "Ser impedido de cantar não é bom. Mais que nunca é preciso cantar. Porque há muitas dificuldades", disse para jornalistas. "Eu vivi o período oficialmente não democrático e não é bom ser impedido de cantar."

Artistas e políticos têm prestado solidariedade à Ocupação Povo Sem medo de São Bernardo, considerada a maior ocupação urbana de São Paulo, num momento em que as demandas populares desapareceram da pauta nacional. Os manifestantes do MTST cobram a construção de moradias em terrenos da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), empresa do Governo de Estado de São Paulo responsável pela construção de moradias populares, que atende famílias com renda de 1 a 10 salários mínimos. Além da manutenção do programa Casa Paulista, que trabalha para a execução de infraestrutura e a construção de moradias em lotes regularizados, ameaçado com a falta de verbas.

A decisão de proibir o show foi da juíza Ida Inês Del Cid, que argumentou que o lugar da ocupação não possui estrutura para suportar um show de artistas da "envergadura" de Caetano. "Seu brilhantismo atrairá muitas pessoas para o local, o que certamente colocaria em risco estas mesmas, porque, como ressaltado, não há estruturas para shows, ainda mais, de um artista tão querido pelo público, por interpretar canções lindíssimas, com voz inigualável", afirmou a magistrada. Ela estabeleceu ainda uma multa de 500.000 reais caso a decisão fosse desrespeitada — o mesmo valor que a construtora MZM, a proprietária do terreno, vazio há 40 anos, deve de IPTU atrasado, segundo o MTST.

A decisão contra o show saiu rápido. Já a cobrança da multa de IPTU, não. O espaço ocupado está localizado entre uma área industrial e a área residencial de classe média em São Bernardo, no bairro Assunção. O MTST, um movimento de caráter social, que desde 1997 faz pressão pela reforma urbana em busca de moradias em grandes cidades, argumenta que a construtora MZM desrespeita a lei ao manter o terreno vazio por 40 anos, o que retira sua função social.

Integrantes do MTST no bairro Assunção, em São Bernardo do Campo (Grande SP). À direita, a clareira onde seria realizado o show de Caetano.
Integrantes do MTST no bairro Assunção, em São Bernardo do Campo (Grande SP). À direita, a clareira onde seria realizado o show de Caetano.Ricardo Stuckert (Fotos Públicas)

O desfecho da noite frustrou quem esperava ouvir o cantor. Anderson dos Santos Dias, de 39 anos, foi o responsável pela construção do palco de aparência improvisada, mas que ele garante ser seguro o suficiente para receber o “brilhantismo” de qualquer um que seja. “As madeiras que estão lá fui eu que doei e o palco eu construí. É firme. Tem umas 30 pessoas lá em cima”, garante.

Há dois meses participando do movimento, o trabalhador da construção civil conheceu o MTST pela “necessidade”. Sem emprego, com três meses de aluguel atrasado na vizinha Diadema, e com medo de despejo, ouviu dizer que um grupo de pessoas estava ocupando um terreno em frente à Scania e que precisavam de apoio para resistir. “Trouxe comigo umas 120 pessoas, incluindo meus filhos de 19, 16 e 12 anos e minha irmã. Meu barraco já está pronto”, aqui.

A “necessidade” de Anderson é a mesma das demais famílias que ocupam o terreno abandonado de 70.000 metros quadrados, algo como sete campos de futebol. Foi ali que a ajudante de cozinha Celeste Ferreira Lopes, de 48 anos, desempregada há quatro meses conseguiu apoio para enfrentar um momento difícil em sua vida. “Aqui a gente almoça, janta, e ajuda uns aos outros”, afirma ela.

Kathelyn Souza de França, 22 anos, está separada e cuida dos dois filhos, de 3 anos e outro de 11 meses. Conheceu o movimento através do Facebook. Eram publicações de pessoas que moram em prédios ao redor do terreno e que são contrários à ocupação. Foi ver o que se tratava, gostou e ficou. A ex-estoquista desempregada, que hoje é uma das cozinheiras do bloco G18, que tem cerca de 1.000 pessoas, conta estar mais interessada em um teto para seus filhos do que a apresentação do cantor famoso. É o que todos querem, na verdade.

A Prefeitura de São Bernardo, que tem à frente Orlando Morando (PSDB), chegou a emitir uma nota dizendo que solicitaria o apoio da Polícia Militar caso o show fosse realizado. "Não sou técnico em questões legais, não posso julgar. Mas me sinto mal, dá a impressão de que não é um ambiente propriamente democrático. Pode ser um modo de reprimir uma ação que seria legítima em princípio. Mas eles apresentaram justificativa de segurança (...) Acho que há má vontade deles", opinou Caetano após a decisão.

A dúvida de Caetano bate na memória as ocupações das escolas no ano passado, quando estudantes se fecharam nos colégios em algumas capitais, como o Rio, e artistas como Marisa Monte, Lenine, Nando Reis e Criolo visitaram as ocupações. Emicida também tem visitado e cantado para participantes de movimentos sociais. A segurança nunca havia sido mencionada como problema até então.

Paula Lavigne, produtora e companheira de cantor baiano, afirmou do alto do palco, que não estava ali para fazer guerra. “Estamos aqui em missão de paz. Viemos aqui apoiar vocês, apoiar a ocupação. Eu prometo que a gente vai fazer esse show, seja aqui ou em qualquer outro lugar".

A empresária estava ao lado de artistas como Alinne Moraes, Leticia Sabatella, Sonia Braga, Marina Person, Emicida, Criolo, além do próprio Caetano, passando mensagens de solidariedade às famílias. Também compareceram ao “show” o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ), o vereador Eduardo Suplicy (PT-SP) e o coordenador nacional do MTST Guilherme Boulos. Em outubro, a ocupação recebeu também a visita do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Cantando ou não, Caetano e os artistas fortaleceram a marcha que os sem-teto decidiram fazer na manhã de terça, às 7h da manhã. As famílias instaladas no ABC iniciaram uma caminhada de 23 quilômetros em direção ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual, para cobrar o governador Geraldo Alckmin (PSDB) a desapropriação do terreno e a construção de moradias populares. São Paulo acordou atenta. A ameaça de mais trânsito em meio a possibilidade chuva é sempre um chamariz. Ainda mais se tratando do grupo para quem Caetano não cantou.

Em outubro, o MTST desocupou um terreno privado no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, que ocupava há 11 meses, após o proprietário concordar em vender a área para a Caixa Econômica Federal. Foram várias negociações com a Prefeitura de São Paulo e Governo estatual até ser acordado que o terreno vai receber um empreendimento para 500 famílias.

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