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O que aconteceu nas ruas quando a Catalunha declarou a independência

O tradicional excesso de emoções próprio da época foi diluindo os aspectos técnicos da declaração de independência: era preferível não saber

Manuel Jabois
Etienne De Malglaive (Getty Images)

Para saber que a Catalunha estava se tornado independente foi preciso aumentar o volume. Aconteceu em um bar lotado da praça Sant Jauma, onde a televisão transmitia o plenário do parlamento catalão com o mute apertado. “O que estão votando agora? Pega o controle!”. O que estavam votando era que a Catalunha fosse uma nova república, mas as pessoas não pararam de comer: a cada “sim” expressado em voz alta dos votos a favor se moviam garfos e facas. Logo após terminar a votação, no entanto, houve um silêncio grave, como quando se aperta um botão vermelho para ver o que acontece. Nesse momento, como se tivessem caído do céu, apareceram dois recém-casados na rua, um homem e uma mulher. Parecia como se em uma arrancada de euforia, as pessoas começassem a se casar descontroladamente. O fotógrafo os colocou ao lado de um grupo de Mossos (policiais da Catalunha), porque agora os Mossos são anjos guardiões do amor: com a nova República, em vez de pistolas levarão sonetos. Foi o primeiro gesto da sociedade após se desembaraçar da opressão e do castigo espanhol: beijar em paz.

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O que aconteceu quando o semivazio parlamento catalão declarou a independência? Era como se a impressão de uma boa parte da rua fosse silenciosa. Em Sant Jaume só havia câmeras apontando para nenhum lugar. Nas ruas próximas havia o mesmo movimento de sempre. Isso acontecia nos primeiros minutos: um silêncio e uma expectativa parecidos a quando o mar recua e deixa a mostra os objetos do fundo, os esqueletos dos animais e os barcos naufragados. Somente ao se chegar à Via Laietana começava a se saber que algo havia acontecido graças às buzinas dos carros e das motos, que em um primeiro momento comemoraram a felicidade da soberania. Essa rua seria ocupada horas depois por tratoristas reclamando seu protagonismo no processo; entre outras missões, foi deles o trabalho de bloquear as estradas que dão acesso a povoados do interior que votaram, sem Mossos nem polícia, em 1 de outubro.

À medida que a rua começou a esquentar, e a Sant Jaume e seus arredores ficaram lotados, e começou o tradicional excesso de emoções próprio da época, foram se diluindo os aspectos mais técnicos da declaração de independência, realizada em um Parlamento semivazio, a instâncias de um referendo ilegal sem garantias, segundo os observadores da própria Generalitat (governo regional da Catalunha), e em uma urna mediante voto secreto. Tudo isso ignorando, mais uma vez, os requerimentos dos serviços jurídicos do próprio parlamento catalão. Esses deputados que votaram sim às escondidas, como quem faz uma travessura, não estiveram em 1 de outubro nas concentrações em frente aos colégios, buscaram, por todos os meios, apagar os traços administrativos que poderiam levar a consequências penais e, finalmente, quando chegou a hora da votação de suas vidas, depois de se lançarem com loucura ao momento transcendental de fundar uma nação às custas de metade de seus cidadãos, o fazem em segredo, sem nenhum vislumbre de dignidade, no momento de maior vergonha alheia do processo de soberania, e este último tem um mérito indiscutível; faltou-lhes, realmente, depositar o voto com pinças para assegurar que não identificassem suas impressões na cédula.

E, então, que país pode se fundar assim? Como se pode criar algo novo por parte de uma gente que não pode dizer publicamente como votou porque tem medo das consequências de seus atos? Nem rastro de responsabilidade.

A ilusão da independência arrasou com todos esses detalhes. Um passeio pelos bairros de Barcelona no meio da manhã, enquanto ocorria o debate no parlamento catalão, era a melhor demonstração de que a confecção do novo país era o de menos neste momento: era melhor não saber o que se fazia e de que maneira se fazia; televisões desligadas ou sem volume, nenhum interesse nas ruas, nenhuma transmissão a ficar atento em algum lugar. E isso se reproduzia nos arredores de núcleos como o Palau, com o êxtase e a euforia sendo gestados devagar e só finalmente sendo expressados em massa em meados da tarde, como quem vive um sonho sem se interessar em saber quanto custou. A essa hora, nove da noite, meia Catalunha acredita estar vivendo em um país e meia em outro. Na maior parte da cidade não se distingue hoje de ontem, um dia do outro. Também no independentismo tem gente que não é alheia ao princípio de realidade, e em vez de alegria expressava resignação: nos próximos dias a comunidade que esperava ser uma nação ficará sem autonomia.

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